Cabo Delgado: perguntas e respostas
Qual é a causa do conflito em Cabo Delgado? Estudaram-se os motivos históricos que explicam a insatisfação no Nordeste de Moçambique. E em lugares onde há perceção de injustiça, existe um potencial de violência. Mas não se podem confundir as causas com os atores que se apropriam das mesmas.
Qual é a confusão?
O descontentamento em Cabo Delgado tem assumido várias formas, de atividades de ONG a protestos de várias pessoas e coletivos. Há ativistas pelos direitos humanos, ambiente, repartição equitativa de recursos, transparência dos atos públicos, liberdade religiosa e de imprensa, e combate à corrupção.
Mas o terrorismo é um assunto diferente. Usa os problemas anteriores como justificação, procura adeptos entre os descontentes e integra tudo isso numa nova lógica doutrinal: a de criação de um estado separado do resto de Moçambique, alegadamente e falsamente “islâmico”.
Esse objetivo alguma vez foi declarado?
Sim. Uma das formas do manifesto do que chamamos Daesh foi produzido depois do ataque em Mbau, contra um acampamento do curso de formação de sargentos, idos de Boane. Esta agressão sangrenta foi reivindicada pelo EIPAC logo em 22 de janeiro de 2020. Quanto ao “programa”, sabemos que foi divulgado pela Al Battar Media Foundation, um braço “doutrinário” do Daesh, em 28 de junho, 3 e 13 de julho de 2020.
O que dizia o manifesto?
Basicamente explicava a “versão Daesh” da história de Cabo Delgado desde o século XVI, as raízes islâmicas anteriores, a chamada “desco- Q
Q lonização exemplar” portuguesa, o regime da FRELIMO desde 1975, os alegados ataques desta ao “verdadeiro Islão”, as causas de alienação local, o plano de instauração da tal “província” (Wilayat) do califado, e a promessa de ataques exemplares aos complexos de GNL em Palma e na península de Afungi.
Mas alega-se que, desde 2017, não há provas da pertença dos ditos “insurretos” ao tal Daesh EIPAC.
Em 2017, não havia Daesh EIPAC. Como consequência da radicalização jihadista militar de várias comunidades alegadamente muçulmanas, desde 1998 e 2001, em todo mundo, um movimento de jovens começou a contestar ativamente o Islão local, que considerava “falso”, “apóstata”, “traidor”, “conivente” e “corrompido”. Das ameaças a dirigentes e crentes, oposição virulenta e boicotes passou-se à ação armada, em outubro de 2017. Daí ao fim de 2018, o grupo esteve em contacto com vários “caçadores de talentos” do terror, incluindo o Shabab/Al Qaeda da Somália e o Daesh global, através de encontros no Congo, Nigéria, Uganda, etc.
Só em junho de 2019 o grupo inicial é aceite pelo dito Estado Islâmico, depois de um “juramento de fidelidade”. E as coisas mudam completamente em “eficácia” e meios. Tento explicar isto com detalhe em O Cabo do Medo. Mas o Daesh não reivindica sempre os ataques...
O que se pode dizer é que mais ninguém reivindica os atos.
Quanto ao Daesh, anuncia rigorosamente os que produzem mais estragos e vítimas, sítios capturados, armamento roubado, sobretudo se tem tempo para fotografar e filmar. É verdade que não se interessa por crimes isolados contra indivíduos ou famílias. Mas documentou sempre com provas os três ataques a Mocímboa, a Quissanga, ou os contra-ataques em volta da base Síria I, por exemplo.
Quando foi a última reivindicação?
Do EIPAC propriamente dito, ações em Muidumbe, em 1 de novembro do ano passado. Da Al Battar, o anúncio de que África será o cemitério dos EUA e o principal campo de batalha de 2021, no dia 21 de março.
Há quem diga que foi o anúncio do nome do grupo e dos seus responsáveis pelos EUA que provocou os ataques.
“A melhor arma do diabo é fazer-nos crer que não existe.” Dizia Baudelaire. Washington não criou o grupo. Como nos exorcismos, limitou-se a dizer o seu nome.
Vive-se uma guerra em Cabo Delgado?
Sim. Vive-se com ela e morre-se por causa dela. Mas há quem subsista em estado de negação. Até ser demasiado tarde. W