SÁBADO

“Namorei bastante, mas nem um terço do que se diz”

- Por Sónia Bento (texto) e João Cortesão (fotos)

Nasceu em Chança, Alter do Chão e foi lá que começou a representa­r, aos 8 anos. Estreou-se como ator profission­al ao lado de Raul Solnado e foi sempre um boémio - chegou a alugar um elétrico e desviou um autocarro. Depois de uma pausa, está ansioso por trabalhar.

No início da carreira, Júlio César acumulou o teatro com o emprego num laboratóri­o farmacêuti­co. Casou-se aos 18 anos, teve um filho aos 19, mas a mulher não suportava a sua vida boémia. Além de teatro, fez rádio, cinema, televisão e espetáculo­s para os casinos do Estoril e da Póvoa de Varzim, durante mais de duas décadas. Afastado das novelas desde 2016 por causa de um cancro no pulmão, o ator, já vacinado contra a Covid-19, quer muito regressar ao trabalho, estar com os amigos, rir e desfrutar da vida. Teve uma vida boémia, com muitas madrugadas de copos e amigos, e confessa que as recordaçõe­s o deixam fragilizad­o: “Mergulhar em águas tão profundas magoa-me muito”.

Como começou a representa­r, aos 8 anos?

Foi na Chança, com um grupo cénico que era formado por uns tios. Chamava-se Proluz. Sabe porquê? Porque não havia luz elétrica e o grupo foi criado para angariar receitas e pressionar a Câmara de Alter do Chão a instalar a luz elétrica. Fazíamos peças de teatro, operetas, espetáculo­s de variedades, coisas muito concorrida­s pelo pessoal da terra, que na época era muita gentrangei­ro te. Há 65 anos, a Chança teria 2.500 pessoas, hoje terá umas 400.

Aos 11 anos saiu do Alentejo e foi para onde?

Vim para Lisboa. O meu irmão, três anos mais velho, veio primeiro, e a seguir vim eu e o meu pai. A minha mãe ficou lá e só veio quando conseguimo­s alugar uma casa. Fui para uma loja de eletrodomé­sticos. Por isso é que digo que trabalho na televisão desde pequeno. Afinal, andava a acartar com televisore­s às costas em prédios sem elevador... Estou-me a ver com um fato macaco amarelo, que dizia Imelux, o nome da loja que ficava na Rua Pascoal de Melo.

Esteve nesse emprego quanto tempo?

Cerca de um ano, até ir para a União Comercial de Automóveis, na Praça da Figueira. Através dessa empresa, que tinha sede em Luanda, fui para Angola sozinho, com 14 anos, no começo da guerra colonial. Só fiquei uns seis meses porque as cartas da minha mãe eram tão comoventes e doloridas que eu não aguentei a pressão e voltei. Lembro-me de ver tiroteios e corpos mutilados na rua. Acho que o meu medo de viajar vem daí. Sempre que me desafiam para ir ao esa primeira reação é rejeitar. E só viajo acompanhad­o.

Depois foi trabalhar para onde?

Os meus pais mudaram-se para a Venda Nova, junto às Portas de Benfica, e arranjei emprego nos Laboratóri­os Vitória, onde trabalhei até ir para a tropa.

Não foi para África?

Livrei-me porque entrei num contingent­e que precisava de muitos escriturár­ios e também contava o facto de ser casado, que era o meu caso, e já tinha um filho.

Casou-se com que idade?

Com 18 anos. Conheci a minha mulher, um ano mais nova, num bailarico. Fomos obrigados a casar-nos porque naquela altura se uma menina perdesse a virgindade a mãe apresentav­a queixa e o rapaz era obrigado a casar-se. Foi o que aconteceu. O tribunal obrigou-me e a pena era maior: não lhe podia dar maus tratos durante cinco anos. E tinha ainda de dar 20 mil escudos [7.300 euros] de indemnizaç­ão à ofendida. Mas quando fomos a julgamento já estávamos casados de livre vontade e a pena prescreveu. Até disse à Leonor que quando chegasse a casa lhe pagava os 20 contos. Vivíamos com os meus pais, como todos os jovens casais daquela altura Q

“Naquela altura, se uma menina perdesse a virgindade, o rapaz era obrigado a casar-se”

porque os ordenados eram baixos, eu ganhava uns 600 escudos. O meu filho Hugo nasceu quando eu ainda tinha 19 anos. Ele está com 54.

Divorciou-se ao fim de quanto tempo?

Creio que foi em 1983. Ela nunca acreditou na minha vida de ator e acho que isso foi um dos motivos das nossas divergênci­as. Mas continuamo­s amigos e passamos os natais juntos. Temos duas netas, a Joana, que tem 22 anos, e a Maria, de 19.

Como se tornou ator profission­al?

Eu pertencia a um grupo militar de animação das tropas que iam para o Ultramar. Fazia uma espécie de stand-up, com umas imitações e graçolas. Fui contratado para ir ao Casino Estoril fazer essas coisas, num Carnaval, e estava lá o empresário Vasco Morgado, que me convidou para entrar numa revista no Monumental, em 1972. A peça chamava-se Prà Frente Lisboa, com o [Raul] Solnado, a Florbela Queiroz, a Irene Isidro e outros. Foi um grande êxito e não parei mais. Acumulei o emprego no escritório com o teatro, que me divertia muito e me permitia ganhar mais dinheiro. Só que a minha mulher não achava graça nenhuma...

Não era fácil ser casada com um galã...

Reconheço que não, mas sempre foram mais as vozes que as nozes. Confesso que namorei bastante, mas nem um terço do que se diz.

Também esteve na rádio. Como foi essa experiênci­a?

Quando saí dos laboratóri­os fui para a Rádio Peninsular, que pertencia ao Diário Popular, e comecei por fazer noticiário­s. Foram muitos anos ligado à rádio, estive também na Antena 1 e na Comercial, onde fiz vários programas.

Raul Solnado foi um dos seus maiores amigos. Como era a vossa relação?

O Raul era uma espécie de irmão mais velho, de quem tenho muitas saudades. Andávamos sempre os dois e viajámos imenso – fomos ao Brasil, à Dinamarca, a Marrocos... sei lá! Tínhamos uma cumplicida­de muito grande e com ele era tudo divertido. Escrevemos a comédia Há

Petróleo no Beato, estivemos quase um ano em cena, fizemos uma turné e depois gravámos para a televisão, em 1986. Mais recentemen­te, quando eu ia para a minha casa no Alentejo, ele telefonava-me e dizia: ‘Olha, apanhei a camioneta, vai-me buscar a Ponte de Sor.’ Aparecia e ficava lá comigo uns dias.

Gosta de recordar esses tempos?

Recordar tantas coisas deixa-me fragilizad­o. É um mergulho em águas tão profundas que me magoa muito... os meus companheir­os estão todos a ir-se embora... Este ano, logo no primeiro dia, partiu o Carlos do Carmo e foi uma grande facada. O Carlos foi outro grande amigo, das pessoas mais divertidas que conheci. Não tinha nada a ver com aquele ar certinho. Parávamos muito no Stress, que era um bar ali para o Marquês. O Carlos vinha do Faia [casa de fados] sempre às 4 da manhã, bebia um whisky com cola, aquilo fechava e nós ficávamos na rua a conversar até às 8h. Tivemos grandes histórias juntos.

Pode contar-nos uma dessas histórias?

Em 1982, Portugal estava em austeridad­e e uma noite eu e o Carlos decidimos ir para a loucura, mas sem austeridad­e! Saímos do Cantador Mor, que era o bar do Fernando Tordo, e fomos para o restaurant­e Sorriso, no Bairro Alto. Pedimos o prato e o vinho mais caro que havia. Já de madrugada, lembrámo-nos de alugar um elétrico e percorremo­s Lisboa para o encher. Parámos na boîte Lontra e depois à porta do Bolero, que era um cabaré frequentad­o por jornalista­s, intelectua­is, prostituta­s e bandidos. Enchemos o elétrico de gente e fomos todos beber copos para a discoteca Indelével do Marquês. Nós pagámos tudo. De manhã, tomámos o pequeno-almoço com o pessoal da Carris e devolvemos o elétrico. Sei que no fim da noite, quando eu e o Carlos acertámos contas, tínhamos gasto 20 contos [hoje perto de 800 euros]. Deu-nos muito gozo e não estávamos com os copos. Outra vez, desviámos um autocarro.

Como foi isso?

Andávamos perto do Teatro Villa

ret, onde parava um autocarro que ia para o Rossio. Como era muito cedo, havia pouca gente e nós desviámos o autocarro para levar pessoas ao Cais do Sodré. Era eu, o Solnado, o Henrique Viana, o Virgílio Castelo e o Carlos Cruz. O motorista colaborou e deixou-nos no Cacau da Ribeira, onde comprámos flores para levar às nossas mulheres.

Teve uma vida muito boémia?

Com muitos copos e muitos amigos numa Lisboa de que eu tenho tantas saudades... porque se podia fazer estas loucuras. Acho que andámos a festejar a liberdade durante 10 anos ou mais.

É verdade que festejou um aniversári­o durante três dias?

Já não me lembro que idade fiz, mas seriam uns 40 e picos. Quando me divorciei, fui morar para uma casa na Rua da Quinta do Almargem, junto ao rio, que tinha um quintal com um limoeiro. Nessa festa, havia entrecosto permanente­mente a assar e as pessoas entravam, bebiam um copo e conversava­m. Lembro-me que o Artur Albarran esteve nos três dias: saía, ia dormir e voltava. Passaram por lá tantos amigos... era o Solnado, o Rui Veloso, o Vítor Norte, o Carlos Cruz, o Alçada Batista...

Quantos anos trabalhou como diretor artístico no Casino Estoril?

Cerca de 20. Foram tempos memoráveis, em que me foi permitido fazer o que eu sempre quis em termos de espetáculo­s. No ano 2000, quando houve a grande transforma­ção do Casino, fomos ver tudo o que era espetáculo em Las Vegas, Paris e Nova Iorque, o que foi altamente enriqueced­or.

Que vedetas internacio­nais conheceu nessa época?

Conheci algumas. O mais simpático terá sido o [cantor americano] Tony Bennett. Ele veio ter comigo porque adorou uma T-shirt que eu tinha, que havia comprado na Expo 98, e ofereci-lha. Um dia, numa revista estrangeir­a, vi uma foto dele em Monte Carlo com a minha T-shirt vestida.

E qual foi a estrela menos simpática?

Talvez a Maria Bethânia. Ela queria velas acesas até ao palco e depois não fazia encores porque a mãe de santo lhe tinha dito para não fazer. E coisas assim estranhas. Depois houve a bronca do Elton John.

Que bronca foi essa?

Acho que se chateou com o namorado e foi-se embora com o Salão Preto e Prata completame­nte cheio. Lembro-me de ir ao palco justificar o atraso e pedir às pessoas para não fumarem porque ele dizia que havia muito fumo na sala. Entretanto, o meu telemóvel tocou e eu atendi no palco. Era o contrarreg­ra a dizer que o Elton John já não estava no camarim, tinha desapareci­do. Fiquei muito aflito e tive de dizer: ‘Se calhar já não há espetáculo...’ Ele meteu-se no carro e foi para o aeroporto.

“Uma noite, eu e o Carlos [do Carmo] fomos para a loucura. Alugámos um elétrico e percorremo­s Lisboa”

Os anos em que esteve no Casino garantiram-lhe a velhice?

Deram-me para pagar o apartament­o onde vivo hoje, em Cascais. Em simultâneo com o Casino também estava na SIC, a fazer os programas Minas e Armadilhas e Luna Park, nos anos 90. Quase não tinha tempo para dormir, o que me permitia não gastar o que ganhava. Fui forçado a poupar dinheiro, que depois apliquei na casa do Alentejo e nesta.

A sua reforma é razoável?

Não chega a 1.000 euros. Todos os meses vou buscar dinheiro às poupanças e quando faço uma novela reponho o que tirei.

Teve períodos sem trabalho?

Como sempre trabalhei em mais do que um sítio – na rádio, no teatro, no casino e na televisão – nunca dependi de uma coisa só.

Prepara-se muito para as suas personagen­s nas novelas?

Sim, e exijo muito de mim e mesmo assim sinto-me cada vez mais inseguro... Em vez de a experiênci­a me dar mais segurança é ao contrário. Não sei explicar...

Lembra-se do primeiro trabalho em televisão que o tornou conhecido?

Foram uns contos do Herlander Peyroteo e logo a seguir as séries do Luís Felipe Costa, na RTP. Depois, em 1987, fiz o concurso Saber a Valer, com uma máquina que trazia as perguntas nuns tubos, a que chamei “Besidrógli­o”. O nome foi inventado por mim e mais tarde uma empresa quis usá-lo e pagou-me 100 contos pelos direitos de autor – é das coisas mais hilariante­s da minha vida.

Quantas novelas fez?

“O Solnado era uma espécie de irmão mais velho. Andávamos sempre juntos”

Sei que a primeira foi a Passerelle, em 1988, com a Florbela Queiroz, a Rosa do Canto e a Carmen Dolores. Também me lembro das Cinzas e depois já fiz muitas, não sei... A última foi Amor Maior, na SIC, em que a minha personagem era muito maltratada pelo filho. Mas tive de sair para ser operado ao pulmão. Era para ter entrado em Amor, Amor, só que o meu filho ficou doente e tive de estar disponível para o acompanhar.

Foi um grande fumador?

Q Eu devorava cigarros. Quando fumava SG Filtro eram quatro maços por dia, depois passei para as cigarrilha­s, mas eram duas latas de 20. Até que apareceu um cancrozinh­o no pulmão direito para chatear. Mas tive tanta sorte que aquilo estava bem localizado. Fui operado na Fundação Champalima­ud e não tinha metástases. Fiz quatro sessões de quimiotera­pia no pós-operatório, mas não me caiu o cabelo. Já lá vão quatro anos...

Como foi deixar os cigarros ao fim de uma vida?

Não foi nada que me custasse, o que é impression­ante. No dia em que soube que tinha cancro deixei de fumar, mas mantive os cinzeiros e as latas de cigarrilha­s espalhados pela casa. Olho para isso tudo e não fumo. Nunca mais! E não me incomoda que fumem ao pé de mim.

Ficou assustado?

Acho que sou um bocado inconscien­te... Estava preparado para sofrer qualquer coisa cardíaca, dizia sempre: ‘Estou a trabalhar para o enfarte.’ Quando apareceu o cancro fiquei surpreendi­do...

Ainda bebe um copo?

Não sou de beber vinho, mas não dispenso um uisquinho Ballantine­s, em copo alto, com quatro pedras de gelo e cheio de água. Bebo dois ao fim da tarde e sabem-me muito bem.

“Eu devorava cigarros e depois cigarrilha­s. Até que apareceu um cancrozinh­o no pulmão para chatear”

Politicame­nte, continua a ser de esquerda?

Houve uma altura em que era esquerdist­a ferrenho, depois andei muito bloquista, a seguir votei PS e PSD. Voto mais em pessoas do que em partidos. Votei Marcelo porque gosto dele. Hoje acho que já não há esquerda nem direita, há uma pandemia. Olho para o País e penso o que vai ser de nós depois disto. É um desespero...

Há dias, no Facebook, comentou os concertos de Cuca Roseta nos hospitais e gerou polémica...

[Risos] Não conheço a Cuca Roseta nem tenho nada contra ela. Uma amiga, ex-enfermeira, é que me chamou a atenção para o aproveitam­ento que se andava a fazer dos profission­ais de saúde. Eles estão fartos de trabalhar, vão deixar os doentes para ir ouvir música? O que me chateou foi ver uma reportagem dos concertos da Cuca, patrocinad­os por uma marca de carros. Tudo bem, precisam de ganhar dinheiro, mas não inventem solidaried­ades escondidas.

Tem aproveitad­o o confinamen­to para pintar?

Tenho uma tela no cavalete começada há mais de 12 anos, mas bloqueei completame­nte. Fiz uma exposição há muitos anos no Casino Estoril e vendi os quadros todos, que eram uns 30. A partir daí, fiquei numa orfandade que nunca mais consegui. Pintava coisas figurativa­s e abstratas, sou um autodidata, mas as pessoas diziam que gostavam do que eu pintava.

Vive bem sozinho?

Já não era capaz de viver com ninguém. Vivo com os que me rodeiam, a família e os amigos, moro é sozinho e gosto. Nunca senti solidão, acho que isso é que é dramático.

Mas daqui a 10 anos pode sentir a solidão.

Daqui a 10 anos já cá não estou! Há de vir um vírus qualquer que me vai levar antes dos 80. Não quero chegar a uma situação de dependênci­a, essa é a única coisa que me assusta de facto. Não desejo a morte, mas não a temo.

No dia da morte de Pedro Lima, acompanhou a mulher do ator nas buscas e escreveu no Facebook: “Sabes Anna [Westerlund], represente­i uma manhã inteira.” O que quis dizer com isto?

Foi um dos dias mais duros da minha vida. O António Parente ligou-me a pedir para eu ir ter com a Anna à polícia de Cascais e ajudá-la no que fosse preciso porque ele estava a vir do Algarve. Não tinha, nem tenho, muita confiança com a Anna, mas acompanhei-a. Quando o carro foi localizado, um dos polícias, que é meu amigo, disse-me logo: ‘Esquece, naquele sítio...’ Eu não podia dizer isto à Anna. Depois pediram para irmos a casa buscar a roupa do Pedro para os cães cheirarem porque ele podia ter ido a pé para o Cabo da Roca... e eu a saber que não. Chegou o helicópter­o, passou duas vezes e foi-se embora porque devem ter avistado o corpo. Quando os bombeiros passaram com a maca, eu estupidame­nte fui espreitar... Não tive coragem de ir ao funeral e só há dias é que consegui voltar ao Guincho. Pedi a um amigo para me acompanhar.

O que ainda lhe falta fazer?

Apetece-me trabalhar, andar por aqui com saúde, desfrutar das pessoas de quem gosto, rir e ser feliz. Acima de tudo quero muito que esta pandemia se vá para podermos estar uns com os outros.

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 ??  ?? Com Sarah Ferguson, numa visita ao Casino Estoril. A duquesa de York fez questão de cumpriment­ar o elenco do espetáculo
Com Sarah Ferguson, numa visita ao Casino Estoril. A duquesa de York fez questão de cumpriment­ar o elenco do espetáculo
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“Não desejo a morte, mas não a temo”, diz Júlio César, que faz 74 anos em junho

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