O drama presente e as crises de um canal que liga o mundo
O bloqueio do Canal do Suez mostrou, mais uma vez, as fragilidades de uma das vias marítimas mais disputadas da história – e uma rota fulcral do comércio internacional.
Ventos de 40 nós, uma tempestade de areia e, alegadamente, uma falha humana levaram o porta-contentores Ever Given a atravessar-se ao comprido no Canal do Suez, no Egito. Eram 5h40 (hora de Lisboa) de 23 de março quando, junto à aldeia de Manshiyet Rugola, o navio com 400 metros de comprimento e 59 de largura bloqueou a via por onde circula cerca de 12% do comércio marítimo global. O Ever Given (propriedade da empresa japonesa Shoei Kisen Kaisha), operado pela Taiwan Evergreen Marine,
O FARAÓ NECO II ABANDONOU O PROJETO DO CANAL APÓS A MORTE DE 120 TRABALHADORES E O ALERTA DE UM ORÁCULO
viajava para Roterdão, nos Países Baixos, tendo saído do porto de Tanjung Pelepas, na Malásia, com uma carga de 18.300 contentores. Era o quinto de um comboio de 15 navios que se preparavam para percorrer o canal.
Durante os seis dias que se seguiram – só desencalhou na manhã da passada segunda-feira, 29 –, os mercados ressentiram-se e o número de navios em fila de espera ultrapassou os 400. Destes, mais de 10 transportavam o equivalente a 13 milhões de barris de petróleo – um terço das necessidades diárias mundiais, o que resultou, claro, numa subida de cerca de 6% no valor do crude.
Outros setores afetados foram o comércio automóvel (devido à interrupção da entrega de componentes, semicondutores, por exemplo), gás natural líquido (sete navios-tanque tiveram de ser desviados da rota), mobiliário (carregamentos de parquê retidos a bordo) e transporte de animais (130 mil ovelhas ainda fechadas nos navios de carga).
O prejuízo estimado para a economia mundial foi de 8,5 mil milhões de euros, 340 milhões a cada hora de bloqueio, demonstrando não só as fragilidades do canal, mas também recordando a importância económica e estratégica de uma rota com origens na antiguidade.
Mais de 2600 anos de projetos
A ideia de criar uma ligação marítima entre o Mediterrâneo, o rio Nilo e o mar Vermelho vem da Antiguidade. O primeiro a pensar nisso terá sido o faraó egípcio Neco II (660 a.C.-593 a.C.), que abandonou o projeto depois da morte de 120 trabalhadores e, mais importante para a época, da opinião de um oráculo que o terá alertado para os bárbaros que usufruiriam da obra depois dele.
Outros, como o imperador persa Dário I (550 a.C.-486 a.C.) ou o faraó Ptolomeu II (308 a.C.-246 a.C.), prosseguiram o projeto. Cleópatra, que viveu há 2090 anos, terá usufruído dos vários canais construídos pelos seus antecessores e no século VIII já era comum a navegação entre a cidade do Cairo e o mar Vermelho.
Quando Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança (1488) e Vasco da Gama completou a viagem até à Índia (1498), o centro do comércio mundial, Veneza, começou a acautelar os seus interesses – sugeriram escavar uma ligação entre o Nilo e o mar Vermelho para facilitar o transporte de mercadorias. Os planos saíram gorados com a conquista do Egito pelos Otomanos em 1517 e a ideia que temos do atual Canal do Suez só ganhou força com a invasão das forças de Napoleão, em 1798.
O líder francês queria aceder rapidamente à Índia e enviou uma equipa de investigadores para o terre- Q
Q no que indicou um eventual risco de inundações no Delta do Nilo. O projeto só avançou em 1859, quando o diplomata francês Ferdinand de Lesseps garantiu financiamento e autorizações para as obras, bem como uma concessão de exploração de 99 anos. Foram dragados 74 milhões de metros cúbicos de terra, cerca de milhão e meio de pessoas forçadas a trabalhar, das quais 120 mil morreram ao longo de 10 anos.
O Suez tornou-se fundamental para o comércio internacional, já que permite encurtar até 9.000 km a distância entre o mundo árabe e a Europa. É uma redução de oito a dez dias na viagem, graças aos 193,3 km de comprimento do canal que liga as cidades de Port Said (no Mediterrâneo) e Suez (no mar Vermelho). Em 2020, por exemplo, passaram por lá mais de 18.500 navios, 50 por dia.
Inauguração e guerra
A inauguração oficial do Canal do Suez (17 de novembro de 1869) teve direito a pirotecnia e banquete de Estado com as grandes figuras de
Egito, Sudão, Áustria, Prússia e França, para lá de centenas de convidados, cerimónias religiosas muçulmanas e cristãs e uma procissão de embarcações que não queriam perder a oportunidade histórica.
Logo no primeiro dia do canal, a ligação ficou entupida, quando o navio francês Péluse encalhou numa zona pouco funda e bloqueou o acesso dos restantes convivas à festa. Só na manhã seguinte a situação ficou resolvida.
Nos primeiros anos, o tráfego ficou abaixo das expectativas, provocando dificuldades financeiras à Suez Canal Company. Em 1875, Ismail Pasha, líder do Egito, a braços com dívidas, vendeu a sua participação de 44% ao Reino Unido (os franceses ficaram com o resto), por um valor que hoje rondaria os 550 milhões.
Em virtude dos conflitos locais, os britânicos invadiram a região em 1882 e, em 1888, a Convenção de Constantinopla declarou o canal zona neutra sob proteção inglesa. Vieram a I Guerra Mundial (1914-1918) e a tentativa de ataque otomano, a II Guerra Mundial e as incursões alemãs e italianas, mas os britânicos mantiveram o ponto estratégico. Até que os egípcios recuperaram o controlo em 1956, com o Presidente Gamal Abdel Nasser a nacionalizar o Canal do Suez e a proibir a passagem de navios israelitas. Iniciou-se a Crise do Suez, que resultou, meses mais tarde, na invasão do Egito por parte de Inglaterra, França e Israel. A pressão internacional de EUA, URSS e ONU levou os invasores a abandonarem o país e Nasser a reforçar a sua liderança.
Em 1967, 14 navios de carga estavam a percorrer o canal quando rebentou a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e uma coligação de países árabes. O Suez transformou-se em campo de batalha. As autoridades egípcias aconselharam a tripulação dos navios a ancorar na secção mais larga do canal. A guerra durou menos de uma semana, mas as embarcações ficaram ali nos oito anos seguintes. O grupo de navios, que ganhou o nome de Frota Amarela, tinha várias proveniências: Bulgária, Polónia, França, Suécia, Alemanha Oriental, Reino Unido, EUA e Checoslováquia.
Três meses depois, as tripulações foram autorizadas a abandonar os navios, mas os proprietários tinham outra ideia: era preciso salvaguardar a carga, mantendo gente a bordo. Cada navio passou a ter uma função: o polaco era o Posto de Correios, o inglês palco de jogos de futebol, o alemão servia de igreja e bar e outros forneciam a possibilidade de sala de cinema e hospital. Em 1968, até decorreu uma versão de Jogos Olímpicos entre as tripulações. O impasse durou até 1975, altura em que os navios já estavam tão deteriorados que só dois conseguiram sair pelos seus meios. O canal reabriu após as operações de limpeza de minas submarinas.
Na manhã de segunda-feira, 29 de março de 2021, o Ever Given foi desencalhado, depois de removidos mais de 20 mil metros cúbicos de areia. Primeiro foi reorientado a 80% e a popa afastada mais de 100 metros da costa, quando tinha estado a apenas quatro. O pedido oficial de desculpa por parte dos proprietários aconteceu logo no início da crise, tal como o assumir de todos os custos inerentes à operação de resgate. W
OS NAVIOS APANHADOS NA GUERRA DOS SEIS DIAS FICARAM ENCALHADOS NO SUEZ DURANTE OITO ANOS