Sexo na cozinha
RECAPITULEMOS. Na semana passada escrevi a tese definitiva sobre sexo na banheira: de todas as construções humanas e naturais onde se pode fazer amor, a banheira é uma das mais incómodas, perigosas e ridículas.
Como ficou demonstrado, o sexo na banheira pode ser uma experiência mais radical do que fazê-lo nos provadores das lojas de roupa, no cimo da Torre Eiffel, num automóvel durante a lavagem automática, na mesa de snooker de um bar, na secção de literatura islandesa de uma biblioteca pública ou até na Grande Muralha da China.
A lista de lugares estranhos e inseguros onde as pessoas já copularam mostra que é difícil encontrar algum limite para a capacidade do ser humano descobrir sítios onde fazer sexo.
Hoje, igualmente imbuído da certeza de servir uma causa nobre, proponho-vos analisar outro local que surgiu historicamente como alternativa ou contraponto à segurança e à previsibilidade da cama: a ilha da cozinha.
Ao contrário da banheira, que remonta à Babilónia e ao ano 1800 a.C., a mesa-ilha é uma invenção puramente norte-americana.
Com base nesta especificidade nacional, é possível fazer uma ontologia da identidade norte-americana. Porque, vendo bem, as mesas de cozinha são o seu simulacro perfeito, o seu modelo: a desmesura do país é traduzida na desmesura das suas mesas de cozinha (o que comprova a teoria segundo a qual quanto maior e mais rico o país, maiores as suas mesas de cozinha).
Na verdade, a mesa onde os americanos preparam os alimentos, tomam o pequeno-almoço ou fazem refeições informais está no centro da democracia norte-americana. Dir-se-ia mesmo que os EUA são uma sociedade organizada em torno de ilhas de cozinha.
Metaforicamente, ainda mais do que a banheira, são um símbolo do poder e da influência dos EUA no planeta. Aliás, na trajectória da cultura norte-americana, as mesas de cozinha vêm logo a seguir à bomba atómica e à chegada à Lua.
Como aconteceu com a banheira, também o sexo na mesa da cozinha se trivializou e se massificou graças aos filmes de Hollywood.
Metabolizada no imaginário cinematográfico, a mesa de cozinha passou a fazer parte da nossa dramaturgia sexual. Tornou-se de tal modo uma refracção narcísica dos nossos desejos, que na mesa de cozinha temos a sensação de que o cinema americano está dentro de nós.
Tanto assim que entregar-se de corpo e alma a manobras íntimas em cima de uma ilha de cozinha é o mais perto que se pode estar dos EUA sem sair de Portugal.
Na mesa da cozinha, em contraste com a arte da culinária, o sexo pede pressa, é abrupto e repentino. Irresistível e fundamental.
Para Hollywood, o sexo é uma relação de posse carnal dominadora, wagneriana. Através do ecrã, os realizadores tentam passar, por um lado, a ideia de que se trata sempre de animalidade instantânea, e, por outro, a fantasia de que não há nada comparável ao sexo tal como ele é praticado na América.
Em linhas gerais, correspondem aos modelos reaganiano e trumpiano resumidos no seguinte jogo de inversão do genitivo: o desejo da performance e a performance do desejo.
Sempre que alguém fala de sexo na mesa da cozinha é inevitável a referência ao filme O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, interpretado por Jack Nicholson e Jessica Lange.
A primeira cena de sexo entre ambos parece uma tentativa de violação, mas depois é a própria Jessica Lange que desocupa a mesa e atira com tudo – pão, farinha, massa – para o chão, de modo a facilitar a aproximação sexual (e impedir a conjugação niilista dos produtos alimentares com os fluidos corporais).
Entre parêntesis, seja dito que na cara de Jack Nicholson estão subentendidas todas as perversidades norte-americanas (um actor como James Stewart, por exemplo, com os seus gestos hesitantes e a sua autodepreciação, nunca seria credível a fazer sexo na mesa da cozinha de Jessica Lange).
Desde O Carteiro, os americanos têm um fascínio pelo sexo na mesa de cozinha, tal como desde O Amante de Lady Chatterley, o romance de D. H. Lawrence em que a protagonista tem relações numa cabana na floresta, que os jardineiros se transformaram, para os ingleses, num mito erótico.
Graças à longa-metragem dirigida por Bob Rafelson, com argumento de David Mamet (adaptado do romance homónimo de James M. Cain), os americanos passaram a utilizar a mesa de cozinha para muito mais do que simplesmente empanturrar-se de hambúrgueres, cachorros-quentes e batatas fritas.
Mas o sexo na mesa da cozinha, é preciso dizer também, não reúne a admiração unânime dos americanos. Para muitos republicanos, sobretudo do Movimento do Tea Party, a mesa representa a normalidade e a família, e não há nada mais respeitável que ela.
Para a América profunda, este filme personifica um desafio à ordem estabelecida e uma ameaça à normalidade, significa pisar uma tradição sagrada, é uma forma de transgressão da imagem da comunidade à volta da mesa, reflecte a ligação ímpia entre fazer sexo e comer (sem trocadilhos, por favor).
Como quer que seja, o facto é que a mesa de O Carteiro conquistou a estima de milhões de amantes dos Estados Unidos, de tal forma que várias gerações de yankees são herdeiras daquela peça de mobiliário.
Por esse motivo, a mesa onde Jack Nicholson e Jessica Lange pinaram é actualmente um objecto típico do folclore norte-americano, tendo sido restaurada, preservada e até exposta em museus.
Quando estreou, em 1981, O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes deu várias vezes a volta ao mundo.
Desde então, graças à cena de sexo electrizante entre Jack Nicholson e Jessica Lange, a mesa de cozinha tornou-se, para muitas mulheres, na principal arma de persuasão para atrair os homens para aquela divisão da casa e os envolver nas tarefas domésticas.
Sim, direis, mas em Portugal as mesas de cozinha são minúsculas, fazer sexo nelas é quase tão difícil como dançar na ponta de um alfinete.
A pergunta – por que razão a maioria dos portugueses não tem mesas de cozinha grandes? – é tanto mais admissível quanto é certo encontrar uma explicação simples.
Com efeito, na sociedade reprimida salazarista, fazer sexo noutro móvel que não fosse a cama tinha um alcance revolucionário, simbolizava a libertação sexual do casal e a subversão da ordem do sentido doméstico imposta pelo Estado Novo. Daí que as mesas amplas tenham sido proibidas pela censura.
Dito isto, se em Portugal as mesas de cozinha comprometem o conforto e a segurança dos milhões de cidadãos que lutam contra os grilhões do hábito e da rotina do sexo no fofo das camas, isso é um sinal evidente de que continuamos amordaçados pelos preconceitos e pelos puritanismos. E de que o 25 de Abril, ai de nós, não mudou assim tanta coisa. W