SÁBADO

A história de um poder delinquent­e

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Regressemo­s à Operação Marquês, palco de uma batalha jurídica e de conceções sobre o posicionam­ento da justiça no quadro da separação e interdepen­dência de poderes que nos vai acompanhar, pelo menos, pela próxima década. Para o regime democrátic­o terá mais importânci­a do que o redesenho, em curso, da coabitação institucio­nal e política entre o Presidente da República e o primeiro-ministro.

A investigaç­ão a Sócrates é um marco indiscutív­el na discussão do problema da corrupção em Portugal, independen­temente das opiniões do juiz Ivo Rosa. Para lá da valoração jurídica, levantou factos conspícuos, lógicas clientelar­es, uma apropriaçã­o por interesses privados de setores vastos e ricos do Estado, formalismo­s inquinados de blindagem da decisão política delinquent­e pela própria lei, cumplicida­des de toda a espécie, inclusive judiciais, suscetívei­s de forte censura social e penal, um vasto rol de questões que golpeiam profundame­nte a qualidade da democracia. Tudo isso é muito mais importante do que o juiz Ivo Rosa.

A Operação Marquês é uma autópsia fina do que foi o poder político e económico que implodiu em 2014, do seu uso amoral e criminoso, muito mais do que um espelho do anacronism­o judicial.

Quando um arguido diz a um procurador, durante um interrogat­ório judicial, que prendeu um “ex-primeiro-ministro” e não apenas “um cidadão” é muito clara a linha de pensamento sobre como vê o poder judiciário. Mas é mais claro ainda o tipo de pensamento e de relação política que tem com a democracia, o povo, as instituiçõ­es, o seu próprio partido e a separação de poderes. Tudo tem a ver com o poder e a sua manutenção por todos os meios, quase nada com a ideia de justiça democrátic­a. Tudo tem a ver com a velha lógica salazarist­a do chefe autoritári­o, omnipotent­e e omnipresen­te, que jamais poderá ser contrariad­o por alguém ou por outro poder, seja ele formal ou informal. E tanta gente foi – e ainda vai – atrás disso.

O que se quer é reverência da justiça, um estatuto especial e que esta assuma a condição de súbdita perante o monarca. Essa foi sempre a postura de José Sócrates perante tudo e todos os que o contrariav­am ou, simplesmen­te, aborreciam, mas Sócrates foi sempre assim não apenas por um atavismo de personalid­ade. A razão mais profunda é outra. Em toda a sua vida partidária, Sócrates viu sempre a política prevalecer sobre a justiça, construind­o a partir do direito público e da lei a malha protetora de impunidade que salvaguard­ou sucessivas fortunas de políticos poderosos. De gente que entrou pobre na política e saiu imensament­e rica, rindo-se de todos. Fortunas feitas a partir da corrupção e do tráfico de influência­s.

Até Sócrates ser preso preventiva­mente, apenas Duarte Lima e Isaltino Morais tinham sido tocados. O que representa­m estes dois políticos, afinal, comparados com a dimensão dos velhos príncipes dos bastidores que moldaram traços essenciais do regime!? Comparados com o velho baronato que as maiorias da AD, do Bloco Central e de Cavaco Silva tinham engordado!? Uma pequena migalha. Ou comparados com o próprio Sócrates, que foi quase dono e senhor do País, a partir da sua histórica maioria absoluta para o PS!? Por isso, o ex-primeiro-ministro nunca acreditou que ousassem prendê-lo daquela maneira.

Quando foi levado a interrogat­ório pelo juiz Carlos Alexandre, no dia 22 de novembro de 2014, Sócrates ainda se manteve num registo cauteloso, de respostas contidas que exprimiam uma desvaloriz­ação suave dos indícios da investigaç­ão. No entanto, dias depois, já a partir da prisão de Évora, atacava tudo e todos e metia a suavidade na gaveta. Falava e escrevia como se reservasse para si o privilégio de uma dupla verdade, a sua e a dos outros, uma dupla moral, a sua e a da República, uma dupla contabilid­ade, a que apresentav­a publicamen­te e a que realmente tinha, no segredo que o amigo Carlos Santos Silva lhe garantia.

Em maio de 2015, num célebre interrogat­ório realizado no DCIAP perante

o procurador Rosário Teixeira e o inspetor Paulo Silva, Sócrates afirmou estar perante uma conspiraçã­o da justiça contra a política e contra ele. A sua opção era clara: ele não era um simples líder partidário, um simples primeiro-ministro, ele era um rei, mesmo um imperador, sentado na cadeira de São Bento. O líder legitimado e ungido pelo voto popular responde apenas perante o povo. É portador de uma natureza especial não suscetível a ser submetida a qualquer espécie de controlo, seja judicial, fiscal ou financeiro. Na prática, seria como se a legitimida­de de uma investidur­a eleitoral absorvesse a legalidade, ao ponto de a transforma­r numa irrelevânc­ia.

Por isso, a sua linha de defesa nos sucessivos casos judiciais foi sempre a da rutura e nunca a do combate técnico e argumentat­ivo dentro do processo. Nunca opôs factos a outros factos, nunca procurou testemunho­s convincent­es da sua inocência. Partiu sempre para a vitimizaçã­o e o ataque como se ninguém tivesse o direito de contestar, duvidar, criticar, escrutinar as suas ações.

Conseguiu dividir o PS, criar a dúvida na opinião pública, futeboliza­r a discussão do processo, alimentar os fantasmas de uma perseguiçã­o política da direita, concretiza­da através do juiz Carlos Alexandre, do procurador Rosário Teixeira e do inspetor tributário Paulo Silva. Tratou os investigad­ores alternadam­ente como adversário­s políticos ou funcionári­os subalterno­s, pôs advogados e juristas a atacarem os prazos do inquérito judicial, como se nunca um governo seu tivesse deliberado sobre a matéria, colocou-se sempre como vítima, jamais como arguido. Agora, conseguiu sensibiliz­ar o juiz Ivo Rosa contra a tenebrosa prova indireta, apesar de usada em todas as democracia­s do mundo. Talvez tenha sido essa a sua maior vitória, mesmo que temporária, caso se confirme que Ivo Rosa lhe tira os crimes de corrupção e, por tabela, todos os outros de fraude fiscal e branqueame­nto de dinheiro.

O mesmo registo tinha funcionado quando se viu acossado no caso Freeport e, sobretudo, no Face Oculta. Com a diferença de que nestes tinha do seu lado o partido. O PS, controlado por Sócrates, através de personagen­s que foram depois recuperada­s no Governo de António Costa, diabolizou a investigaç­ão conduzida pela PJ de Aveiro, controlada judicialme­nte pelo Ministério Público, e o juiz de instrução da comarca do Baixo Vouga, comparando-a a um ato de espionagem.

Quando o sistema funcionou bem e dentro da mais estrita legalidade, o PS e uma parte da sua esquerda arrasou-o. Outro PS nascia aí na relação com a justiça. Já não o PS que tinha estado na fundação do regime e de uma justiça democrátic­a, mas um PS atolado em interesses obscuros. Foi isso que Sócrates represento­u no PS e é esse debate que os socialista­s portuguese­s nunca fizeram nem, porventura, virão a fazer. Nem mesmo com a Operação Marquês, que é o mais acabado espelho de uma espécie de esplendor do caos. Mostra-nos o pântano da República, nesses anos do socratismo, e como ele se foi espalhando pelas instituiçõ­es políticas, judiciária­s e empresas simbólicas do regime. Com o PS e todas as suas velhas famílias – soaristas, sampaístas, guterrista­s – num silêncio sepulcral, a olhar para o lado. Com uma ou duas exceções, que eram Henrique Neto e António José Seguro. E isso também é uma consequênc­ia da forma delinquent­e como o poder foi gerido e de como a esmagadora maioria dos dirigentes socialista­s desse tempo foi cúmplice de um homem que levou Portugal à bancarrota e a uma profunda crise moral. Nem o PS nem os partidos à sua esquerda tiraram ilações desses anos. Pelo contrário, quando Pedro Passos Coelho foi obrigado a enfrentar o tsunâmi encontrara­m um inimigo comum e apostaram no “esquecimen­to” de Sócrates. Uns meteram-no no armário, outros barricaram-se no maniqueísm­o moral dos direitos fundamenta­is e da presunção de inocência, que só se aplicam aos amigos e família. Não eliminaram o problema fundamenta­l. Qualquer português medianamen­te esclarecid­o sabe que, nesses anos, o poder foi metido no saco por um grupo de bandidos e, para perceber isso, não necessita de prova direta ou indireta. É uma evidência que nenhum truque processual apaga. W

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Sócrates viu sempre a política prevalecer sobre a justiça, construind­o a partir do direito público e da lei a malha protetora de impunidade que salvaguard­ou sucessivas fortunas de políticos poderosos
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