JOÃO PEDRO GEORGE
FAZER UM BOLO é um acontecimento, um dos grandes encantamentos da infância.
O espectáculo da família reunida à volta do açúcar, dos ovos, da farinha e da margarina transforma-se, para todas as crianças, num palco de felicidade suprema.
Sempre que em minha casa se espalhava a notícia de que a minha mãe se predispunha a confeccionar um bolo de laranja ou de iogurte, abria-se à minha frente um horizonte de emoções descontroladas e desencadeava uma corrida desvairada e frenética rumo à cozinha.
Na minha alimentação de criança, era perfeitamente lícito comer os restos da massa crua que ficava agarrada à colher de pau e que escorria das paredes da tigela.
Breves momentos de doçura que se contam entre os mais esplendorosos: enquanto me lambuzava com as sobras da massa, sentia-me um pequeno deus.
Até que o Salazar entrou na casa dos meus pais e substituiu a colher de pau, anunciando uma nova época na minha ainda curta existência.
Por culpa da espátula rapa-tachos, que a cultura popular apelidou de salazar, caí numa tristeza sem remédio, despedi-me de uma parte de mim, um vazio instalou-se no meu espírito.
Graças à borracha mole e fina da sua extremidade, o salazar consegue adaptar-se a todas as curvas e a sua acção é especialmente eficaz a suprimir esbanjamentos, a reduzir custos e a diminuir o tempo de trabalho manual.
A missão do salazar, não tenhamos dúvidas, é sumamente mesquinha: impedir os desperdícios, aproveitando completamente todas as sobras, e desapossar as crianças deste país do seu quinhão de massa crua de bolo.
Foi assim que a palavra salazar passou a existir para mim e entrou no meu imaginário infantil.
Quando mais tarde, no meu recolhimento de adolescente anti-social, ouvi aquele nome associado à figura do ditador do Estado Novo, tive um sobressalto. Afinal, a imagem do presidente do Conselho adequava-se mais às feições duras, modestas e rústicas da colher de pau. À sua grave monotonia, ao seu laconismo, à sua solidez, ao seu despojamento.
Só depois percebi que se tratava de uma alegoria da sua visão muito particular do País. E compreendi outra lição: enquanto o salazar está mais ligado às coisas da inteligência fria e distante, a colher de pau remete para as coisas do corpo (quem não sofreu na ponta dos dedos das mãos, in illo tempore, o castigo de umas quantas palmatoadas com uma colher de pau?).
De resto, tal como o salazar da cozinha tentou introduzir a ordem na preparação dos alimentos, afastando os profissionais da desordem, da agitação e da perturbação social (entenda-se: as crianças), o tirano de Santa Comba Dão tentou acabar com a suposta anarquia nas ruas.
Tal como aquele é pouco dado aos gastos supérfluos, este fundou uma di
para fiscalizar todas as despesas inúteis, defender-nos do desperdício, obrigar-nos a gastar o menos possível e impedir-nos de levar uma vida que não podemos.
O primeiro é económico, útil e frugal, representa a mulher como chefe moral da família e serve para ela administrar devidamente o pouco de que dispõe na cozinha, o segundo conduziu uma política orçamental severa, sóbria, rigorosa e implacável.
O rapa-tachos tem um ar modesto mas digno e honrado, como agradava ao ditador. É a metáfora de um país pobre filho de pobres (apenas um pau com uma borracha na ponta, que se vende sem embalagem e não precisa de ilustrações que nos indiquem a sua função e utilidade), já o Botas (alcunha com que também é conhecido, pelas botas de cano alto que usava para aliviar as dores dos pés) lembra a ascética e bem arrumada pobreza do Estado Novo, o círculo de rotinas, burocracias e repressão montado à volta dos portugueses.
Mas há outra maneira de analisar a transposição popular do nome de salazar para um rapa-tachos, de sondar o facto de ele ter atingido a fama de significar o regime salazarista, de revelar a ideia e a imagem que fazemos do ditador português.
Nas ditaduras nem tudo se reduz à alternativa entre colaboração e resistência institucionalizada. Nem a dominação do Estado Novo era total, nem as suas instituições afectavam todos os domínios do quotidiano (tão-pouco um ditador pode ter a certeza de ser obedecido e temido em todas circunstâncias).
Entre essas duas possibilidades – conformismo ou oposição activa – havia formas mistas de crítica ao regime, que misturavam colaboração e subversão, e que, do ponto de vista da experiência do dia-a-dia, nem sempre se conseguiam distinguir claramente.
Como mostrou o antropólogo James C. Scott, com o conceito de “arma dos fracos”, para se referir às práticas e estratégias de discordância dos grupos dominados ou subordinados, com pouco ou nenhum acesso aos meios de expressão social, a resistência pode exercer-se em diferentes níveis e em diferentes direcções.
Na verdade, havia várias estratégias ocultas, intrínsecas ou subliminares através das quais os cidadãos gozavam com o tirano em nome da liberdade, sem se exporem aos perigos da resistência ou da oposição directas.
Um exemplo de como a consciência social pode conduzir à piada corrosiva, que rebaixa o poderoso e eleva o humilde: quando surgiram em Portugal os pacotes de açúcar da empresa SEMPA (Sociedade de Empacotamento Automático de Açúcar), com o intuito de acabar com os açucareiros de que as pessoas se serviam, nos estabelecimentos comerciais, sem qualquer partadura cimónia, os frequentadores dos cafés e esplanadas de Lisboa decifraram aquele acrónimo recorrendo ao humor: SEMPA significava “Salazar envia militares para Angola” (ou, lido ao contrário, “Angola Pede Matem Mandem Embora Salazar”).
Em muitas situações, as pessoas recorriam a estratégias criativas, astutas e maliciosas, para criticar o regime, evitando o confronto aberto, com o qual não tinham nada a ganhar.
Utilizavam o humor – e, dentro deste, a ironia – como código retórico velado ou dissimulado, para conquistar pequenos espaços de liberdade e de dignidade (uma piada tanto pode conduzir-nos a situações perigosas, como ajudar-nos a sair delas, servindo de válvula de escape ou pequena consolação).
A atribuição do nome de salazar àquele banal e corriqueiro utensílio de cozinha é um belíssimo exemplo da criação de um registo escondido, cognitivo e verbal, que se converteu num recurso social e colectivo para os indivíduos subverterem simbolicamente o regime autoritário e expressarem a sua visão crítica do mundo, as suas preocupações políticas em relação ao estado de coisas, o seu cepticismo em relação ao futuro.
Do ponto de vista das mulheres, em particular, o Salazar em miniatura guardado na gaveta da cozinha, e que elas manipulavam e sujavam (às vezes de forma desapiedada e cínica) enquanto preparavam as refeições, pode ser interpretado como uma vingança contra a humilhação, a discriminação e o paternalismo condescendente a que o ditador as votara, encarando-as meramente como dóceis e submissas donas de casa, sujeitas à autoridade masculina.
Ao mesmo tempo que cumpriam as normas, fechando-se na cozinha, as mulheres ironizam e lançavam um protesto silencioso contra a sua condição e a sua posição na sociedade salazarista.
Uma época que esperemos não volte a repetir-se e que fique perdido para sempre nas brumas do tempo.
E daí quem sabe! W