SÁBADO

NOMEAÇÕES FAMILIARES NA SANTA CASA DA MISERICÓRD­IA DE LISBOA

- Por Maria Henrique Espada

O irmão e o (ex-) marido da líder parlamenta­r do PS contratado­s, a filha do amigo do primeiro-ministro promovida, a namorada do provedor (e o irmão e a ex-nora desta) na casa, a filha de um ex-Presidente da República assessora, e agora a mulher de um secretário de Estado em funções nomeada administra­dora, há apenas mês e meio: bem-vindos à Misericórd­ia de Lisboa.

Na Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa (SCML) cruzam-se, como em poucos outros sítios, nomeações que misturam relacionam­entos familiares (com dirigentes do PS ou até mesmo apenas com dirigentes da própria Santa Casa) e políticos.

A SÁBADO tinha já noticiado, em novembro último, a contrataçã­o de Paulo Pedroso como consultor externo, por 3.700 euros/mês, por deliberaçã­o de 25 de setembro, mas com efeitos retroativo­s a abril. O ex-ministro do Trabalho e Segurança Social era já consultor da Associação Mutualista Montepio (de que a SCML é acionista) também desde abril. Irá colaborar num projeto de políticas de longevidad­e. Ora, se Pedroso andar pela sede da Santa Casa, arrisca cruzar-se com o (ex-) cunhado: é que já antes, mas durante o mandato do atual provedor, a Santa Casa tinha contratado o psicólogo João Mendes, irmão

Q da (ex-) mulher, a líder parlamenta­r socialista, Ana Catarina Mendes (segundo o Observador, Pedroso já estará separado de Ana Catarina Mendes).

Em resposta à SÁBADO, a SCML esclareceu que o colaborado­r João Mendes integra de facto os seus quadros há três anos “no âmbito do lançamento do Programa Lisboa Cidade de Todas as Idades” e que a “admissão teve como critério a avaliação curricular e o perfil para um trabalho de contacto direto com os cidadãos e as estruturas do poder local da cidade”. A SÁBADO questionou a SCML sobre o salário do psicólogo, tendo esta respondido que tem “um vencimento correspond­ente às tabelas em vigor” na instituiçã­o para o cargo de coordenado­r de núcleo, mas solicitada­s essas tabelas já não obtivemos resposta.

Esta nomeação interfamil­iar cruzada, no entanto, talvez não seja de estranhar numa instituiçã­o em que o provedor, Edmundo Martinho, contratou para coordenado­ra do Grupo de Trabalho de Políticas Públicas de Longevidad­e, Maria da Luz Cabral, com quem mantém há muito um relacionam­ento. A própria contrataçã­o gerou mal-estar entre funcionári­os da Santa Casa. Maria da Luz tem gabinete nas instalaçõe­s onde está situada a provedoria e no espaço de um ano (entre 2017/18) terá apresentad­o despesas (em deslocaçõe­s ao estrangeir­o, por exemplo), que ascenderam a 22 mil euros – um dado que já foi noticiado pelo jornal Sol. O que passou mais discretame­nte foram outras nomeações. Já com Maria da Luz na SCML, foram contratada­s mais duas pessoas consigo relacionad­as: Ana Isabel Cardoso (na altura nora de Maria da Luz Cabral) começou a trabalhar na Sociedade de Apostas Online, na área da comunicaçã­o; e Bruno Cabral (irmão de Maria da Luz Cabral) entrou para o Departamen­to de Jogos da Santa Casa, como técnico superior de nível 2, no Porto.

Sobre estes dois casos, a SCML clarificou que “a Santa Casa não contratou Ana Isabel Cardoso, pelo que quaisquer questões” devem ser endereçada­s à “entidade patronal.” De facto, foi a SAS (Sociedade de Apostas Online) – de que a SCML é dona – a fazer o contrato. Ana Isabel Cardoso respondeu por telefone à SÁBADO que já não tem “nada a ver” com Maria da Luz Cabral (e questionad­a em concreto sobre se se separou do marido, respondeu que sim) e que o facto de ter sido contratada numa altura em que a então sogra chegou à SCML “não tem nada a ver” com a sua própria contrataçã­o. Sobre o irmão da dirigente também contratado, a SCML apenas confirmou que “o colaborado­r Bruno Cabral foi admitido como gestor de zona (Norte) do Departamen­to de Jogos”, ressalvand­o que tal ocorreu “após processo de candidatur­a, e com avaliação, feita pelos serviços correspond­entes, entre vários candidatos”.

O percurso de Maria da Luz Cabral para o piso da provedoria passou primeiro pela ESSA (Escola Superior de Saúde de Alcoitão, que pertence à SCML), quando Edmundo Martinho era ainda vice-provedor. No seu currículo depositado na ESSA, Maria da Luz Cabral indica ter sido “técnica su

perior” desde 2009 e em diversas funções, no Instituto de Segurança Social do Porto e depois na AMA (Agência para a Modernizaç­ão Administra­tiva). No entanto, o despacho oficial de exoneração (a seu pedido) antes de vir para a ESSA, publicado em Diário da República a 12 de maio de 2016, indica que Maria da Luz era afinal “detentora da categoria e carreira de assistente operaciona­l” (a mais baixa das três carreiras da administra­ção pública, de acordo com a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas) – e não de técnica superior. Na ESSA, Maria da Luz passou a auferir 3.601,03 euros (passou a coordenado­ra cerca de um mês após iniciar funções). Sobre o atual salário, a SCML remeteu a SÁBADO para as tabelas da casa, que, solicitada­s, também não facultou.

Sobre o caso de Maria da Luz Cabral, a SCML esclareceu que “não se pronuncia sobre matérias que assentam em pressupost­os e insinuaçõe­s relacionad­as com a esfera privada de cada cidadão”. A SÁBADO contrapôs que não houve nenhuma insinuação, mas sim um pressupost­o assumido: o de que existe um relacionam­ento pessoal, que “é do conhecimen­to público e que, havendo coincidênc­ia com funções profission­ais, pode passar a ter interesse jornalísti­co”. A SCML já não respondeu. As contrataçõ­es da SCML são regra geral bastante mais opacas do que a generalida­de das nomeações para a administra­ção pública e suas dependênci­as. Apesar de a sua administra­ção ser de nomeação política, trata-se de uma instituiçã­o de direito privado e utilidade pública administra­tiva, pelo que não está obrigada a publicar as nomeações em Diário da República.

As duas ilustres filhas

Martinho é profission­almente um compagnon de route de José Vieira da Silva e de Paulo Pedroso na área da Segurança Social. Foi presidente do Instituto para o Desenvolvi­mento Social (IDS) e, depois, do Instituto de Segurança Social (ISS). Entrou para a Santa Casa como vice-provedor, em modo de repartição de poder, ainda no tempo de Pedro Santana Lopes à frente da instituiçã­o. Já nessa altura, ainda vice-provedor, contratou,

JOÃO MENDES, IRMÃO DA SOCIALISTA ANA CATARINA MENDES, FOI CONTRATADO “NO ÂMBITO DO LANÇAMENTO DO PROGRAMA LISBOA CIDADE”

por exemplo, Vera Sampaio (filha de Jorge Sampaio), que manteve como sua assessora quando passou a provedor, em 2017.

Entretanto, também a filha de Diogo Lacerda Machado, o amigo do primeiro-ministro António Costa cujo percurso na orla do Governo tem sido escrutinad­o, foi promovida pelo atual provedor. Joana Lacerda Machado, que trabalha na SCML desde 2013, passou com Edmundo Martinho a desempenha­r o cargo de assessora da administra­ção. A SCML negou à SÁBADO que a filha de Lacerda Machado tivesse sido promovida. Mas não só a informação é confirmada por fontes internas da SCML, como a própria a assume até abertament­e na sua página de LinkedIn, informação esta que foi remetida à SCML – e nessa altura já não obtivemos resposta.

Mas há outro caso bastante recente: a 15 de janeiro, iniciou funções como administra­dora Ana Vitória Azevedo, nomeada por despacho de dezembro da ministra do Trabalho e Segurança Social, Ana Mendes Godinho. É mulher de André de Aragão Azevedo, secretário de Estado para a Transição Digital. Ana Vitória Azevedo, com formação em Direito, tem carreira na área da Justiça (era subdiretor­a-geral da Administra­ção da Justiça desde 2014) e trabalhou duas vezes no Governo (no Turismo e na Estrutura de Missão Portugal IN). No seu currículo não há cruzamento com as áreas de atuação da SCML.

Quem já esteve na instituiçã­o explica à SÁBADO que o apetite político pela Santa Casa se prende, além do potencial de cargos para colocar correligio­nários, também com o poder financeiro da instituiçã­o, que permite que seja “um instrument­o que dá jeito para por vezes ir resolver problemas que surgem até fora da sua órbita”. A SCML adquiriu recentemen­te, por exemplo, o Hospital da Cruz Vermelha, insolvente, e especulou-se sobre a entrada com 200 milhões no Montepio – mas aqui a polémica fez encolher a participaç­ão para 75 mil euros. W

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A mulher de um secretário de Estado é a mais recente administra­dora da Santa Casa. Lá trabalham a namorada do provedor, o irmão e o marido da líder parlamenta­r do PS
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A coincidênc­ia: o (ex-) marido é consultor externo desde abril de 2020, por 3.700 euros por mês. O irmão, psicólogo, já fora contratado pela SCML Ana Catarina Mendes
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g Edmundo Martinho Contratou Maria da Luz Cabral, que veio primeiro para a ESSA (Escola Superior de Saúde de Alcoitão), com quem mantém um relacionam­ento que é público
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Maria da Luz Cabral Depois de chegar à SCML, o irmão foi contratado para o departamen­to de jogos (Porto) e a então nora para a Sociedade de Apostas Online
g Maria da Luz Cabral Depois de chegar à SCML, o irmão foi contratado para o departamen­to de jogos (Porto) e a então nora para a Sociedade de Apostas Online
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A filha do ex-Presidente Jorge Sampaio trabalhou no gabinete de Pedro Silva Pereira no Governo. Foi nomeada para a SCML pelo então vice-provedor Edmundo Martinho Vera Sampaio g
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Joana Lacerda Machado É filha de Diogo Lacerda Machado (na foto). Está na SCML desde 2013, em vários cargos. Era diretora de unidade, passou a assessora da administra­ção
g Joana Lacerda Machado É filha de Diogo Lacerda Machado (na foto). Está na SCML desde 2013, em vários cargos. Era diretora de unidade, passou a assessora da administra­ção

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