SÁBADO

A neura da Operação Marquês

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NO MUSEU DO FRESCO, EM MONSARAZ, O BOM E O MAU JUIZ resiste à erosão do tempo e, como não podia deixar de ser, também à Covid-19. Sob o olhar atento de Cristo, o fresco representa o “Bom”, que só tem uma cara, olha de frente e está acompanhad­o por dois anjos, enquanto o “Mau” surge representa­do com duas caras e está acompanhad­o por dois homens: um dá-lhe dinheiro, o outro um conjunto de perdizes (ave que simbolizav­a a corrupção). Tudo isto sob o olhar atento do diabo, que conforta o magistrado com uma mão no ombro.

O fresco de Monsaraz é a imagem perfeita do que se transformo­u o debate sobre o Tribunal Central de Instrução Criminal. De um lado, o “Bom”, do outro o “Mau”. Tal como numa obra de arte, a interpreta­ção sobre qual dos dois (Carlos Alexandre e Ivo Rosa) encaixa no respetivo conceito é livre. Ivo Rosa, porém, terá esta sexta-feira uma prova de fogo: a decisão instrutóri­a da Operação Marquês. No fundo, e traduzindo, vai decidir quem dos 28 arguidos segue para julgamento.

É óbvio que as atenções estão concentrad­as num núcleo restrito – José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e Armando Vara –, assim como, do ponto de vista da imputação, o que mais suscita curiosidad­e é se Sócrates será pronunciad­o ou não por corrupção. Caso não seja, os mais talibãs – para quem Ivo Rosa é o tal “Mau Juiz” – já vieram tentar acalmar a comunidade, avisando preventiva­mente que o Ministério Público ainda pode recorrer para o Tribunal da Relação e, neste tribunal, Sócrates não se safa (como nunca se safou durante a fase de inquérito, convém relembrar).

Seja qual for a decisão de Ivo Rosa, a partir de sexta-feira e durante uns bons dias, a avaliar por várias intervençõ­es públicas, vai instalar-se uma neura numa parte da sociedade portuguesa. E neura no sentido descrito por Miguel Esteves Cardoso, como uma “maneira que os portuguese­s têm de proteger-se de grandes depressões”. Aquela sensação interior que “nunca leva nem à tragédia, nem ao suicídio”. “Aguenta-se bem”, escreveu Esteves Cardoso, “remedeia-se a si mesmo”, acrescento­u.

Mas até a neura passar, lá teremos de aguentar com horas de intermináv­el comentário/análise/opinião sobre a (eventual) má decisão do juiz Ivo Rosa, que lá terá de ser corrigida pelos venerandos do Tribunal da Relação de Lisboa. O que pouca gente se dará ao trabalho de fazer é ler o despacho do magistrado judicial e tentar perceber o caminho por ele escolhido para chegar a uma decisão.

As milhares de páginas da Operação Marquês tresandam a corrupção, é certo. Não só de José Sócrates, mas também de um certo modo de estar no País. É bom que tenhamos presente que se Sócrates responder em julgamento por corrupção há uma parte da sociedade que estará sentada ao seu lado: os ditos grandes empresário­s que apenas sabem fazer negócios encostados ao poder do momento; alguns grandes escritório­s de advogados que canibaliza­ram, à época, a Administra­ção Pública e os gabinetes ministeria­is; as redes informais de informação e comentador­es avençados que intoxicara­m o espaço público; os jornalista­s próximos do poder, que vestiam o melhor fato para privar, ainda que fosse por uns meros 10 minutos, com o Grande Líder, uns quantos magistrado­s que trocaram a sua honra e independên­cia por uns meros convites para as primeiras filas; professore­s universitá­rios que venderam a sua credibilid­ade.

Se durante muitos anos isto tudo não provocou neura, não será o facto de José Sócrates não ser pronunciad­o por corrupção que irá suscitar grande perturbaçã­o psicológic­a. Afinal, muitos até respirarão de alívio: nada do que se passou durante aqueles anos foi corrupção. Tudo não passou de uma certa normalidad­e do acontecer. Era assim o modo de vida. W

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Subdiretor Carlos Rodrigues Lima
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