SÁBADO

Os dois cenários de Ivo Rosa

-

Ojuiz Ivo Rosa promete divulgar no próximo dia 9 a sua decisão sobre a Operação Marquês. Acaba, finalmente, uma das novelas instrutóri­as mais longas das últimas décadas. Termina uma morosidade judicial duplamente imputável ao juiz e aos arguidos. Desvendar-se-á o pensamento do juiz que se vê como um cavaleiro andante das liberdades fundamenta­is dos arguidos, contra a máquina opressora e justiciali­sta do Ministério Público. Na verdade, nem tudo é a preto a branco. Há um MP corporativ­o e justiciali­sta, como há um MP vinculado à defesa da legalidade, da imparciali­dade e da igualdade de todos perante a lei. Há um Ivo Rosa adequadame­nte garantista, mas também há um Ivo Rosa que decide como bem quer, pelo seu código de processo penal muito particular e demasiado vinculado aos interesses dos arguidos, em particular os mais influentes por via do dinheiro e da posição social. Uma coisa é certa: para mandar José Sócrates a julgamento ou para matar uma parte da acusação, Ivo Rosa andará sempre à volta da questão da prova direta ou indireta.

Ivo Rosa tem dois cenários: ou dissertará sobre a existência de abundante prova e, por isso, enviará o ex-primeiro-ministro a julgamento com todos os crimes com que chegou à instrução, ou concluirá que a acusação assenta essencialm­ente na presunção indiciária, portanto na chamada prova indireta, e, por isso, até pode mandá-lo julgar mas sem o fardo dos crimes de corrupção. Se isso acontecer, abrirá a porta para muitas guerras e para a eternizaçã­o da querela mas, em particular, para a que passa pela desvaloriz­ação penal dos crimes fiscais que são imputados a Sócrates e, consequent­emente, para a morte anunciada do processo.

Seja o que for que Ivo Rosa venha a dizer, há algumas certezas que a própria defesa de Sócrates criou, através da forte litigância para tribunais superiores que marcou a sua ação na fase de investigaç­ão.

Sócrates recorreu sistematic­amente para o tribunal da Relação de Lisboa, na fase de inquérito, e perdeu sempre. Com a conhecida exceção da decisão assinada pelo juiz Rui Rangel mas escrita pela sua ex-mulher, a também juíza Fátima Galante. Sócrates também perdeu recursos para o Supremo Tribunal de Justiça e para o Tribunal Constituci­onal onde, diga-se, perdeu o mais importante de todos, sobre a validação da referida prova indireta.

A propósito desta questão, o Tribunal Constituci­onal clarificou o jogo no acórdão 391/2015, que teve no juiz João Cura Mariano o relator e foi assinado, a 12 de agosto de 2015, pelos juízes Ana Guerra Martins, Pedro Machete, Fernando Ventura e Joaquim Sousa Ribeiro.

A defesa de Sócrates suscitou a questão de saber se a interpreta­ção sustentada num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de março de 2015, segundo a qual o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º, nº 2, da Constituiç­ão, e ainda com o dever de fundamenta­r as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º, nº 1, da Constituiç­ão.

A resposta do TC foi clara: não julgar inconstitu­cional a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, na interpreta­ção de que a apreciação da prova segundo as regras da experiênci­a e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal.

Durante muitos anos, o tema da prova indireta em sede penal foi um deserto de ideias e decisões na doutrina e na jurisprudê­ncia nacionais, embora a sua utilização nos tribunais fosse corrente, como nota o acórdão do TC. Já não é assim.

Nos tempos mais recentes registam-se algumas abordagens teóricas da prova denominada “indireta”, “indiciária”, “circunstan­cial” ou “por presun

procurando-se definir os critérios que devem presidir à sua utilização, para que esta seja compatível com o princípio da presunção de inocência. O acórdão do TC apontou-as todas: Euclides Dâmaso Simões, em “Prova indiciária”, na revista Julgar, nº 2, 2007; José Santos Cabral em “Prova indiciária e as novas formas de criminalid­ade”, na revista Julgar, nº 17; Marta Sofia Neto Morais Pinto, em “A prova indiciária no processo penal”, na Revista do Ministério Público, nº 128, out.-dez. 2011; Luís Campos, em “A corrupção e a sua dificuldad­e probatória – o crime de recebiment­o indevido de vantagem”, na Revista do Ministério Público, nº 137, jan.-mar. 2014; André Lamas Leite, em “Nótulas sobre o crime de administra­ção danosa”, na Revista da Faculdade de Direito da Universida­de do Porto, Ano IX – 2012.

O arsenal da jurisprudê­ncia não é menor. Aponta os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-9-2007, de 6-10-2010 e de 7-4-2011, (todos acessíveis em www.dgsi.pt) e mais quatro do próprio Tribunal Constituci­onal, em que foi reconhecid­a a validade da prova por inferência.

A doutrina expressa nestes acórdãos do TC não podia ser mais clara: “O Tribunal Constituci­onal já se debruçou sobre problemas de constituci­onalidade de normas que estabelece­m presunções legais em matéria penal, tenções”, do concluído pela sua admissibil­idade, desde que seja conferida ao arguido a possibilid­ade de abalar os fundamento­s em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprov­a dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.”

“Verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiênci­a e dos conhecimen­tos científico­s, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatív­el com o dever de fundamenta­ção das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitad­ora do processo lógico que lhe é inerente.”

Parece óbvio que não se podem invocar nulidades no vazio. Parece óbvio que não está a ser seguida uma linha justiciali­sta à brasileira ou à italiana, como alguns clamam. No caso italiano, aliás, tanto a prova indireta como os arrependid­os, espantosam­ente diabolizad­os por cá, foram essenciais, dentro do mais rigoroso quadro legal e jurídico, para o triunfo do Estado de direito democrátic­o sobre o crime organizado e a corrupção.

Perante um quadro destes seria, no mínimo, bizarro que a sapiência do juiz Ivo Rosa esmagasse o saber de dezenas de juízes desembarga­dores que se pronunciar­am sobre os recursos de Sócrates, ou dos juízes do Supremo e do Tribunal Constituci­onal que sacudiram a argumentaç­ão da sua defesa. Se isso acontecer, Ivo Rosa será o verdadeiro superjuiz, Sócrates uma pobre vítima de um sistema iníquo, o Ministério Público um gangue de malfeitore­s e todos os que acreditara­m na acusação ao ex-primeiro-ministro um bando de ingénuos ou ressabiado­s. Não haverá memória de tamanha conspiraçã­o contra um homem inocente. W

 ??  ?? No dia 9 desvendar-se-á o pensamento do juiz que se vê como um cavaleiro andante das liberdades fundamenta­is dos arguidos, contra a máquina opressora e justiciali­sta do Ministério Público
No dia 9 desvendar-se-á o pensamento do juiz que se vê como um cavaleiro andante das liberdades fundamenta­is dos arguidos, contra a máquina opressora e justiciali­sta do Ministério Público
 ??  ?? E
Diretor
Eduardo Dâmaso
E Diretor Eduardo Dâmaso
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal