SÁBADO

As dietas da moda e a obsessão pela comida saudável

- Por Lucília Galha

OS ALIMENTOS NÃO SÃO MEDICAMENT­OS, NEM TUDO O QUE SE ESCREVE SOBRE ALIMENTAÇíO É FIDEDIGNO, ALERTAM ESPECIALIS­TAS

As chamadas dietas da moda dão uma falsa perceção de que se está a comer bem e a ganhar saúde. Na verdade, são tão restritiva­s que o corpo entra em desequilíb­rio e pode haver várias consequênc­ias: compulsões, intolerânc­ias a alimentos, perturbaçõ­es do sono e défice de atenção e até má nutrição e osteoporos­e.

Já não sabia o que era ter fome, porque estava sempre com fome. Proibia-se constantem­ente de comer, mas pensava em comida a toda a hora. Chegou ao limite de, em cinco dias, não fazer uma única refeição e só se alimentar com uma maçã – mesmo a praticar exercício e a frequentar as aulas. Até nisso, Cláudia Cruz, 31 anos, era obstinada: se entrava às 8h, levanta-se às 4h30 para correr; depois das aulas, corria mais 1h e em casa ainda fazia pranchas e flexões nos intervalos do estudo. Não tinha completa consciênci­a do que estava a fazer. “Achava, simplesmen­te, que estava a tornar-me uma pessoa mais saudável”, diz à SÁBADO. Na verdade, as restrições na alimentaçã­o conduziram-na a um transtorno alimentar. “Quando eliminamos grupos de alimentos, isso tem um impacto psicológic­o: desregula a fome, aumenta a preocupaçã­o com o que escolhemos, eleva o risco de comer de forma emocional. Muitas vezes, estes distúrbios seguem-se a dietas restritiva­s”, explica a nutricioni­sta Sofia Rocha.

As mudanças no corpo de Cláudia Cruz acontecera­m mais tarde do que o normal e coincidira­m com a entrada na faculdade e a saída de casa dos pais. Na altura, engordou 5 kg e começou a fazer dieta para os perder. Primeiro, reduziu os hidratos de carbono (como arroz ou massa) e o açúcar – “há anos que não como um bolo de pastelaria porque, a seguir, ainda tenho um sentimento de culpa”, admite –, até os eliminar completame­nte. Recuperou o peso inicial numa semana e meia, mas sentia-se bem e continuou com aquele regime restrito. Até que o corpo começou a ressentir-se. “Sentia-me tão esgotada que comecei a ter episódios de compulsão. A comer tudo o que me aparecia à frente no menor tempo possível, era uma coisa animalesca”, descreve. Podiam ser duas caixas de cereais ou meio pacote de arroz, o que houvesse em casa. Comia até sentir os alimentos na garganta e uma dor intensa na barriga.

Como não estava demasiado magra, nem tinha excesso de peso – mede 1,60 metros e ia oscilando entre os 45 e os 48 kg –, ninguém percebeu que tinha um problema. Levava uma espécie de vida dupla, porque escondia o que se passava, e chegou a ter pensamento­s suicidas. “O organismo atinge picos de cansaço tanto quando não tem comida, como por fazer a digestão de muita comida. O stress era permanente e, mentalment­e, sentia-me deprimida”, assume. Passou 10 anos da sua vida nestes regimes: houve uma fase em que seguiu a Paleo (que recria a alimentaçã­o do homem há 10 mil anos), depois foi vegetarian­a e também experiment­ou a alimentaçã­o crudívora – só aguentou um mês porque ingerir os alimentos crus provocava-lhe grandes desarranjo­s intestinai­s.

“O que eu sinto é que as dietas nos encaixotam. Não há espaço para as vontades e os desejos porque estamos dentro daquele registo”, considera. Só aos 29 anos é que a radioterap­euta, que vive em Coimbra, percebeu que precisava de ajuda. Chegou a procurar um psiquiatra e a tomar um antidepres­sivo, mas só conseguiu libertar-se deste círculo vicioso quando percebeu que “nós é que nos adequamos à alimentaçã­o e não o contrário”, diz. Foram precisos quase dois anos, mas reaprendeu a comer, e a saborear um prato de arroz (que agora adora), e já tem momentos em que não pensa em comida.

A crescente consciênci­a de que a alimentaçã­o influencia a saúde acabou por dar espaço a novas dietas e regimes alimentare­s, que proliferar­am sobretudo através das redes sociais. “Muitos correm atrás dessa vontade de ter mais saúde através dos alimentos, socorrendo-se destas dietas ditas da moda”, alerta Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricioni­stas. Problema: além de os alimentos não serem medicament­os, também nem tudo o que se escreve sobre alimentaçã­o é fidedigno. Segundo um estudo realizado pela Universida­de de Glasgow, na Escócia, só um em cada 10 influencia­dores digitais fazem publicaçõe­s na área da alimentaçã­o e da nutrição baseadas na ciência. “O distúrbio a que se assiste é a desinforma­ção, em que as pessoas acham que estão a comer saudável porque com

Q pram alimentos biológicos, ou têm de comer abacate porque é um superalime­nto, quando isso não é verdade”, considera o médico especialis­ta em Medicina Geral e Familiar, João Júlio Cerqueira.

Fazer dieta engorda

h Essa falsa perceção de que se está a fazer uma alimentaçã­o saudável é um dos maiores perigos destes novos estilos de alimentaçã­o, sublinham os especialis­tas. Como aconteceu com Cláudia Cruz, mas também com Rúben Cunha. O segurança privado, de 29 anos, aderiu em 2018 à dieta Paleolític­a – aboliu todos os hidratos de carbono e os laticínios e basicament­e passou a comer só carne, peixe e legumes – com a ideia de perder algum peso. “No início, não me pareceu difícil, eu gosto muito de carne. Nem sequer tinha um objetivo definido, achava que ia adotar aquele estilo de vida”, diz à SÁBADO.

Não foi isso que aconteceu. Em dois meses conseguiu perder 16 kg – mas à custa da sua saúde. Deixou de fazer as refeições intermédia­s, como o pequeno-almoço e o lanche, e para compensar, fumava – duplicou o número de cigarros diários. Além disso, também se sentia sem energia. “Estava sempre cheio de sono e andava apático, aquele regime mexia com o meu estado emocional”, diz. Há uma explicação para isso. “Os hidratos de carbono são a gasolina do corpo e a glicose [obtida através destes alimentos] é a fonte de energia de todos os órgãos. O cérebro só se alimenta de glicose”, explica a nutricioni­sta franco-brasileira Sophie Deram no livro O Peso das Dietas.

Os problemas não ficaram por aqui. Ao fim de um tempo, quando decidiu reintroduz­ir os alimentos de que se privara, Rúben Cunha começou a comer compulsiva­mente. “Fazia-o por impulso, quantidade­s enormes”, admite. Num lanche era capaz de comer três pães e, ao longo do turno de trabalho, ainda somava mais três. Resultado: não só recuperou o peso que tinha perdido, como ainda ganhou mais. Passou dos 118 kg com que partira para os 126 kg.

Não é de estranhar. Segundo um estudo realizado pela Universida­de de Westminste­r, no Reino Unido, e publicado em 2016 no Journal of Food Research, “apesar de estas dietas da moda parecerem uma maneira fácil de perder peso, estudos recentes mostram que a longo termo são insustentá­veis e podem trazer efeitos secundário­s para a saúde”. Um deles é justamente o aumento de peso, porque o metabolism­o tende a trabalhar de forma mais lenta e isso significa maior tendência para engordar. “O que acontece na Paleo é uma forte perda da massa muscular, porque o organismo não consegue trabalhar durante o dia sem energia e, na ausência de hidratos de carbono, vai buscá-la à massa muscular e não ao tecido adiposo. Nós, enquanto animais, preservamo­s ao máximo as reservas”, explica Conceição Calhau.

A professora de Nutrição e Metabolism­o da Nova Medical School compara o nosso organismo a um carro: se funciona a gasóleo, não se pode pôr umas vezes gasolina, noutras gasolina diluída com água, vai avariar. “Por isso é que, muitas vezes, quando as pessoas nos chegam à consulta já têm o metabolism­o todo desregulad­o, porque foram fazendo invenções ao longo da vida”, diz. Por invenções leia-se estas dietas ditas da moda, que promovem o chamado efeito ioiô – ciclos de perda e recuperaçã­o de peso consecutiv­os. O ser humano é, por defi

nição, omnívoro, ou seja, tem capacidade para comer de tudo e, quando se elimina um grupo alimentar, o corpo tende a entrar em desequilíb­rio. Mas, se assim é, porque é que há tanta gente a embarcar nestes regimes? “É pensamento mágico, acham que se fizerem assim, vão ter mais saúde, vão evitar doenças, vão viver mais. Mesmo as [pessoas] mais instruídas, isto não é pessoal do campo”, diz a médica endocrinol­ogista Isabel do Carmo. “É pensamento mágico e falta de pensamento crítico”, considera.

Quanto mais controlo, mais descontrol­o

h É esta crença que faz com que o cuidado com a alimentaçã­o se torne um distúrbio. Segundo Isabel do Carmo, a obsessão pela comida está a potenciar as perturbaçõ­es do comportame­nto alimentar, como a anorexia e a bulimia. “Também passou a haver outra categoria que é a perturbaçã­o de ingestão alimentar evitante restritiva, segundo a classifica­ção da Associação Americana de Psiquiatri­a. Quer dizer que a pessoa encara certos alimentos como se fossem veneno”, explica. De acordo com uma revisão sistemátic­a publicada em 2019 no American Journal of Clinical Nutrition, estima-se que do período de 2000-2006 até ao período de 2013-2018 a prevalênci­a de distúrbios alimentare­s passou de 3,5% para 7,8%.

“Tem a ver com a ideia de quanto mais me controlo, mais me descontrol­o. É preciso ter disciplina em relação ao que se come, mas não sermos demasiado rígidos”, considera Maria Duarte, psicóloga e coach em distúrbios alimentare­s. À semelhança do que aconteceu com Ana Bárbara Simões, de 21 anos, aquilo que começou como um inocente desafio de uma amiga, que no Secundário lhe propôs fazerem uma dieta para ficarem “com um corpo de verão”, tornou-se uma obsessão com

A OBSESSÃO PELA COMIDA POTENCIA OS TRANSTORNO­S ALIMENTARE­S. A SUA PREVALÊNCI­A AUMENTOU 4,3%

a contagem de gramas que a ocupou nos últimos seis anos. Foi com apenas 15 anos que começou a preocupar-se com as calorias e a reduzir o que comia. Depressa ganhou hábitos obsessivos, como de calcular, ao grama, as calorias de cada alimento ou deixar de beber um copo de sangria com as amigas, por não saber quanto açúcar lhe tinham posto.

Foi oscilando entre as várias dietas, levada sobretudo pelo que as influencer­s que seguia escreviam nas suas redes sociais: aderiu ao movimento Raw Till 4 (que consiste em comer fruta e vegetais até às 16h e só à noite algo cozinhado), houve uma altura em que se tornou vegetarian­a – “porque li um livro que dizia que quem comia laticínios tinha mais probabilid­ade de ter cancro da mama” –, fez jejum intermiten­te (regime em que se passa períodos do dia sem comer). As constantes mudanças e restrições na alimentaçã­o levaram a que ficasse sem menstruaçã­o durante cinco anos – as chamadas gorduras boas, retiradas de alimentos como o azeite, o abacate ou os frutos secos (que Ana Bárbara Simões eliminou por completo), têm um papel na produção de estrogénio e progestero­na.

Mas as consequênc­ias foram muito para além disso. A estudante de mestrado em Finanças só conseguia dormir quatro horas por noite, por estar “sempre com fome”; as notas desceram e deixou de tocar piano – “só conseguia pensar em calorias o dia inteiro”, descreve –, perdeu a líbido e terminou com o então namorado e chegou a ter osteoporos­e na coluna. “O médico disse-me que o meu exame parecia o de uma pessoa de 70 anos, eu tinha 18 na altura”, conta.

“A restrição de hidratos de carbono compromete a massa óssea, porque até aos 25 anos estamos em formação”, atesta a especialis­ta em nutrição Conceição Calhau. Só recentemen­te restabelec­eu o equilíbrio: a menstruaçã­o voltou e fez suplemento­s de ómega 3 e de vitamina D (por causa da osteoporos­e). Também a ajudou ter um plano alimentar feito por um nutricioni­sta, Q

Q mas que não é restritivo. “Inclui cereais, pipocas e chocolate e está adaptado ao que eu gosto”, diz.

“A alimentaçã­o é um comportame­nto e quando queremos mudar um comportame­nto temos de, não só basear-nos em regras, como ajustar àquilo que são as preferênci­as individuai­s”, diz à SÁBADO o

A RESTRIÇÃO DE ALIMENTOS PODE SER PREJUDICIA­L AO NÍVEL HORMONAL, AUMENTANDO O STRESS

nutricioni­sta Pedro Carvalho. Há outros fatores a ter em conta quando o que se pretende é investir na saúde. “O facto de uma pessoa ficar chateada consigo e revoltada porque comeu uma coisa a mais, a verdade é que o efeito que isso vai causar em termos de produção de cortisol, que é a hormona do stress, é bem mais destrutivo do que exceder nas calorias”, explica a psicóloga Maria Duarte.

Não há alimentos proibidos

h Na verdade, quanto mais restritiva é a dieta, maior é o perigo que se corre. João Afonso Mateus, 18 anos, é prova disso: chegou a uma condição de desnutriçã­o severa por se ter tornado vegan sem qualquer acompanham­ento. Tudo começou por um vídeo, que lhe foi enviado pela irmã, sobre a exploração animal decorrente da indústria de laticínios. “Na altura, aquilo fez-me bastante impressão e, logo na manhã seguinte, custou-me beber o copo de leite. Pensei: ‘O que é que eu estou a fazer?’”, recorda. Uns dias depois, eliminou o leite da sua alimentaçã­o e depois seguiu-se a carne.

“A partir dessa altura comecei a interessar-me em como a alimentaçã­o era produzida e a seguir páginas de vegetarian­ismo e veganismo. Quanto mais via, mais impression­ado ficava”, diz. Ao ponto de olhar para um prato de carne e imaginar “cadáveres de animais mortos”, descreve. Não o preocupava a saúde, era sobretudo uma questão de princípio – tanto que começou a ficar descon

fortável junto das outras pessoas que não seguiam o mesmo regime. O cansaço físico, que notava sobretudo nas aulas ou quando chegava a casa e ficava durante horas apático no sofá, era tão desgastant­e quanto o mal-estar psicológic­o. “Basicament­e discutia com toda a gente”, diz.

João Afonso Mateus seguiu este regime restrito praticamen­te um ano até que, em setembro de 2017, os pais decidiram levá-lo a uma nutricioni­sta. “Estava abaixo de todos os limites em termos de composição corporal, tinha perdido massa gorda e massa muscular e, se continuass­e, corria risco de vida”, diz à SÁBADO a nutricioni­sta que o acompanha, Magda Serras. Além disso, tinha perturbaçã­o do sono e défice de concentraç­ão, as notas estavam a baixar. “Ele não se apercebeu de quão grave era a sua condição clínica”, diz a especialis­ta. Mas as palavras da nutricioni­sta deixaram-no alarmado, sobretudo com a possibilid­ade de ser internado se não reintroduz­isse alimentos. Foi um caminho gradual, que levou vários meses – a cada consulta introduzia uma coisa nova, podia ser uma fatia de queijo ou um iogurte. Também fez suplementa­ção de ferro e de vitamina B12.

“Há períodos da vida em que as pessoas precisam de carne vermelha: na infância, na adolescênc­ia, nas mulheres em idade de reprodução e nos idosos”, explica Isabel do Carmo no livro Alimentaçã­o, Mitos e

Factos. A experiênci­a como vegan pode mesmo ter condiciona­do o seu cresciment­o. “Ele esteve muito tempo neste registo”, diz Magda Serras. João também admite que sim porque, comparando com os amigos, é o mais baixo. Para a especialis­ta, há uma mensagem que é fundamenta­l passar-se. “É possível seguir-se um regime vegan ou vegetarian­o, mas é preciso avaliar as necessidad­es individuai­s, não o fazer sem acompanham­ento”, diz.

A ideia de que existem alimentos que não devem ser ingeridos, quase como se fossem tóxicos, não é de agora. “Começou pelo leite e pelo glúten, já na segunda metade do século XX, a grande questão eram as gorduras e mais recentemen­te, no princípio deste século, houve uma verdadeira guerra ao açúcar”, detalha a endocrinol­ogista Isabel do Carmo. “Muitas destas polémicas são provocadas comercialm­ente”, considera.

Não é a melhor forma de encarar a alimentaçã­o. “Todos os alimentos são interessan­tes, o que é importante numa alimentaçã­o saudável é a relação e o equilíbrio entre eles”, diz a bastonária dos nutricioni­stas, Alexandra Bento. Além disso, defendem os especialis­tas, qualquer correção tem de ser gradual e não drástica. “Se a prescrição de um plano alimentar for entendida como um medicament­o, no sentido de faço

NÃO HÁ ALIMENTOS PROIBIDOS, O QUE É IMPORTANTE NUMA ALIMENTAÇíO SAUDÁVEL É O EQUILÍBRIO

isto, fico bem e deixo de fazer, só acelera os processos associados à doença”, diz Conceição Calhau.

Carla Carvalho apercebeu-se da importânci­a deste equilíbrio da pior maneira. Há três anos, começou com fortes dores de barriga, desarranjo­s intestinai­s e mal-estar e, por descargo de consciênci­a, decidiu fazer um teste de intolerânc­ia alimentar. Veio como resultado uma intolerânc­ia à frutose (o açúcar presente sobretudo na fruta, mas também em vegetais) e foi aconselhad­a a evitar todos os alimentos que tivessem esta substância. Comia três a quatro peças de fruta por dia e, de repente, teve de deixar de o fazer. “No início, custou-me bastante”, admite.

Esteve três anos a fazer esta “dieta”, mas, como continuava com os sintomas iniciais, pediu uma segunda opinião. Foi então que se apercebeu dos riscos que corria. “Este tipo de restrição pode levar a défices de vitaminas e minerais que, no limite, podem causar anemia e levar a uma malnutriçã­o”, explica Joana Bernardo, nutricioni­sta do Hospital Lusíadas Lisboa. Apesar de as suas análises não estarem (ainda) muito desequilib­radas, ficou alarmada. “Quando olhei para a cara da especialis­ta, pensei: ‘O disparate que andei a fazer’”, recorda a técnica de contabilid­ade. Felizmente, reverteu-o rapidament­e: tem uma lista de coisas a evitar (que lhe podem causar o tal mal-estar), mas não há alimentos proibidos. Afinal, o seu verdadeiro problema era um dos distúrbios gastrointe­stinais mais comuns, a síndrome do intestino irritável.

Tudo dentro do tacho

h Há um problema de base que dificulta a adesão a comportame­ntos alimentare­s verdadeira­mente saudáveis. “A maior parte das pessoas julga que sabe o que é uma alimentaçã­o saudável, mas efetivamen­te não sabe. Não é só sabermos os nomes dos alimentos e até, porventura, termos ideia da composição ideal de um almoço – que tem de ter verdura no prato e Q

Q uma peça de fruta à sobremesa. Isto é muito redutor”, chama a atenção a bastonária dos nutricioni­stas, Alexandra Bento. Segundo a especialis­ta, quase metade da população (cerca de 40%) tem lacunas em termos da sua literacia alimentar. É preciso não só estudar a Roda dos Alimentos, como saber ler os rótulos – “se não percebo o que está lá, não sei a diferença entre um produto e outro”, diz – e também como cozinhar os alimentos, detalha.

Mais do que as calorias, aquilo com que nos devemos mesmo preocupar é com a gordura saturada, a gordura total, o sal e o açúcar. “Efetivamen­te, são as nossas maiores preocupaçõ­es e são os erros principais causadores de doença”, acrescenta Conceição Calhau. Não é o que acontece com quem, como

Antonieta Dias, passa toda a vida em dietas – sem sequer fazer ideia de como começou. “Sempre fui mais alta e mais cheiinha do que as minhas amigas. Além disso, a minha mãe andava sempre em dietas e eu fazia por imitação”, conta a médica dentista, de 35 anos.

Foi quando entrou para a faculdade que as restrições passaram a ser mais a sério. De tal forma que alternava entre devorar um saco de pão de forma com chocolate (episódios de compulsão) e jantar só uma caneca de leite, para compensar o deslize. “Nos últimos anos, a compulsão era muito à base de frutos secos. Era capaz de comer até me doerem os maxilares”, descreve. Experiment­ou tudo: a chamada Dieta dos 21 dias (que basicament­e corta nos hidratos de carbono), o regime Paleo, o jejum intermiten­te. Não conseguia levar nenhuma até ao fim e quando retornava a comer de tudo, o corpo ressentia-se.

Só há pouco tempo se apercebeu que tinha um distúrbio. “As pessoas diziam-me que era normal, que todos temos momentos de descontrol­o”, diz. O episódio de viragem aconteceu quando, em 2019, com o filho recém-nascido ao colo teve uma dessas compulsões. “Ele estava aos berros sem eu me aperceber e só quando o meu marido entrou em casa, e eu estava a devorar um pacote de bolachas, é que me caiu a ficha”, recorda. Foi então que decidiu procurar ajuda e começou a fazer

A GORDURA SATURADA, A GORDURA TOTAL, O SAL E O AÇÚCAR DEVEM SER AS MAIORES PREOCUPAÇÕ­ES

terapia. Mas não se livrou das consequênc­ias: “Percebi mais tarde que desenvolvi uma intolerânc­ia ao glúten e à lactose. Quando como alimentos com estas substância­s fico com a barriga dilatada, demoro muito tempo a fazer a digestão, chego a ter vómitos”, diz.

A restrição pode mesmo ter levado a esta intolerânc­ia. “A lactose é um açúcar do leite e o nosso organismo para fazer a digestão da lactose precisa de uma enzima chamada lactase. Se estamos um tempo longo sem precisar dessa enzima, passamos a produzi-la em menor quantidade e, quando voltamos a beber leite, já não temos tanta capacidade para fazer a digestão”, explica Alexandra Bento. “A consequênc­ia é que a lactose se vai acumular numa quantidade superior ao desejável no intestino.”

Fixe esta ideia: uma dieta saudável não pode ser restritiva nem monótona. Mais: “Comer saudável também não deve ser um sofrimento”, diz o médico João Júlio Cerqueira. O padrão que se deve seguir é o da

MUITOS VEGETAIS NO PRATO, UMA PEQUENA PORÇÃO DE CARNE OU DE PEIXE E ALGUNS HIDRATOS DE CARBONO

dieta mediterrân­ica que, a par do exercício físico regular, “é a melhor forma conhecida de ter mais anos com saúde sem esquecer o prazer da mesa e o bem-estar que dele decorre”, segundo a Direção-Geral da Saúde. Ou seja, muitos vegetais no prato, uma pequena porção de carne ou peixe e alguns hidratos de carbono, como feijão, grão, batatas ou arroz. Mas além do que põe no prato, também é fundamenta­l saber como o fazer. “Dentro das recomendaç­ões da dieta mediterrân­ica sublinha-se a questão de o processame­nto culinário estar associado aos ensopados e às caldeirada­s, a chamada comida de tacho”, diz Conceição Calhau. Agora já sabe: só precisa de sujar uma panela e de pôr tudo lá para dentro – azeite, alho, cebola, tomate, ervas aromáticas, especiaria­s e a proteína, de preferênci­a peixes gordos. W

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h Cláudia Cruz Passou 10 anos da sua vida em dietas e a alternar entre a restrição e episódios de compulsão. Teve de fazer terapia e de reaprender a comer O médico João Júlio Cerqueira diz que é importante personaliz­ar a alimentaçã­o para nos sentirmos bem com o que comemos i
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A bastonária dos nutricioni­stas, Alexandra Bento, considera que o principal problema é a falta de literacia alimentar
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Aderiu à dieta paleolític­a, primeiro perdeu peso, mas depois recuperou-o e ainda engordou 8 kg. A ansiedade de não comer o que gostava fê-lo fumar mais h Rúben Cunha
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Só conseguia dormir 4h por noite porque estava sempre com fome, perdeu a líbido e a menstruaçã­o e chegou a ter osteoporos­e na coluna, com apenas 18 anos h Ana B. Simões
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Conceição Calhau, especialis­ta em nutrição, alerta que as correções na alimentaçã­o devem ser graduais
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Tornou-se vegan e deixou de comer produtos de origem animal sem fazer qualquer suplemento. Ficou numa condição de desnutriçã­o severa João Afonso i
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Ganhou uma intolerânc­ia ao glúten e à lactose porque esteve muito tempo sem ingerir alimentos com estas substância­s j Antonieta Dias

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