O juiz naturalmente escolhido
UM DOS CONCEITOS MAIS ELÁSTICOS DA JUSTIÇA PORTUGUESA
é o do “juiz natural”. Um processo deve ir parar à secretária de um juiz naturalmente e não por via de expedientes que tornem a atribuição uma arbitrariedade. É assim que se garante a aleatoriedade na distribuição dos processos, evitando compadrios que levem a uma determinada decisão.
O que se tem assistido no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), e não só, é a antítese de tudo o que o senso comum explica e as faculdades de Direito densificam. O facto de existirem apenas dois juízes, Carlos Alexandre e Ivo Rosa, e com leituras tão antagónicas da lei, transforma a questão do juiz natural num processo de escolha.
O problema existe há muitos anos e poderia ser facilmente resolvido com o aumento dos quadros de juízes previstos para o TCIC. De dois passar, por exemplo, a quatro. Mas, vá-se lá saber porquê, nem o poder político nem o Conselho Superior da Magistratura têm dado passos concretos para a resolução desta clara estropia do sistema judicial. Apenas a Associação Sindical dos Juízes avançou com uma proposta: acabar com o TCIC e passar tudo para o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Mais do que resolver um problema, esta proposta serviu apenas para acentuar o caráter centralista das estruturas judiciárias, alargando a competência do Tribunal de Instrução Criminal da capital do império.
Do ponto de vista do funcionamento da justiça, o que se passa no TCIC é um escândalo, chegando-se ao ponto de as partes de um processo tentarem escolher um juiz através do afastamento do outro. Só no caso da Máfia do Sangue isto foi tentado pela defesa de Paulo Lalanda de Castro, que procurou afastar Carlos Alexandre, e, mais recentemente, pelo Ministério Público, que avançou com um incidente de suspeição contra Ivo Rosa.
A polarização é clara: os advogados gostam mais de Ivo Rosa, o Ministério Público prefere Carlos Alexandre. E assim vai o mais importante Tribunal de Instrução Criminal do País. Nada que espante, porque nos últimos anos os tribunais da Relação (Guimarães, Porto, Coimbra, Lisboa e Évora) distribuíram mais de sete mil processos de forma pouco natural. Melhor, naturalmente, invocaram mil e um argumentos legais para o fazer, mas a naturalidade da distribuição sem sorteio tornou-se tudo menos natural. Tendo em conta este quadro, é fácil antecipar as análises que serão feitas a 9 de abril e nos dias seguintes, depois de Ivo Rosa anunciar ao mundo a decisão instrutória da Operação Marquês, no fundo, dizer quem seguirá para julgamento e quais os crimes imputados e quem ficará pelo caminho. Muitos serão os que vão comentar sem sequer ler ou ouvir a decisão. O que importará é encaixar a análise na ideia preconcebida que já se tem do juiz: crítico do Ministério Público, demasiado preocupado com direitos fundamentais (como se uma preocupação excessiva com isto fosse um defeito). De nada importará ler a decisão, saber, por exemplo, qual o caminho feito pelo juiz até chegar a uma conclusão. Mas, mesmo que se leia, também não valerá muito, porque a opacidade do sistema de justiça faz com que hoje muitos ainda desconheçam o conteúdo do processo. Talvez o mais interessante será perceber como Ivo Rosa vai responder à pressão de ambos os lados. Sócrates até poderá seguir para julgamento, mas apenas por fraude fiscal, devido aos “documentos” e àquilo que ele “gosta muito”. Mas para quem foi primeiro-ministro será pouco. E se também os crimes fiscais caírem, fruto de anos de investigação em processos administrativos sem controlo de um juiz? Enfim, o número e a qualidade dos crimes na Operação Marquês permitem a Ivo Rosa uma saída airosa da polémica. Mas, talvez o juiz queira decidir de acordo com a sua convicção e pouco preocupado com o que dele vão dizer e escrever. Talvez ser juiz seja isto mesmo. W