Dez anos de Primavera Árabe
Começou tudo no dia 18 de dezembro de 2010, na Tunísia. Imolava-se pelo fogo, como os monges do Vietname, como Jan Palach em Praga, como Plocek, Kalanta, Krajowa, Siwiec, Zajic, em todo o Leste debaixo da bota da URSS, como Homa Darabi, no Irão, ou Mohamed Bouazizi, um jovem vendedor ambulante. Conhecido como Baabousa, estava cansado de viver na miséria, perseguido pela burocracia policial, incapaz de pagar subornos, condenado à morte lenta dos esquecidos.
Esta modesta fogueira humana propagou-se a toda a pradaria regional.
Em 2011, vinte países do mundo árabe e islâmico, incluindo o Irão e a Indonésia, tiveram incêndios político-sociais de dimensões diversas, protagonizando choques entre a rua e o palácio.
Já é tempo de fazer um balanço. A primeira verificação é a de que, apesar da inquietação, da dramatização, da mediatização, não houve imediatamente transformações radicais na estrutura do poder.
Em boa verdade, só caíram três regimes e igual número de homens-fortes: Hosni Mubarak, no Egito, e Zine Ben Ali, na Tunísia, próximos do chamado Ocidente, e Muammar Gaddafi, na Líbia, animal político não encaixável perfeitamente em nenhum modelo, exceto o dos autocratas messiânicos. Se descontarmos o discurso autojustificativo: “Eu não sou nada, as massas são tudo.”
Em contrapartida, iniciaram-se ruturas cujos resultados ainda não são evidentes, com guerras civis internacionalizadas na Síria e no Iémen, para além da já citada Líbia e do Iraque, e os territórios desses ex-estados divididos, ocupados por forças estrangeiras ou verdadeiras terras de ninguém, disputadas por todos. Q
Q Nas outras entidades (incluímos aí os representantes conflituais da nação palestiniana, a reconhecida Autoridade e o Hamas), não houve nem mudança do regime nem do sistema do governo, mas a chamada “sociedade civil” agigantou-se e criou mecanismos que tiveram de ser admitidos por Presidentes e monarcas, executivos e parlamentos.
Nunca na história regional houve tantas amnistias fiscais e políticas, governos demitidos, novos jornais, ráMoçambique dios e televisões, iniciativas e fóruns de discussão, prisioneiros políticos libertados, reintegrados e às vezes colocados no poder, comissões de inquérito, associações de defesa de direitos, grupos de pressão e interesse, ou iniciativas “independentes”.
Nalguns estados, o processo de reforma foi breve, mas deixando consequências profundas, essencialmente derivadas de concessões do trono à rua (o caso de Marrocos e Jordânia).
Noutros foi abortado, mas regressou em 2020 (Sudão, Líbano), noutros ainda nunca evoluiu de contestação muito localizada ou sem resultados nacionais (Irão, Indonésia, Arábia Saudita). E no Egito a “vacina” do desgoverno da Irmandade Muçulmana levou a um regresso ao tempo dos “militares como força social”.
Alguns dizem que as “democracias” foram a melhor barreira contra o caos, como no caso da Indonésia. Mas a verdade é que, num modelo ainda largamente soviético, como o argelino, ou constantemente a invocar ameaças externas, como o iraniano, foi o peso do
Estado que filtrou a mínima abertura.
Não esqueçamos ainda o papel das comunidades árabes migrantes a viver na Europa e nos EUA, grande fonte de “apoio moral” às revoltas nos torrões natais.
Por fim, o jihadismo e o “islamismo intolerante” cresceram também: a abertura do subsolo não traz só água pura.
Nem controladas nem ignoradas pelo Ocidente, as “revoltas árabes” foram essencialmente o sinal de aviso para as oligarquias de estados relativamente recentes (com exceção do Egito e Irão). Precisavam de mudar de vida. Ou seriam mudadas.
Mas convém não alinhar em entusiasmos morais sobre os sucessores.
Muitas promessas foram esmagadas, muitos libertadores voltaram a prender, muitas vítimas da fome engordaram, muitos idealistas reinaram, mas ineficazes.
Adaptando Lampedusa, leões e leopardos foram substituídos por chacais, hienas e cordeiros.
Mas a história não acabou. W