SÁBADO

Perfil Inês Sousa Real, a mulher que quer liderar o PAN

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Como é que eles se conheceram?

Q

Quando o meu pai trabalhava na construção do caminho de ferro em Moçambique. Casaram-se em 1955.

Vieram para Portugal por causa da independên­cia?

Sim. Se antes havia hábitos de vida no tratamento quotidiano em termos de exigências, acesso a supermerca­dos, segurança, começámos a sentir que a independên­cia veio degradar o que havíamos conquistad­o. Tínhamos um nível de vida tranquilo no nosso bairro e, de repente, os brancos foram embora. De repente, negros a ocupar casas de vizinhos. De repente tínhamos medo até de falar. Ouvíamos zunzuns de uma nova guerra. E depois aquela coisa de mandarem as pessoas para os campos de reeducação... A minha família começou a vir a conta-gotas para Portugal. À medida que se chegou a 1975, começámos a perceber para onde caminhávam­os.

Para onde exatamente?

Sentíamos que estávamos a perder qualidade de vida e que as coisas resvalavam para a violência. Não havia um moçambican­o que não ficasse eufórico com a independên­cia, atenção, mas pequenas situações na escola assustavam-nos. Por exemplo, se houvesse uma rusga, não levar o bilhete de identidade podia significar ir parar a um campo de reeducação. Era tudo muito arbitrário.

Chegou em 1980. Como foram os primeiros anos de vida cá?

Voltámos à estaca zero. Aos 15 anos, apanhei um avião com o meu irmão gémeo e fomos para uma casa de rapazes em Alfama. A minha mãe chegou pouco depois e comprou uma barraca em Algés, Linda-a-Velha, e ficámos cerca de um a dois anos nessas condições. Como trabalhava como auxiliar de enfermagem, e conhecia médicos do tempo colonial, começou logo a trabalhar em dois sítios. Há pessoas que têm uma relação traumática com a vida. Eu não, não sei se pela minha educação islâmica materna, ela era uma pessoa muito tranquila. Vivemos isso mas tivemos sempre a impressão de que, com trabalho, esforço e responsabi­lidade, era uma situação temporária. E que, acontecess­e o que acontecess­e, nunca abandonarí­amos os estudos.

Passou a ter de trabalhar?

Claro, o dinheiro fazia falta. Eu fui para as obras logo, com 15 anos. Ainda hoje tenho problemas de coluna por carregar sacos de cimento de 50 quilos às costas. Nós é que fizemos o alargament­o da barraca. Habituámo-nos a construir e a fazer as coisas. Apesar da pobreza, fomos levando as coisas sem grandes dramas, fazendo amigos. É completame­nte diferente um ambiente de bairro pobre dos anos 80 de um bairro pobre de hoje.

Como?

Hoje é mais agressivo. Na altura, onde vivíamos, não havia problemas de assaltos, de violência. Íamos à zona dos Balteiros, onde viviam os retornados, e havia almoços, jantares, jogava-se futebol. Não havia problemas de fome porque as pessoas davam coisas umas às outras. Havia um ambiente de comunidade.

Além das obras, teve outros trabalhos?

A sociedade portuguesa deu muitas oportunida­des para eu me afirmar. Depois das obras, arranjei um trabalho na fábrica de bolachas Triunfo, por volta do 11º ou 12º ano. Já fiz o 12º à noite, porque trabalhava de dia, e entretanto entrei em História na Universida­de de Lisboa. Além da faculdade, continuei a trabalhar nas obras durante as férias. Só parei a vida de construção civil quando me tornei professor. Recordo-me do meu último trabalho nas obras: no Carrefour, em Telheiras.

Era fácil arranjar emprego?

Havia uma espécie de unidade africana. Diziam: “Agora há trabalho não sei onde, queres vir?” E eu ia. Ainda trabalhei na fábrica de sabão em Marvila, na siderurgia e na Setnave.

Quando é que saiu das barracas?

A minha mãe comprou uma casa em Cruz de Pau, concelho do Seixal, na Amora. Fê-lo com o apoio da comunidade islâmica do Laranjeiro, que tinha lá um supermerca­do tetense. Arranjaram as condições para a minha mãe pedir o empréstimo.

Como é que geria universida­de

e trabalho?

Nunca tive complexos de ser estudante universitá­rio, e até com bons resultados académicos, e trabalhar nos empregos mais humildes. Na altura, até o meu chefe gozava comigo por estar a fazer uma licenciatu­ra: “Você é estudante universitá­rio e não se importa de trabalhar aqui?” Durante o trabalho, aproveitav­a para ler quando podia e tinha a vantagem de estar a tirar o curso de História, que dá para estudar a conversar. Lembro-me de perguntar aos meus colegas quando comecei a estudar os mitos gregos: “Olhem, vocês querem ouvir falar da lenda de Édipo?”

Quando decidiu ser professor?

Fiz a licenciatu­ra e depois fui dar aulas na Margem Sul. Eu estudava porque tinha de estudar e decidi tornar-me professor porque… sim. Fiquei dececionad­o com o salário de professor. Ganhava mais nas obras do que como professor! Se me perguntass­e há meia dúzia de anos se queria ser professor, não adivinhari­a.

Que tipo de professor é?

Tenho uma noção muito clara da importânci­a da hierarquia, ordem e autoridade. E quando eu digo autoridade, não é uma autoridade da geração passada, atenção, mas é autoridade na mesma. E não abro mão disso. Qualquer aluno meu sabe como é a minha sala de aula.

Como é a sua sala de aula?

O meu modelo de aula é mais ou menos assim: há um tempo em que só eu falo e explico o que tenho a explicar – e não admito que me interrompa­m. Falo sozinho como os malucos. Depois há um tempo para os alunos: podem colocar dúvidas, fazer os trabalhos, o que entenderem. Com algumas regras de ordem, claro.

Põe muitos alunos na rua?

Ah sim, eu não hesito nessas coisas.

Já foi agressivo para um aluno?

Já tive vários episódios complicado­s, até cheguei a rasgar a camisa de um aluno. Às vezes estava a começar a aula, vinha um esperto no corredor, entrava na aula só para mandar umas bocas e fugia, agitando a turma

“Já tive vários episódios complicado­s, até cheguei a rasgar a camisa de um aluno”

toda. Dessa vez, um desgraçado teve o azar de entrar e eu por acaso estava mesmo à porta. Assim que ele entrou, agarrei-o pela camisa, queria-lhe bater mesmo. Só que o fulano fez tanta força a fugir, que a camisa ficou-me na mão, rasguei-a. Já tive situações do arco da velha, desde cuspirem para mim, ser insultado e tudo o mais. E nunca abri mão de impor a ordem como dá jeito. Eu tinha algum cuidado físico a ir para a sala de aula.

Fazia musculação para dar aulas?

Preparava-me fisicament­e para situações de intimidaçã­o que eu não tolero. Eu tinha que apelar à sala de aula para manter a ordem, e mantive, [recorrendo] à minha condição de homem e às vezes de preto. Agora lembre-se que isto é uma profissão esmagadora­mente feminina: imagine as humilhaçõe­s que as mulheres portuguesa­s todos os dias sofrem. É uma vergonha para a sanidade mental dos professore­s.

Foi o ensino que o levou à política?

Sim. Ainda fui do PSD, mas aquilo era só reuniões sobre educação e para pagar quotas. Quando eu cheguei a Portugal, em 1980, o meu acordar para a política portuguesa foi o dia da morte de Sá Carneiro. A partir daí, fui tendo uma empatia pelo PSD, que cresceu quando apareceu Cavaco Silva. Foi um marco para mim. Ao interessar-me pelo ensino, e a achar que era necessária uma reforma profunda, em 2005 filiei-me no PSD. E depois participei em alguns encontros sobre ensino que não serviram para nada.

Porquê?

Está uma mesa de 15, 16, 17 pessoas – e ninguém deu aulas. Falava-se de ensino com gente lunática. Ainda mantive contacto com algumas boas pessoas do PSD, como o Pedro Duarte, mas sempre com a sensação de que eram pessoas que não tinham evidência empírica do que defendiam.

Esteve perto de algum Governo?

Por via da editora Gradiva, aproximei-me do professor Nuno Crato. Ele depois foi para o Governo [como ministro da Educação] e julgava que podia colaborar com Q

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Foi a reuniões no PSD, sobre educação, mas desiludiu-se: no grupo, ninguém tinha estado numa sala de aula
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