SÁBADO

JESUS CRISTO TEVE IRMÃOS?

Tiago, José, Judas, Simão e duas irmãs. O Messias pode ter tido uma família mais alargada, mas não há consenso.

- Por Vanda Marques

Há referência­s a Tiago, José, Judas e Simão, e ainda a duas mulheres – seriam todos filhos de Maria e de José. Mas as opiniões dividem-se

Os mistérios sobre Jesus começam quase sempre com uma frase escrita pelos seus seguidores, transmitid­a ao longo dos séculos. Neste caso, falamos de mais de sete referência­s de diferentes autores (de Lucas a Mateus) aos quatro irmãos homens e às irmãs de Jesus Cristo. “Não é Ele filho do carpinteir­o? Não se chama a Sua mãe Maria, e Seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? Suas irmãs não estão todas entre nós?” (Evangelho de Marcos 6, 3-5).

A frase parece não deixar margem para dúvidas, mas elas existem. A Igreja Católica e a Ortodoxa defendem que Jesus não teve irmãos de sangue e que esta referência não pode ser interpreta­da de forma literal. Armindo Vaz, professor da Universida­de Católica, explica: “Não se pode esquecer de que os autores do Novo Testamento, usando a palavra grega adelfós para designarem os ‘irmãos’ de Jesus, tinham como pano de fundo o contexto, a cultura, o pensamento, a mentalidad­e e o suporte das línguas hebraica e aramaica no Antigo Testamento, em que a palavra correspond­ente tem o significad­o amplo de parentesco de sangue, consanguín­eo, em vários graus.” O sacerdote carmelita teresiano acrescenta ainda que “os textos não foram escritos para dar resposta a essa questão.”

Já José Brissos-Lino, professor e diretor do mestrado em Ciência das Religiões na Universida­de Lusófona, não tem dúvidas de que Jesus teve irmãos. “A Bíblia afirma exatamente isso, que Jesus tinha irmãos.” E acrescenta: “O termo grego usado é adelfós, que literalmen­te significa ‘irmão’. Etimologic­amente adelfós significa couterino, ou seja, filho da

“A BÍBLIA AFIRMA EXATAMENTE ISSO, QUE JESUS TINHA IRMÃOS”, DIZ JOSÉ BRISSOS-LINO

mesma mãe.” O especialis­ta diz que são vários os exemplos (ver caixa) e deixa outro: “Em Lucas 2, 7 diz-se que Maria deu à luz o seu filho primogénit­o. Se Maria não tivesse tido outros filhos, Lucas poderia ter usado ‘unigénito’.”

Sem provas mais substancia­is do que as palavras escritas pelos apóstolos e evangelist­as, a caça à verdade torna-se complicada. O normal para uma família naquela época era ter vários filhos e é em busca de provas arqueológi­cas que trabalham os investigad­ores, como o académico, especializ­ado em grego bíblico e nas origens do cristianis­mo, Geoffrey Smith. Em 2017, em conjunto com o investigad­or Brent Landau, descobriu fragmentos – datados do séc. V e VI – que relatam mais detalhes da relação de Jesus com o seu irmão Tiago. “Estes novos fragmentos do First Apocalypse of James [Primeiro Apocalipse de Tiago, uma parte deste texto foi descoberta pela primeira vez em 1945] retratam Tiago como um líder – o segundo professor. Jesus diz a Tiago que ele também vai sofrer e conforta-o quando percebe que estas notícias sobre este facto o angustiam”, diz à SÁBADO Geoffrey Smith. Para o professor da Universida­de de Texas, não há dúvidas de que Jesus tenha tido irmãos. “Os quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos e o apóstolo Paulo fazem referência aos irmãos de Jesus. Também existem referência­s aos irmãos nos escritos mais antigos do início do cristianis­mo, fora do Novo Testamento. Tem de haver uma verdade nestes relatos.” Há quem veja as coisas de outra forma.

A Igreja Católica discorda desta posição. José Carlos Carvalho, doutor em Teologia Bíblica, da Universida­de Católica, defende que o “silêncio das fontes” faz com que tudo o que se possa analisar dos textos seja espe

culação. “A Igreja Católica não reconhece essa hipótese [da existência de irmãos biológicos], tal o desacordo na arqueologi­a bíblica e na avaliação pelos pares na comunidade científica, mas também porque os nomes de José, Tiago e Jesus eram muito comuns no judaísmo palestinen­se do primeiro século.”

Mas há mais uma peça no puzzle desta família que convém analisar. O desacordo sobre a leitura dos textos antigos prende-se apenas com um debate linguístic­o? Há quem defenda que não.

A virgindade eterna de Maria

José Brissos-Lino explica que a dificuldad­e em aceitar os irmãos prende-se com um dogma da Igreja Católica. “A polémica reside no dogma que a Igreja Católica estabelece­u no séc. VII, no Concílio de Latrão, em que afirma a ‘real e perpétua virgindade de Maria mesmo no ato de dar à luz a Jesus, o Filho de Deus feito homem’. Segundo essa lógica, se Maria continuou virgem também depois de ter dado à luz Jesus, não pode ter tido outros filhos.”

O professor acrescenta mais detalhes sobre a relação do casal Maria e José. “José (...) recebeu em casa sua mulher. Mas não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho.” Que quer isto dizer? “‘Conhecer’, na Bíblia, significa ter relações sexuais. O texto bíblico em si não exclui que depois do nascimento de Jesus, Maria tenha tido outros filhos.”

Da mesma opinião é Bruce Chilton, professor no Bard College, com doutoramen­to em Novo Testamento, da Universida­de de Cambridge. “A controvérs­ia sobre o termo ‘irmãos’ ou ‘irmãs’ deriva da doutrina que surge anos depois dos

“A IGREJA CATÓLICA NÃO RECONHECE ESSA HIPÓTESE [OS IRMÃOS], TAL O DESACORDO NA ARQUEOLOGI­A BÍBLICA”

Simão, irmão de Jesus, poderá ser a mesma pessoa que Simão, o Zelote. Há quem defenda que ele seja meio-irmão ou até primo de Jesus

“JESUS DIZ A TIAGO QUE ELE TAMBÉM VAI SOFRER E CONFORTA-O QUANDO PERCEBE QUE ESTAS NOTÍCIAS O ANGUSTIAM”

Q acontecime­ntos, e que define que Maria se mantém virgem antes, durante e depois do nascimento de Jesus. Mas as referência­s de Paulo e Marco, secundadas por Mateus 13, 55-56 e João 7, 3, deixam claro que isto é mais do que uma mera hipótese, e que era aceite como um facto pelos contemporâ­neos de Jesus”, diz à SÁBADO o autor de Rabbi Jesus: An Intimate Biography.

O professor José Carlos Carvalho defende outra posição: “A virgindade de Maria após o parto resulta de uma leitura cristã que prolonga no tempo o ato de fé que a virgem de Nazaré realizou no momento da Anunciação.” Além disso, acrescenta que Maria “devotou todas as forças, toda a inteligênc­ia, toda a atenção, toda a sua vida para refletir sobre a vocação daquele seu Filho único tão especial, não querendo, por isso, distrair-se com outros filhos.”

Meios-irmãos, outra hipótese

Em paralelo têm surgido outras hipóteses de interpreta­ção da palavra irmão, não só como companheir­o, mas também como meio-irmão, ou seja, filhos de José com outra mulher, uma vez que ele era mais velho que Maria. Armindo Vaz refere que esta hipótese deve ser tida em conta: “Se alguns estudiosos, também por razões ideológica­s, afirmam que os referidos ‘irmãos’ de Jesus eram irmãos biológicos, filhos do mesmo matrimónio de Maria com José, outros estudiosos, bem fundamenta­dos, defendem que seriam irmãos de pai, que José teria tido em matrimónio anterior aos esponsais com Maria.”

Se formos analisar como era a vida na época de Jesus, em Jerusalém, o expectável seria que Maria e José tivessem mais filhos. Como explica José Brissos-Lino: “Só não tinham filhos se um dos dois elementos do casal fosse estéril.” Além disso, ter filhos era uma bênção divina. O especialis­ta norte-americano Bruce Chilton não põe de lado a hipótese de Jesus ter tido meios-irmãos. “Ter quatro irmãos e irmãs que sobreviver­am até à idade adulta parece-me menos usual, a não ser que tenha existido um segundo casamento.”

Tiago, Simão, José e Judas

O irmão de quem conhecemos mais detalhes teve um fim trágico. Apedrejado até à morte, foi assim que Tiago morreu, no ano de 62. Ele era o líder da Igreja em Jerusalém, incómodo para os poderosos, porque pregava contra os ricos.

Um ossário com a inscrição “Tiago, filho de José, irmão de Jesus” foi descoberto em 2002, mas não está comprovada a sua autenticid­ade

“ALGUNS ESTUDIOSOS DEFENDEM QUE SERIAM IRMÃOS DE PAI, QUE JOSÉ TERIA TIDO EM MATRIMÓNIO ANTERIOR”

No início não acreditava em Jesus, tal como os outros irmãos. “Quando os seus familiares ouviram falar disso [milagres], saíram para trazê-lo à força, pois diziam: ‘Ele está fora de si’”, lê-se no Evangelho de Marcos. No entanto, Tiago tornou-se num dos maiores defensores da Igreja. Seguia as regras à risca – não comia carne, rezava até ficar com os joelhos duros – e era devoto aos pobres. Pregava, dizendo: “O homem rico morrera como uma flor no campo. Pois mal o sol nasça com o seu calor abrasador, que seca o campo, a flor morre e a sua beleza perece. Assim será o homem rico.”

Apesar de ser de Tiago que existem mais detalhes, as provas arqueológi­cas parecem cada vez mais difíceis de encontrar. No passado mês de fevereiro, um grupo de investigad­ores, liderados pelo Kaare Lund Rasmussen, da Universida­de Southern Denmark, concluíram que os ossos guardados na igreja romana de Santi Apostoli, não pertenciam a Tiago, como se pensava. Motivo: são 160 anos mais novos.

E sobre os outros irmãos? Quase nada se sabe. Das irmãs nem se conhecem os nomes. José Brissos-Lino esclarece que, do ponto de vista teológico, o importante era a obra de Jesus Cristo. “Sabe-se muito pouco, por um lado, porque o foco dos evangelhos é em Jesus, o Salvador do mundo e o Messias de Israel, e, por outro lado, porque os textos bíblicos não são tratados de História mas apenas testemunha­s da Revelação de Deus aos homens.”

Como se trata de nomes comuns, existe também uma confusão de identidade­s. Por exemplo, Simão aparece referido como filho de Cléofas e primo de Jesus. Sobre José não há informaçõe­s, apenas o seu nome. Menos ainda se sabe de Judas que “é referido na tradição como ‘irmão [do Senhor] segundo a carne’”, diz Armindo Vaz. O teólogo defende que “naqueles que são ditos ‘irmãos’ de Jesus, a questão importante é a de perceber com que tipo de parentesco seriam ‘irmãos’.” Fica mais um mistério por resolver até aparecerem novas provas arqueológi­cas.

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“Aqui estão minha mãe e meus irmãos!”, terá dito Jesus
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Maria só “conheceu” José depois do nascimento de Jesus
g Maria só “conheceu” José depois do nascimento de Jesus

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