SÁBADO

O drama presente e as crises de um canal que liga o mundo

O bloqueio do Canal do Suez mostrou, mais uma vez, as fragilidad­es de uma das vias marítimas mais disputadas da história – e uma rota fulcral do comércio internacio­nal.

- Por Ricardo Santos

Ventos de 40 nós, uma tempestade de areia e, alegadamen­te, uma falha humana levaram o porta-contentore­s Ever Given a atravessar-se ao comprido no Canal do Suez, no Egito. Eram 5h40 (hora de Lisboa) de 23 de março quando, junto à aldeia de Manshiyet Rugola, o navio com 400 metros de compriment­o e 59 de largura bloqueou a via por onde circula cerca de 12% do comércio marítimo global. O Ever Given (propriedad­e da empresa japonesa Shoei Kisen Kaisha), operado pela Taiwan Evergreen Marine,

O FARAÓ NECO II ABANDONOU O PROJETO DO CANAL APÓS A MORTE DE 120 TRABALHADO­RES E O ALERTA DE UM ORÁCULO

viajava para Roterdão, nos Países Baixos, tendo saído do porto de Tanjung Pelepas, na Malásia, com uma carga de 18.300 contentore­s. Era o quinto de um comboio de 15 navios que se preparavam para percorrer o canal.

Durante os seis dias que se seguiram – só desencalho­u na manhã da passada segunda-feira, 29 –, os mercados ressentira­m-se e o número de navios em fila de espera ultrapasso­u os 400. Destes, mais de 10 transporta­vam o equivalent­e a 13 milhões de barris de petróleo – um terço das necessidad­es diárias mundiais, o que resultou, claro, numa subida de cerca de 6% no valor do crude.

Outros setores afetados foram o comércio automóvel (devido à interrupçã­o da entrega de componente­s, semicondut­ores, por exemplo), gás natural líquido (sete navios-tanque tiveram de ser desviados da rota), mobiliário (carregamen­tos de parquê retidos a bordo) e transporte de animais (130 mil ovelhas ainda fechadas nos navios de carga).

O prejuízo estimado para a economia mundial foi de 8,5 mil milhões de euros, 340 milhões a cada hora de bloqueio, demonstran­do não só as fragilidad­es do canal, mas também recordando a importânci­a económica e estratégic­a de uma rota com origens na antiguidad­e.

Mais de 2600 anos de projetos

A ideia de criar uma ligação marítima entre o Mediterrân­eo, o rio Nilo e o mar Vermelho vem da Antiguidad­e. O primeiro a pensar nisso terá sido o faraó egípcio Neco II (660 a.C.-593 a.C.), que abandonou o projeto depois da morte de 120 trabalhado­res e, mais importante para a época, da opinião de um oráculo que o terá alertado para os bárbaros que usufruiria­m da obra depois dele.

Outros, como o imperador persa Dário I (550 a.C.-486 a.C.) ou o faraó Ptolomeu II (308 a.C.-246 a.C.), prosseguir­am o projeto. Cleópatra, que viveu há 2090 anos, terá usufruído dos vários canais construído­s pelos seus antecessor­es e no século VIII já era comum a navegação entre a cidade do Cairo e o mar Vermelho.

Quando Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança (1488) e Vasco da Gama completou a viagem até à Índia (1498), o centro do comércio mundial, Veneza, começou a acautelar os seus interesses – sugeriram escavar uma ligação entre o Nilo e o mar Vermelho para facilitar o transporte de mercadoria­s. Os planos saíram gorados com a conquista do Egito pelos Otomanos em 1517 e a ideia que temos do atual Canal do Suez só ganhou força com a invasão das forças de Napoleão, em 1798.

O líder francês queria aceder rapidament­e à Índia e enviou uma equipa de investigad­ores para o terre- Q

Q no que indicou um eventual risco de inundações no Delta do Nilo. O projeto só avançou em 1859, quando o diplomata francês Ferdinand de Lesseps garantiu financiame­nto e autorizaçõ­es para as obras, bem como uma concessão de exploração de 99 anos. Foram dragados 74 milhões de metros cúbicos de terra, cerca de milhão e meio de pessoas forçadas a trabalhar, das quais 120 mil morreram ao longo de 10 anos.

O Suez tornou-se fundamenta­l para o comércio internacio­nal, já que permite encurtar até 9.000 km a distância entre o mundo árabe e a Europa. É uma redução de oito a dez dias na viagem, graças aos 193,3 km de compriment­o do canal que liga as cidades de Port Said (no Mediterrân­eo) e Suez (no mar Vermelho). Em 2020, por exemplo, passaram por lá mais de 18.500 navios, 50 por dia.

Inauguraçã­o e guerra

A inauguraçã­o oficial do Canal do Suez (17 de novembro de 1869) teve direito a pirotecnia e banquete de Estado com as grandes figuras de

Egito, Sudão, Áustria, Prússia e França, para lá de centenas de convidados, cerimónias religiosas muçulmanas e cristãs e uma procissão de embarcaçõe­s que não queriam perder a oportunida­de histórica.

Logo no primeiro dia do canal, a ligação ficou entupida, quando o navio francês Péluse encalhou numa zona pouco funda e bloqueou o acesso dos restantes convivas à festa. Só na manhã seguinte a situação ficou resolvida.

Nos primeiros anos, o tráfego ficou abaixo das expectativ­as, provocando dificuldad­es financeira­s à Suez Canal Company. Em 1875, Ismail Pasha, líder do Egito, a braços com dívidas, vendeu a sua participaç­ão de 44% ao Reino Unido (os franceses ficaram com o resto), por um valor que hoje rondaria os 550 milhões.

Em virtude dos conflitos locais, os britânicos invadiram a região em 1882 e, em 1888, a Convenção de Constantin­opla declarou o canal zona neutra sob proteção inglesa. Vieram a I Guerra Mundial (1914-1918) e a tentativa de ataque otomano, a II Guerra Mundial e as incursões alemãs e italianas, mas os britânicos mantiveram o ponto estratégic­o. Até que os egípcios recuperara­m o controlo em 1956, com o Presidente Gamal Abdel Nasser a nacionaliz­ar o Canal do Suez e a proibir a passagem de navios israelitas. Iniciou-se a Crise do Suez, que resultou, meses mais tarde, na invasão do Egito por parte de Inglaterra, França e Israel. A pressão internacio­nal de EUA, URSS e ONU levou os invasores a abandonare­m o país e Nasser a reforçar a sua liderança.

Em 1967, 14 navios de carga estavam a percorrer o canal quando rebentou a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e uma coligação de países árabes. O Suez transformo­u-se em campo de batalha. As autoridade­s egípcias aconselhar­am a tripulação dos navios a ancorar na secção mais larga do canal. A guerra durou menos de uma semana, mas as embarcaçõe­s ficaram ali nos oito anos seguintes. O grupo de navios, que ganhou o nome de Frota Amarela, tinha várias proveniênc­ias: Bulgária, Polónia, França, Suécia, Alemanha Oriental, Reino Unido, EUA e Checoslová­quia.

Três meses depois, as tripulaçõe­s foram autorizada­s a abandonar os navios, mas os proprietár­ios tinham outra ideia: era preciso salvaguard­ar a carga, mantendo gente a bordo. Cada navio passou a ter uma função: o polaco era o Posto de Correios, o inglês palco de jogos de futebol, o alemão servia de igreja e bar e outros forneciam a possibilid­ade de sala de cinema e hospital. Em 1968, até decorreu uma versão de Jogos Olímpicos entre as tripulaçõe­s. O impasse durou até 1975, altura em que os navios já estavam tão deteriorad­os que só dois conseguira­m sair pelos seus meios. O canal reabriu após as operações de limpeza de minas submarinas.

Na manhã de segunda-feira, 29 de março de 2021, o Ever Given foi desencalha­do, depois de removidos mais de 20 mil metros cúbicos de areia. Primeiro foi reorientad­o a 80% e a popa afastada mais de 100 metros da costa, quando tinha estado a apenas quatro. O pedido oficial de desculpa por parte dos proprietár­ios aconteceu logo no início da crise, tal como o assumir de todos os custos inerentes à operação de resgate. W

OS NAVIOS APANHADOS NA GUERRA DOS SEIS DIAS FICARAM ENCALHADOS NO SUEZ DURANTE OITO ANOS

 ??  ??
 ?? Um gigante dos mares ?? Com 400 m de compriment­o e 59 m de largura, o Ever Given tem capacidade para 20 mil contentore­s (levava 18.300 quando encalhou)/ 224 mil toneladas e navega a uma velocidade média de 22,8 nós (cerca de 42 km/hora)
Um gigante dos mares Com 400 m de compriment­o e 59 m de largura, o Ever Given tem capacidade para 20 mil contentore­s (levava 18.300 quando encalhou)/ 224 mil toneladas e navega a uma velocidade média de 22,8 nós (cerca de 42 km/hora)
 ??  ??
 ??  ?? O número de navios em fila de espera ultrapasso­u os 400
O número de navios em fila de espera ultrapasso­u os 400
 ??  ?? Durante a Guerra dos Seis dias o Suez foi um campo de batalha
Durante a Guerra dos Seis dias o Suez foi um campo de batalha
 ??  ?? j
A cerimónia de inauguraçã­o do Canal do Suez atraiu centenas de convidados
j A cerimónia de inauguraçã­o do Canal do Suez atraiu centenas de convidados

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal