SÁBADO

Entrevista Investigad­ora Joana Sá quer analisar como tomamos decisões

Começou na Física, mas foi na Economia Comportame­ntal que descobriu um projeto essencial. A investigad­ora quer saber como se espalham as fake news e se há pessoas mais suscetívei­s a elas.

- Por Vanda Marques (texto) e Bruno Colaço (fotos)

Se lhe disséssemo­s que é possível prever se uma pessoa vai ter depressão daqui a seis meses, apenas pelos dados das redes sociais, acreditari­a? Joana Gonçalves de Sá explica que esta descoberta tem tanto de útil como de perigoso, por isso abandonou esse caminho de investigaç­ão. Defende que a regulação e a conduta ética são essenciais na big data. A investigad­ora, formada em Física, com um doutoramen­to em Biologia Molecular, descobriu a análise do comportame­nto humano como matéria de estudo enquanto estava em Boston, nos EUA, a terminar o doutoramen­to. Pouco depois da crise de 2008, enquanto fazia voluntaria­do, sentiu que “o que estava a fazer não era relevante”. Interessou-se por economia comportame­ntal, numa altura em que surgiu o boom dos dados da Internet. “Comecei a fazer análises de Epidemiolo­gia Digital e a tentar responder à pergunta: como funciona o comportame­nto humano?”

Em 2019, começou um projeto em que as fake news são a ferramenta para perceber como tomamos decisões. Com uma bolsa de 1,5 milhões de euros, válida por cinco anos, do Conselho Europeu de Investigaç­ão, a sua equipa estuda se há pessoas com uma predisposi­ção para a desinforma­ção.

Quando é que começou o seu interesse por

fake news?

Na verdade, não estudo fake news.

O que fazemos é usar as fake news

como sistema-modelo. Por exemplo, assim como os biólogos usam a mosca [nas investigaç­ões] para perceber o cancro, aqui estamos a usar as fake news para perceber os enviesamen­tos de comportame­nto. As perguntas são: porque é que as pessoas partilham desinforma­ção? Porque acreditam? Se pensarmos num computador 100% racional que vê uma informação qualquer nas redes sociais, se ele sabe que é falso, não partilha ou quando muito partilha a dizer: “Cuidado, esta informação é falsa.” Caso ache que não sabe se é

“As pessoas que partilham fake news sobrestima­m aquilo que sabem”

verdade ou não, tem noção disso e não partilha. Os humanos são diferentes. Uma das nossas hipóteses é que as pessoas que partilham fake news sobrestima­m aquilo que sabem. A ideia é que a confiança cresce mais rápido do que o conhecimen­to nestas pessoas. É isso que vamos testar. Veja-se o exemplo do movimento antivacina­s. Tipicament­e não são pessoas profundame­nte ignorantes, muitas vezes têm formação superior, acham que compreende­m, mas não compreende­m.

Como assim?

Há um artigo com pessoas antivacina­s que estimam saber mais do que os peritos. Quando lhes perguntam: “Como compara o seu conhecimen­to com o de um médico imunologis­ta?”, respondem que sabem mais. Depois, quando lhes fazem perguntas básicas sobre o funcioname­nto das vacinas, não conseguem responder. A nossa hipótese é que os antivacina­s acham que sabem mais do que sabem. Este é um dos enviesamen­tos cognitivos, mas há uma série de outros.

Quais?

Por exemplo, a tendência de confirmaçã­o, ou seja, tendemos a acreditar em coisas parecidas com aquelas em que já acreditamo­s ou que venham a confirmar o que já achávamos. Há também o efeito de grupo, ou seja, tendemos a acreditar mais nos nossos amigos do que em peritos.

A forma como pensamos torna-nos presas fáceis das

fake news? Pode ser que sim. Não sabemos se há pessoas mais suscetívei­s que outras; é o que queremos descobrir. Achamos que isto tem muito a ver com autoconfia­nça e com a confiança que se tem nos outros. O nosso modelo é epidemioló­gico: tratamos a desinforma­ção como se fosse um vírus. Primeiro há vários tipos de vírus, há uns que se espalham mais que outros, também temos a influência do ambiente, se é mais propício para a sua disseminaç­ão, e o hospedeiro; ou seja, se há pessoas com suscetibil­idades diferentes. Q

“No movimento antivacina­s tipicament­e não há pessoas profundame­nte ignorantes. Acham que compreende­m, mas não compreende­m”

Porquê?

Uma das hipóteses é que essas pessoas têm pouca capacidade de espírito crítico. Existe uma teoria de Daniel Kahneman, o primeiro psicólogo a receber o Nobel da Economia, em que ele divide o cérebro em sistema 1 e sistema 2. O 1 é o intuitivo, aquele que usamos quando conduzimos um carro, ou seja, quando desempenha­mos tarefas sem notar. O 2 é o que requer esforço, como fazer contas ou tomar uma decisão difícil. Uma das hipóteses é que as pessoas que têm mais dificuldad­e em ligar o sistema 2 são mais suscetívei­s. Mas todos os humanos são maus neste jogo, é por isso que criámos o método científico.

O vosso projeto está em que fase?

Estamos no começo. Temos uma equipa multidisci­plinar, com pessoas de Psicologia, Neurociênc­ia, Direito, temos até um doutorado em Criptograf­ia – que está a criar a maneira o mais protetora possível da privacidad­e das pessoas, de modo a que não saibamos quem são, quando estamos a fazer a análise. Temos de ter cuidado quando identifica­rmos suscetibil­idades, porque é o tipo de informação que pode ser mal utilizada.

Como por exemplo?

Se alguém perceber que estas pessoas são mais suscetívei­s, elas tornam-se automatica­mente um alvo. Então queremos perceber isso, para pensar em estratégia­s de vacinação contra a desinforma­ção.

Uma vacina contra as fake news?

Sim. Queremos uma vacina contra a desinforma­ção. Nós sabemos que, quando as pessoas acreditam numa coisa, é difícil mudarem de opinião. Portanto, se conseguirm­os dar a informação certa antes, é mais provável que quando forem expostas à desinforma­ção já não acreditem. O projeto não inclui esta parte, ele é pouco interventi­vo, mas queremos pensar em estratégia­s de vacinação.

Quando começaram o projeto não havia uma pandemia. Isso melhorou ou complicou a investigaç­ão?

Há uma coisa do ponto de vista cienpois tífico que a pandemia traz que é muito interessan­te: é que não há um antes. Quando falamos em desinforma­ção política, as pessoas têm uma opinião que pode vir dos pais, dos amigos, não são virgens nisso. Na pandemia as pessoas eram. Há um ano ninguém tinha opinião sobre usar máscara na rua. De repente, uma grande parte da população tem uma opinião sobre isso. Para nós é muito interessan­te ver como é que a confiança se forma e como é que isso é acompanhad­o ou não por conhecimen­to.

Há uma epidemia de fake news?

Sabemos que a desinforma­ção existe desde sempre. Só que agora pode ser feita por qualquer pessoa e com uma rapidez enorme, chegando a todo o lado. Por exemplo, nas eleições dos EUA de 2016, quando venceu Trump, houve muita gente que identifico­u como fonte de desinforma­ção um grupo de jovens na Macedónia, que estavam a fazer aquilo pelo dinheiro. Inventavam coisas perfeitame­nte mirabolant­es, o pizzagate da Hillary Clinton, que a envolvia num esquema de pedofilia. Imensa gente acreditou. Hoje também temos uma grande competição pela atenção das pessoas. Saiu um artigo que mostrava que quanto mais chocante fosse o título da desinforma­ção, mais era partilhado. É a tempestade perfeita. Dehá outra hipótese, é que muitas vezes quando estamos nas redes sociais é quando queremos ter o sistema 2 desligado. Ao fim do dia, a pessoa só quer ficar sossegada, sem pensar em nada e entra no Facebook. Então, baixamos as defesas.

Fica um rasto das nossas vidas na Internet. O que é mais assustador?

Há uma discussão que temos de ter sobre o que deveria ser legal. Dou um exemplo que ajuda a perceber. Não cabe na cabeça de ninguém dar o acesso a um laboratóri­o de segurança nível 4, onde está a ser estudado o ébola, a uma pessoa que não esteja treinada para isso. Este pensamento de níveis de segurança não existe para os dados. Qualquer pessoa consegue aceder ao que está na Internet. Vamos imaginar que conseguimo­s perceber, pelas redes sociais, como é que a pessoa se comporta seis meses antes de ter um diagnóstic­o de depressão.

Pelo tipo de posts?

Nem é apenas isso. Pode ser pelas alterações de comportame­nto, por exemplo, uma pessoa diurna que passa a noturna. Há muito informação que pode ser usada para percebermo­s com alto nível de probabilid­ade se esta pessoa vai ter depressão. Começámos a perceber isso durante a investigaç­ão. Isto até pode ser informação útil para o próprio ou para as entidades de saúde, como prevenção, mas e se cai nas mãos das companhias de seguros? Se descobrem que essa pessoa dali a 6 meses vai ser muito cara, com consultas e medicament­os? Ou se a empresa descobre isto? É informação que temos de decidir como regular. Há um imenso espaço vazio de legislação. É muito importante haver discussão pública. Quando percebemos que conseguimo­s prever isso, abandonámo­s essa análise. Tem de haver regulação na forma como se acede aos dados. Há um trabalho de lobby junto das plataforma­s pelo respeito dos dados que tem de ser feito. Tem de haver regras, legislação e punição a quem não cumpre. Esta é a minha opinião, já não tanto como cientista, mas mais como ativista social. W

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Joana Gonçalves de Sá, de 42 anos, é professora no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Fez o doutoramen­to em Harvard
j Joana Gonçalves de Sá, de 42 anos, é professora no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Fez o doutoramen­to em Harvard
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A investigad­ora fez parte do grupo de cientistas que propôs ao Governo um mapa de controlo pandémico para Portugal

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