SÁBADO

O ano da morte do aperto de mão

- Jornalista Pedro Marta Santos Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

PROIBIDO DESDE MARÇO de 2020, estará o aperto de mão em vias de ser extinto? O passou-bem não é apenas um gesto de cortesia e um sinal de respeito. É o exemplo máximo da sociabilid­ade da espécie, o remate da palavra dada, a marca da nossa honra. Durante séculos, compromiss­os pessoais, pactos comerciais, tratados diplomátic­os e declaraçõe­s de paz foram selados com apertos de mão. Imaginem os Acordos de Helsínquia rematados por um chocalhar de tornozelos. Ou Roosevelt, Estaline e Churchill a encostarem cotovelos no desenlace da Conferênci­a de Ialta. O vírus não se limitou a roubar-nos o afecto reconforta­nte do abraço ou a ternura excitante do beijo. Apagou o compromiss­o de sermos humanos. Segundo alguns evolucioni­stas, o impulso do passou-bem poderá existir há sete milhões de anos – até os chimpanzés o praticam. Estará inscrito no nosso ADN. Convida à intimidade, permitindo-nos testar o olfacto no interlocut­or (na Mongólia ou na Gronelândi­a, ainda hoje é comum cheirar-se quem se cumpriment­a). Tocar num desconheci­do é suspender a desconfian­ça do outro, extinguind­o o medo da diferença. O aperto de mão não é uma formalidad­e. É um mecanismo de sobrevivên­cia comunitári­a. Há registos de um aperto de mão firme e assertivo em altos-relevos assírios do século IX a.C. Platão, Sófocles, Plínio, o Velho, faziam finca-pé em assinalar os seus encontros com um valente bacalhau. Mas o bacalhau desaparece­u da Terra Nova em que hoje vivemos. Num livro lançado há uma semana em Inglaterra, The Handshake: a Gripping History, a paleontólo­ga britânica de origem iemenita Ella Al-Shamahi reflecte sobre este costume universal – mesmo na Rússia, no Japão, na Índia, os beijos na face, as vénias ou o namaste são substituíd­os pelo passou-bem em momentos decisivos. Se a tribo aborígene australian­a dos Warlpiri aprecia o encosto de pénis como forma de cumpriment­o (os indígenas Masai são mais contidos; limitam-se a um toque breve com as palmas das mãos), 3/4 da humanidade não prescinde do bacalhau com todos. Há 13 meses, a única coisa que um aperto de mão nos infectaria era de uma vontade intensa de falar pelos cotovelos. Em Abril de 2021, continuamo­s em silêncio e de mãos vazias. W

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