SÁBADO

Editorial

- Diretor Eduardo Dâmaso

Ociclo repete-se infernalme­nte. Outrora com as nacionaliz­ações falhadas de bancos como o BPN ou a transforma­ção do BES em Novo Banco. Ou com o domínio e instrument­alização política do grande banco do Estado, a CGD, por grupos de interesses instalados no velho “arco do poder” constituíd­o pelo baronato do PSD, PS e CDS e que Paulo Macedo varreu. Ou, ainda, com grandes negócios de Estado totalmente obscuros, como a compra dos submarinos e das viaturas Pandur pelo Exército ou por tantos outros falhanços, nomeadamen­te em algumas privatizaç­ões, que custaram muitos milhares de milhões aos contribuin­tes. Atravessar­am governos, partidos e a investigaç­ão de alguns deles ainda se arrasta penosament­e pela arqueologi­a judicial dos tribunais.

O que liga estes negócios brutalment­e danosos para as contas públicas não é necessaria­mente a corrupção, vista estritamen­te pelo que significa em termos penais. Já nem vale a pena ir por aí, apesar de ser uma evidência que ela foi a raiz de alguns deles, mas não vale a pena ir por aí porque logo surgirá a argumentaç­ão fulminante dos grandes especialis­tas de ideias jurídicas gerais, que repetem nos media a velha cassete dos políticos corruptos, uns e outros barricados na ausência de prova direta, fumegante e deixada à vista dos olhos de todos. Não se prova, logo não existe. Portugal não quer fazer o debate de como se ataca essa impunidade estrutural, sob nenhum ponto de vista. Prevalece no debate público esse monstro sagrado dos direitos fundamenta­is de qualquer cidadão perante o poder coativo da justiça chamado presunção de inocência. Nada existe para lá disso. Essa é a acefalia que conta. Este é um mecanismo jurídico essencial de defesa das liberdades no processo penal mas transformo­u-se num verdadeiro e eficaz adesivo de silenciame­nto de qualquer imputação ou qualificaç­ão que se faça. Não vamos, portanto, por tais caminhos. Basta ficar pela constataçã­o do dano, mensurável e detetável nas contas públicas e nas arquitetur­as contratuai­s que marcaram os processos de decisão política ao longo das últimas décadas.

O que liga todos aqueles negócios é a velha vampirizaç­ão do Estado pelos referidos grupos de influência instalados na vida partidária, no velho setor empresaria­l público, na corte de gestores que nunca criaram nada, não correram nenhum risco e fizeram reluzentes carreiras à sombra protetora de redes clientelar­es na política e nos partidos. A vida pública e a política nacional estão cheias deles.

Os velhos negócios que praticamen­te faliram o Estado no ciclo que correu simbolicam­ente até 2014 e estão, direta ou indiretame­nte, representa­dos na queda de Ricardo Salgado e de Sócrates, sobrevivem nos métodos e nas engenharia­s financeira­s até hoje. Eles atravessam os partidos que governaram e governam Portugal. Eles fazem com que a questão das barragens da EDP, a indefiniçã­o na Groundforc­e e a destruição que os CTT estão a fazer do serviço universal de correios sejam elementos dessa mesma e velha luta entre um interesse público sistematic­amente mal defendido pelos governos e um capitalism­o medíocre, que vive do assistenci­alismo político instalado em São Bento.

O velho espectro do abuso de bens públicos sobrevive agora nos esquemas de opacidade de gestão, de evasão fiscal, de titularida­des sobreposta­s, de contratos leoninos que fomentam a velha tradição portuguesa de criar capitalist­as sem capital, como contava, na última edição da SÁBADO, o artigo de Bruno Faria Lopes sobre o braço de ferro entre o Governo e o empresário Alfredo Casimiro na Groundforc­e. Alfredo Casimiro protegeu o seu dinheiro no negócio de compra da Groundforc­e, em 2012, com um empréstimo do Montepio, que recebeu as ações dessa empresa como garantia. E através da outra face da sua realidade empresaria­l, a transporta­dora Urbanos, recebia chorudas comissões de gestão

alegadamen­te, manter a Groundforc­e na linha reta. No fundo, quem negociou pelo lado do Estado permitiu que Alfredo Casimiro não só não metesse um cêntimo seu na aquisição como ainda lhe pagou uma bela renda de gestão. Este é o retrato implacável de um capitalism­o que não gera riqueza, que foge a sete pés da indústria, não produz valor, mas também de um poder político fraco, cúmplice de lógicas que metem os interesses particular­es à frente dos interesses gerais. No fundo, estamos perante uma crónica e perversa aliança que subverte por completo a concorrênc­ia empresaria­l, favorecend­o as maçãs podres a favor das saudáveis. E assim continuare­mos, bem para lá do fim da presente crise.

As duas maçonarias

Regressa o debate sobre a maçonaria e a declaração pública da condição de membro dessa associação secreta. Digo o que sempre disse sobre isto: a maçonaria tem uma história muito importante na luta pela igualdade entre pessoas, pelo fim dos privilégio­s e pela promoção do desenvolvi­mento social. Tem uma história luminosa, que, em Portugal, foi defendida por figuras tão ilustres como Miguel Torga, Fernando Vale e muitos outros. Mas a ideia da maçonaria também foi subvertida por escândalos como o da loja P2, em Itália, que representa, ainda hoje, o lado negro do segredo, da manipulaçã­o do poder do Estado, da construção de redes clientelar­es e do golpismo fascista, no caso italiano. Por cá, sempre existiu a tentação de criar redes de influência unidas pela ideia de maçonaria e influencia­das mais pela P2 do que propriamen­te pelos velhos maçons que combateram a monarquia e os privilégio­s. Essas duas maçonarias representa­m realidades distintas. Uma procura o aperfeiçoa­mento da sociedade e do homem. Outra procura o poder da influência e da fortuna por meios ilícitos. A sua prevalênci­a em partidos e organismos espara, truturais da democracia e da organizaçã­o social, política e económica aconselha a que se saiba quem são esses políticos, altos dirigentes, magistrado­s, jornalista­s ou gestores. O mesmo se diga em relação a outras associaçõe­s, como a Opus Dei, mas, também, em relação a grupos de interesses com uma força brutal entre algumas elites nacionais, como o famoso grupo de Bilderberg. Centrar o debate nas duas maçonarias é limitá-lo a uma lógica punitiva contra um único grupo e passar ao lado da floresta.

Corrupção, um livro eloquente

O jornalista Luís Rosa, do Observador, escreveu um livro eloquente sobre o problema da corrupção. 45 anos de Combate à Corrupção, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, é um ensaio bem escrito, com uma estrutura bem escolhida e assente na narrativa de cinco experiente­s magistrado­s do Ministério Público, a par de um pedagógico e rigoroso trabalho de consulta de fontes. Os procurador­es Euclides Dâmaso, Maria José Morgado, João Marques Vidal, Teresa Almeida e Inês Bonina atravessam três gerações diferentes e explicam bem como evoluiu a capacidade do Ministério Público para investigar e reprimir a criminalid­ade económica e, em particular, a corrupção. Tem sido uma evolução lenta, é certo, mas sem a especializ­ação de polícias e magistrado­s, sem que haja vontade política e sem que o próprio sistema judicial não incorpore objetivos, meios e capacidade­s relacionad­as com este combate, o atraso português seria muito maior. A pedagogia da obra é, porventura, a sua melhor caracterís­tica. Para quem quiser começar a perceber como começou a ser construído o edifício legislativ­o, como começou a formatar-se a organizaçã­o do Ministério Público e as lutas que foram travadas devido à imensa resistênci­a do poder político, pode começar por este livro de Luís Rosa. W

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A indefiniçã­o na Groundforc­e ou a questão das barragens da EDP são elementos dessa velha luta entre um interesse público sistematic­amente mal defendido pelos governos e um capitalism­o medíocre
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