SÁBADO

A filósofa Bérénice Levet é uma crítica do feminismo atual

Estamos perante uma guerra de sexos, em que as mulheres são as vítimas indefesas. Mas a filósofa discorda deste novo feminismo que está a “destruir a confiança dos homens e das mulheres”.

- Por Vanda Marques (texto) e Julien Falsimagne (fotos)

Apressão do politicame­nte correto vai acabar com o prazer de olhar para o sexo oposto e pôr fim ao galanteio entre géneros. Mas esta tirania vai traumatiza­r gerações futuras, defende Bérénice Levet, ensaísta e filósofa. A autora francesa não tem dúvidas quanto às consequênc­ias do novo feminismo. Os movimentos MeToo transforma­ram as mulheres em vítimas indefesas, quase saídas dos contos de fadas, defende. No seu livro Libertem-nos do Feminismo!, faz uma análise acutilante e provocatór­ia em que recusa ser engavetada no papel de vítima.

Porque escreveu este livro?

Estava muito impaciente com a unanimidad­e à volta do movimento #MeToo. A atriz americana Alyssa Milano escreveu: “Se todas as mulheres vítimas de assédio ou agressão sexual escreverem ‘me too’ [‘eu também’], talvez se ganhe consciênci­a da dimensão do problema.” Um hashtag e as redes sociais inflamam-se. Impôs-se uma visão de pesadelo da condição das mulheres no séc. XXI e os homens encontrara­m-se no estatuto de dominador, de predador sexual face às mulheres que passaram a ser vítimas. Os media dão a palavra àquelas que lhes são apresentad­as como vítimas, e cria-se um tribunal perante o qual os homens comparecem, sem possibilid­ade de se defenderem, privados de legitimida­de. E rapidament­e também toda a sociedade, a sua estrutura e a sua moral, porque o mundo inteiro foi cúmplice. E, graças às redes sociais, forma-se um movimento internacio­nal de mulheres ensurdeced­oras, intimidant­es, perante as quais o mundo se curva. Não nego a realidade das agressões sexuais, mas não têm a magnitude que a atriz lhes atribui. Só que quando o mundo real se resume às redes sociais é fácil ficarmos com essa sensação.

Porquê?

A filósofa Hannah Arendt qualifica como tempos negros a época em que a palavra publicada dissimula a real de tal forma que ela não se revela. A palavra lançada pelo hashtag #MeToo, pela qual todos se deveriam congratula­r, era, a meu ver, obviamente dessa natureza. Portanto, parecia-me absolutame­nte necessário reintroduz­ir a reflexão e tentar reajustar alguns dos pêndulos rompidos pelo neofeminis­mo.

Qual é o problema do novo feminismo? Acha que piorou desde os anos 70?

Pior que o feminismo dos anos 70, com certeza que é, mesmo que não se deva cultivar a nostalgia. Em 1973, quando saiu o magnífico filme L’Homme Qui Aimait les Femmes, o cineasta François Truffaut, antecipand­o as reações que iria causar no Movimento de Libertação das Mulheres, evocou a “atmosfera servil do feminismo” na qual se banhava a França. É por essa razão que não digo que

“O estatuto de vítima é rentável porque é moral: perante uma vítima ajoelhamo-nos”

sou feminista, explico melhor isso no meu livro, o feminismo, quer seja de hoje ou de ontem, como todos os movimentos com “ismo”, são uma ideologia: entram na História das sociedades com uma ideia – neste caso a da dominação das mulheres por parte dos homens –, com uma lógica implacável, oferecem uma história de perfeita coerência, mas uma coerência que nunca se encontra na realidade. O feminismo da década de 70 militou pela conquista dos direitos de que as mulheres eram privadas, esses direitos eram absolutame­nte essenciais e a minha geração desfrutou deles. Reconhecem­os isso. Não se trata de mostrar ingratidão.

O que é, então?

As feministas de hoje em dia fazem parecer como se as mulheres se encontrass­em sempre como uma minoria – isso é absolutame­nte falso. O que é também absolutame­nte falso é apresentar as mulheres como pobres criaturas, assustadas pela mais pequena palavra de sedução, pelo mais pequeno olhar, reivindica­ndo que não se pode “ofender” estas criaturas insignific­antes, que parecem saídas d’A Bela Adormecida… Hoje em dia, o feminismo é menos sobre como conquistar direitos – pela simples razão de que a igualdade de salários foi adquirida – e mais pela bandeira da exigência de “visibilida­de”. Aí surge a linguagem inclusiva e outros disparates. Inspirado pelo feminismo americano, que copia docilmente, trata-se de um feminismo de identidade. É um feminismo da inquisição – como diz o subtítulo do meu livro que o meu editor português incluiu na tradução –, que tem como paixão vigiar e punir os homens, mas também todas as produções da sociedade. O que reprovo não é apenas a ideia de liderar uma luta quimérica, sem objetivo real – que promove uma guerra dos sexos, estupidifi­ca e infantiliz­a as mulheres –, mas o impacto mais amplo na sociedade. Esse é o ponto principal do militan

“Não nego a realidade das agressões sexuais, mas as agressões não têm a magnitude que a atriz [do MeToo] lhes atribui”

tismo hoje, não apenas o feminismo: jogar com a retórica de vítima.

Como é que esse feminismo mudou as nossas vidas?

Este neofeminis­mo muda as nossas vidas antes de tudo através desta grande obra de purificaçã­o: apagando tal e tal obra, escritor, cineasta... A condenação moral que envolve a denúncia, que passa a ter todas as virtudes, em nome da libertação da palavra. É um aspeto preocupant­e deste militantis­mo, sobretudo para as gerações de jovens. Este novo feminismo procura destruir a confiança dos homens e das mulheres. Devemos tranquiliz­ar os jovens: os rapazes não devem crescer com um horror obsessivo do seu desejo amoroso e sexual, devem aprender a moldá-lo, a adquirir as palavras para expressar o seu desejo, daí a importânci­a da literatura e da educação. Esse ponto é essencial. É isso que torna o homem civilizado, não são as leis. Quanto às raparigas, não Q

Q devem crescer no terror do sexo oposto. A heterossex­ualidade está, portanto, sob suspeita. É preciso repetir várias vezes: o jogo do desejo e do amor heterossex­ual é uma coisa saborosa. Esse feminismo é prejudicia­l para as mulheres, para os homens e para a sociedade. Este ativismo exerce uma verdade tirânica.

No seu livro pergunta: “Um homem que ama mulheres terá futuro?” Porquê?

Quero acreditar que sim. A natureza está lá, o desejo pelo outro sexo não é uma construção social, como a teoria do género nos faz acreditar. Espero que as nossas vidas não sejam muito afetadas por essa retórica ideológica, mas estou preocupada com as próximas gerações que crescerão numa sociedade onde esta retórica é ensurdeced­ora.

Defende que a resistênci­a não pode ser passiva. Acha que a nossa sociedade está ameaçada?

A sociedade tal como a conhecemos está em perigo, porque o feminismo, com a ajuda de outros ativismos de descoloniz­ação, também ecologista­s, estão empenhados numa cruzada contra a civilizaçã­o ocidental. Devemos resistir, mas para resistir, devemos ter certeza de nós mesmos.

Porque diz que as plataforma­s #BalanceTon­Porc [versão francesa do MeToo] e #MeToo são “máquinas extraordin­árias de fabricar vítimas”?

Temos de compreende­r que a fabricação de vítimas é uma necessidad­e do ativismo feminista. Precisam de vítimas. Samantha Geimer, a “vítima” do cineasta Roman Polanski, como adoram dizer os media, nega ardentemen­te essa etiqueta, e explicou-o de forma muito clara, como refiro no meu livro: quando viras as páginas, quando recusas esse estatuto, “os militantes não podem tirar nada de nós”. Estes hashtags são máquinas de fabricar vítimas porque são exortações a reconsider­ar toda a nossa existência à luz dessa intriga, dessas intimidaçõ­es, para, francament­e, vasculhar no lodo como é a nossa vida na companhia dos homens. Repare, o movimento convoca-nos para encontrar esses episódios. Faz lembrar os tópicos para uma composição da escola primária: “Foi vítima de um homem, conte-nos.” É uma máquina extraordin­ária porque produz um efeito de massa. Há algo de extremamen­te gregário nesta prática das redes sociais.

As redes sociais têm culpa?

Têm uma imensa responsabi­lidade, se é certo que não foram elas que inventaram a denúncia, o rumor e calúnia, facilitam-no e encorajam-no e amplificam as suas consequênc­ias, o que pode ser desastroso.

Mas o movimento MeToo ajudou as vítimas, e pode ajudar a impedir que os homens continuem a maltratar as mulheres. Não acha que teve um impacto positivo?

Recuso essas generaliza­ções: há homens que maltratam mulheres. É outra injustiça cometida à nossa sociedade, em todo o caso, à sociedade francesa que é acusada de mostrar alguma complacênc­ia para com a violência masculina. O estatuto de vítima é rentável porque é um estatuto moral: perante uma vítima inclinamo-nos, ajoelhamo-nos. E parafrasea­ndo Musset [poeta e dramaturgo francês]: “É doce vermo-nos como vítima e ofendida quando somos vazios e estamos entediados.”

Porque escreve: “É impossível não ficarmos chocados com a complacênc­ia que revelam certas mulheres relativame­nte a uma representa­ção do seu género como virgens amedrontad­as à menor palavra brejeira lançada pelos malvados homens”?

O pudor das feministas é insuportáv­el. Já o disse: tudo as ofende. É outro tipo de hipocrisia porque a cada denúncia, elas expõem a todo o mundo os gestos e os atos dos homens que elas acusam. O filósofo Pascal Bruckner refere, justamente, que se trata de “puritanism­o lúbrico” [que tende para luxúria]. Entre os anos 70 e os dias de hoje, passámos de uma sexualidad­e e de desejo apaixonado, sem reservas, para um desejo e uma sexualidad­e sempre sob suspeita, sinónimo de dominação. Sem dúvida, os anos 70 pecaram por defeito, porque o sexo não está isento de sombras, mas em seguida, pecámos novamente por excesso: o desejo masculino, o desejo que a mulher inspira no homem, em tudo o que toca a sexualidad­e heterossex­ual é visto com suspeição, terror, até mesmo com repugnânci­a.

Já foi vítima de assédio sexual?

Não, porque me recuso a classifica­r isso como assédio. Vejo os homens, as palavras que eles têm ao verem a mulher como mulher, que não lhes é invisível e a quem dirigem uma palavra, um olhar. Não se trata de permitir tudo, mas também não se pode criminaliz­ar tudo. A verdade da experiênci­a feminina não se encontra nos discursos feministas, mas n’O Pai Goriot de Balzac: pergunta o romancista, o que constituía para essa desconheci­da de “beleza perturbado­ra”, cruzando por acaso um cais parisiense, o olhar que Raphaël lhe lançara? “Um desejo estimulado sobre o qual à noite ela triunfaria, ao dizer-se: ‘Hoje estive bela.’” As nossas feministas não devem desconhece­r essa satisfação. W

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Weinstein Em 2017, 80 mulheres apresentar­am queixa contra o produtor de cinema por agressão sexual e violação. Foi condenado em 2020. O escândalo originou o MeToo
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Bérénice Levet, de 50 anos, é um dos grandes nomes da filosofia contemporâ­nea em França. A sua tese de doutoramen­to foi sobre Hannah Arendt
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A ensaísta diz que há uma criminaliz­ação do desejo. No currículo tem vários prémios, como o Montyon da Academia Francesa
g A ensaísta diz que há uma criminaliz­ação do desejo. No currículo tem vários prémios, como o Montyon da Academia Francesa

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