Editorial
Ociclo repete-se infernalmente. Outrora com as nacionalizações falhadas de bancos como o BPN ou a transformação do BES em Novo Banco. Ou com o domínio e instrumentalização política do grande banco do Estado, a CGD, por grupos de interesses instalados no velho “arco do poder” constituído pelo baronato do PSD, PS e CDS e que Paulo Macedo varreu. Ou, ainda, com grandes negócios de Estado totalmente obscuros, como a compra dos submarinos e das viaturas Pandur pelo Exército ou por tantos outros falhanços, nomeadamente em algumas privatizações, que custaram muitos milhares de milhões aos contribuintes. Atravessaram governos, partidos e a investigação de alguns deles ainda se arrasta penosamente pela arqueologia judicial dos tribunais.
O que liga estes negócios brutalmente danosos para as contas públicas não é necessariamente a corrupção, vista estritamente pelo que significa em termos penais. Já nem vale a pena ir por aí, apesar de ser uma evidência que ela foi a raiz de alguns deles, mas não vale a pena ir por aí porque logo surgirá a argumentação fulminante dos grandes especialistas de ideias jurídicas gerais, que repetem nos media a velha cassete dos políticos corruptos, uns e outros barricados na ausência de prova direta, fumegante e deixada à vista dos olhos de todos. Não se prova, logo não existe. Portugal não quer fazer o debate de como se ataca essa impunidade estrutural, sob nenhum ponto de vista. Prevalece no debate público esse monstro sagrado dos direitos fundamentais de qualquer cidadão perante o poder coativo da justiça chamado presunção de inocência. Nada existe para lá disso. Essa é a acefalia que conta. Este é um mecanismo jurídico essencial de defesa das liberdades no processo penal mas transformou-se num verdadeiro e eficaz adesivo de silenciamento de qualquer imputação ou qualificação que se faça. Não vamos, portanto, por tais caminhos. Basta ficar pela constatação do dano, mensurável e detetável nas contas públicas e nas arquiteturas contratuais que marcaram os processos de decisão política ao longo das últimas décadas.
O que liga todos aqueles negócios é a velha vampirização do Estado pelos referidos grupos de influência instalados na vida partidária, no velho setor empresarial público, na corte de gestores que nunca criaram nada, não correram nenhum risco e fizeram reluzentes carreiras à sombra protetora de redes clientelares na política e nos partidos. A vida pública e a política nacional estão cheias deles.
Os velhos negócios que praticamente faliram o Estado no ciclo que correu simbolicamente até 2014 e estão, direta ou indiretamente, representados na queda de Ricardo Salgado e de Sócrates, sobrevivem nos métodos e nas engenharias financeiras até hoje. Eles atravessam os partidos que governaram e governam Portugal. Eles fazem com que a questão das barragens da EDP, a indefinição na Groundforce e a destruição que os CTT estão a fazer do serviço universal de correios sejam elementos dessa mesma e velha luta entre um interesse público sistematicamente mal defendido pelos governos e um capitalismo medíocre, que vive do assistencialismo político instalado em São Bento.
O velho espectro do abuso de bens públicos sobrevive agora nos esquemas de opacidade de gestão, de evasão fiscal, de titularidades sobrepostas, de contratos leoninos que fomentam a velha tradição portuguesa de criar capitalistas sem capital, como contava, na última edição da SÁBADO, o artigo de Bruno Faria Lopes sobre o braço de ferro entre o Governo e o empresário Alfredo Casimiro na Groundforce. Alfredo Casimiro protegeu o seu dinheiro no negócio de compra da Groundforce, em 2012, com um empréstimo do Montepio, que recebeu as ações dessa empresa como garantia. E através da outra face da sua realidade empresarial, a transportadora Urbanos, recebia chorudas comissões de gestão
alegadamente, manter a Groundforce na linha reta. No fundo, quem negociou pelo lado do Estado permitiu que Alfredo Casimiro não só não metesse um cêntimo seu na aquisição como ainda lhe pagou uma bela renda de gestão. Este é o retrato implacável de um capitalismo que não gera riqueza, que foge a sete pés da indústria, não produz valor, mas também de um poder político fraco, cúmplice de lógicas que metem os interesses particulares à frente dos interesses gerais. No fundo, estamos perante uma crónica e perversa aliança que subverte por completo a concorrência empresarial, favorecendo as maçãs podres a favor das saudáveis. E assim continuaremos, bem para lá do fim da presente crise.
As duas maçonarias
Regressa o debate sobre a maçonaria e a declaração pública da condição de membro dessa associação secreta. Digo o que sempre disse sobre isto: a maçonaria tem uma história muito importante na luta pela igualdade entre pessoas, pelo fim dos privilégios e pela promoção do desenvolvimento social. Tem uma história luminosa, que, em Portugal, foi defendida por figuras tão ilustres como Miguel Torga, Fernando Vale e muitos outros. Mas a ideia da maçonaria também foi subvertida por escândalos como o da loja P2, em Itália, que representa, ainda hoje, o lado negro do segredo, da manipulação do poder do Estado, da construção de redes clientelares e do golpismo fascista, no caso italiano. Por cá, sempre existiu a tentação de criar redes de influência unidas pela ideia de maçonaria e influenciadas mais pela P2 do que propriamente pelos velhos maçons que combateram a monarquia e os privilégios. Essas duas maçonarias representam realidades distintas. Uma procura o aperfeiçoamento da sociedade e do homem. Outra procura o poder da influência e da fortuna por meios ilícitos. A sua prevalência em partidos e organismos espara, truturais da democracia e da organização social, política e económica aconselha a que se saiba quem são esses políticos, altos dirigentes, magistrados, jornalistas ou gestores. O mesmo se diga em relação a outras associações, como a Opus Dei, mas, também, em relação a grupos de interesses com uma força brutal entre algumas elites nacionais, como o famoso grupo de Bilderberg. Centrar o debate nas duas maçonarias é limitá-lo a uma lógica punitiva contra um único grupo e passar ao lado da floresta.
Corrupção, um livro eloquente
O jornalista Luís Rosa, do Observador, escreveu um livro eloquente sobre o problema da corrupção. 45 anos de Combate à Corrupção, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, é um ensaio bem escrito, com uma estrutura bem escolhida e assente na narrativa de cinco experientes magistrados do Ministério Público, a par de um pedagógico e rigoroso trabalho de consulta de fontes. Os procuradores Euclides Dâmaso, Maria José Morgado, João Marques Vidal, Teresa Almeida e Inês Bonina atravessam três gerações diferentes e explicam bem como evoluiu a capacidade do Ministério Público para investigar e reprimir a criminalidade económica e, em particular, a corrupção. Tem sido uma evolução lenta, é certo, mas sem a especialização de polícias e magistrados, sem que haja vontade política e sem que o próprio sistema judicial não incorpore objetivos, meios e capacidades relacionadas com este combate, o atraso português seria muito maior. A pedagogia da obra é, porventura, a sua melhor característica. Para quem quiser começar a perceber como começou a ser construído o edifício legislativo, como começou a formatar-se a organização do Ministério Público e as lutas que foram travadas devido à imensa resistência do poder político, pode começar por este livro de Luís Rosa. W