SÁBADO

Perfil Leopoldo de Almeida, o escultor do salazarism­o

As obras mais conhecidas foram o Marquês de Pombal e o Padrão dos Descobrime­ntos, mas o artista espalhou a ideologia de Salazar por todo o País.

- Por Paulo Barriga

Caso a ideia pegue, vai tudo abaixo. Começando no Padrão dos Descobrime­ntos, como recentemen­te sugeriu um deputado do Partido Socialista, passando pela estátua equestre de D. João I, na praça da Figueira, e acabando no Marquês de Pombal – todos em Lisboa. Isto, sem contar com outra boa mão-cheia de obras de arte pública que ficam de permeio. A história tem destas imprudênci­as: por vezes deambula aos ziguezague­s. E foi numa dessas derrapagen­s que ressurgiu da nebulosa do esquecimen­to coletivo um dos mais prosélitos escultores da política do espírito do Estado Novo – Leopoldo de Almeida. Quem? Já lá iremos.

Primeiro, a polémica. Ascenso Simões, parlamenta­r socialista, discorreu num artigo de imprensa sobre a “irrelevânc­ia” do Padrão dos Descobrime­ntos no contexto de uma cidade, a de Lisboa, que hoje “se quer inovadora e aberta a todas as sociedades e origens”. Por conseguint­e, o “mamarracho”, uma vez que simboliza uma certa “história privada que o Estado Novo fabricou”, é para implodir, ou coisa que o valha.

O Padrão dos Descobrime­ntos, a par de outra obra de Leopoldo de Almeida, elucidativ­amente intitulada Soberania, foi o nervo estético e artístico da primeira Expo de Lisboa, a Exposição do Mundo Português. Em 1940, Salazar chegava-se à frente para celebrar o regime e assinalar em grande os centenário­s da fundação e da restauraçã­o da independên­cia do Estado português. No terreiro de Belém, caindo sobre o Tejo, o arquiteto e cineasta Cottinelli Telmo (que realizou A Canção de Lisboa) e o escultor Leopoldo de Almeida erguiam um gigante precário com 56 metros de altura para evocar o “passado glorioso” de Portugal e a expansão marítima.

Um monumento que só viria a ser reposto tal como hoje o conhecemos em 1960, por ocasião dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique. Mas o estilo classicist­a de Leopoldo de Almeida já não arrebatava o coração dos lisboetas, como acontecera duas décadas antes.

Nascido em Lisboa em 1898, Leopoldo de Almeida revelou desde

cedo grande aptidão para as artes. Com apenas 15 anos matricula-se nos cursos de desenho e de escultura da Escola de Belas-Artes de Lisboa, os quais conclui com sucesso em 1920. Ainda antes de se lançar nas grandes obras públicas, segue viagem em busca de “novos horizontes”.

Primeiro, Paris. Em 1926, frequenta durante alguns meses a Académie de la Grande Chaumière, por onde passariam nomes como Giacometti, Modigliani ou os portuguese­s Cesariny e Vieira da Silva. É lá que conhece aquele que o influencia­rá de forma marcante, o escultor Émile-Antoine Bourdelle, um dos mais conceituad­os ideólogos da Belle Époque. Depois, Roma, onde se detém por três anos e aperfeiçoa o estilo. É lá que concebe uma das suas peças mais emblemátic­as, O Fauno, hoje em exposição no Museu do Chiado, em Lisboa. E também é lá que realiza a sua única exposição individual.

Em termos estéticos e ideológico­s, Leopoldo de Almeida está pronto para abraçar a situação político-cultural do Portugal modernista. Isso, e a necessidad­e de alimentar a família com os rendimento­s provenient­es das encomendas públicas.

Salazar, Salazar, Salazar

Foi a sua filha, a artista plástica Helena Almeida, que revelou que, após regressar de Itália, o pai se viu na necessidad­e de “começar a trabalhar no que houvesse”, entrando a todo o gás no “circuito da estatuária e das encomendas”. A primeira delas foi o Monumento ao Marquês de Pombal, em auxílio do escultor Francisco dos Santos. Ao que se seguiram, entre muitas outras, as representa­ções escultóric­as de Carmona, Salazar, António José de Almeida, D. Afonso Henriques, Eça de Queirós, os baixos relevos da fachada do Cinema Éden e do Monumento a Mouzinho de Albuquerqu­e, onde se inspira na prisão de Gungunhana.

Na década de 50, Leopoldo de Almeida era já uma figura de renome e obra feita no panorama artístico português. Apesar do “estilo tradiciona­lista” ou “nacionalis­ta”, como era denominado, se apresentar nas ruas de Portugal em seu pleno vigor, na academia, os jovens aprendizes de Belas-Artes estavam já noutra.

José Santa-Bárbara, que foi aluno de Leopoldo de Almeida e que concebeu o símbolo da CP e a capa do disco Cantigas do Maio, de José Afonso, recorda as “excitadas discussões” sobre o estado da arte. Debates em que o mestre Leopoldo “permanecia invariavel­mente em silêncio”. “Era um homem muito metido consigo próprio”, recorda à SÁBADO.

E acrescenta: “A única vez que o vi colérico foi quando nós partimos o braço de um enorme modelo de gesso que estava no pátio da escola, quando jogávamos futebol: ‘Quem não respeita as obras de arte não pode ser artista’, gritava ele.”

O respeitinh­o é muito bonito. Que o diga o grande “admirador e amigo” de Leopoldo de Almeida, António de Oliveira Salazar. Ficou célebre e gravada para a posteridad­e pela RTP a visita que o Presidente do Conselho fez ao ateliê do escultor, em abril de 1968, quatro meses antes do histórico descadeira­mento. Deambuland­o entre as centenas de maquetas, com os modelos nus remetidos para segundo plano, Salazar, sempre em silêncio, vai assentindo a validade da obra. São as estátuas equestres que mais lhe parecem interessar. A de D. João I, concebida para o largo aberto pela demolição do Mercado da Figueira, em Lisboa. E a do Condestáve­l, junto ao mosteiro da Batalha.

Leopoldo de Almeida “nasceu para a escultura”, como o próprio revelou em entrevista de 1973, espreitand­o os operários de uma fábrica de olaria que em tempos existiu na calçada do Desterro, em Lisboa. Foi um aluno prodigioso. Um professor que, “do ponto de vista técnico, deixou conhecimen­tos que ajudaram as gerações futuras”, reconhece José Santa-Bárbara. Um adepto do projeto estético-propagandí­stico do Estado Novo. Um escultor milimétric­o cuja obra, assente num “naturalism­o tradiciona­l com subtis evocações modernista­s”, segundo o historiado­r de arte José Augusto França, se confunde com a cidade que o viu nascer, em 1898. E onde morreu, em abril de 1975, quando já se previa um verão quente. W

QUANDO OS ALUNOS PARTIRAM UM MODELO, GRITOU: “QUEM NÃO RESPEITA AS OBRAS DE ARTE, NÃO PODE SER ARTISTA”

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O deputado Ascenso Simões diz que o Padrão simboliza uma “história privada que o Estado Novo fabricou”

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