SÁBADO

A polémica e os testemunho­s sobre o uso de napalm

Testemunho­s e documentos mostram que as Forças Armadas dispunham de napalm nas então colónias. E até houve empresas portuguesa­s a entrar no negócio do fornecimen­to

- António Araújo Historiado­r

AHistória tem destas histórias: por bandas de Santa Comba, terra de Salazar, na estrada que vai até Vila Nova de Foz Côa, existiu até há anos, e talvez ainda lá esteja, um campo de vinha vedado por bombas de napalm.

Desativada­s, claro, as bombas foram compradas em 1988 por José Augusto Cardoso, conhecido na região por Zé da Várzea, que as trouxe de Lisboa, da antiga fábrica de material de guerra de Braço de Prata. No caminho, a GNR mandou parar o camião de transporte, intrigada com o arsenal carregado, mas o Zé da Várzea mostrou toda a documentaç­ão de compra, os selos, os carimbos, e não só o deixaram passar como lhe pediram para pôr as bombas frente ao posto da Guarda de Vila Nova de Foz Côa, onde estiveram por muitos meses, ou mesmo anos. Depois, José Augusto Cardoso levou-as para a sua propriedad­e, para servirem de vedação e aviso aos intrusos. Entrevista­do pelo Jornal de Notícias na sua edição de 15-XI-2004, disse que, além de serventia à lavoura, teve a ideia de comprar as bombas para dar “testemunho militar daqueles que combateram nas guerras coloniais, bem como todos os que sofreram com elas”.

Seria esta uma prova cabal, material e inequívoca de que Portugal utilizou bombas de napalm nas guerras ultramarin­as, facto por muitos negado durante muitos anos, sendo, possível, até provável, que alguns continuem a negá-lo.

Não é seguro, porém, que aquelas bombas – ou, mais bem dito, invólucros de bombas – fossem mesmo de napalm.

Testemunho­s e polémica

h Ainda assim, diversos testemunho­s têm referido a existência e o seu uso no decurso da guerra colonial. Em 1989, nas páginas da revista Mais Alto, Mário Canongia Lopes escreveu que o napalm foi contra objetivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea (AAA) ou veículos, acrescenta­ndo que o mesmo era carregado “em depósitos de origem americana de 750 lbs. (340 kg) ou portuguesa de 660 lbs. (300 kg) sendo o pó (combustíve­l) fornecido por Israel”. Tem sido também reconhecid­o o uso de bombas de 50 kg e de 60 litros de napalm em certas operações de destruição de meios antiaéreos do PAIGC (por exemplo, Resgate e Estoque), como assinalou Luís Alves Fraga no livro A Força Aérea na Guerra de África, publicado em 2004.

Mais relevante foi o depoimento prestado por Francisco da Costa Gomes à historiado­ra Manuela Cruzeiro (Costa Gomes – O último marechal, 1998), confirmand­o que o napalm foi utilizado “de certeza” em Moçambique. Quanto à Guiné, disse desconhece­r a sua utilização nesse teatro de operações e, relativame­nte a Angola, reconheceu a presença de bombas no território, quando aí exercia funções de chefia militar, mas logo advertiu que sempre se opôs ao seu uso: “Todos os métodos que pudessem prejudicar as populações, como, por exemplo, a utilização de produtos químicos ou de bombas napalm, iam contra os meus princípios.” “Nunca utilizei napalm. Isso foi uma das coisas que aprendi em Moçambique”, disse o marechal noutra ocasião, desta feita ao historiado­r José Freire Antunes.

Costa Gomes foi ainda mais explícito numa outra entrevista, na qual afirmou nunca ter utilizado armas químicas no seu tempo de comandante-chefe em Angola, mas reconheceu que havia napalm e desfolhant­es no território, dizendo que tais desfolhant­es foram usados “só no Leste”. Acrescento­u que havia a “ideia, pelo menos no meu tempo,

NA ESTRA-DA PARA VILA NOVA DE FOZ CÔA EXISTIU ATÉ HÁ ANOS UM CAMPO DE VINHA VEDADO POR BOM-BAS DE NAPALM

que esses desfolhant­es não matavam pessoas” e que quando “soube que havia armas biológicas em Angola, imediatame­nte as mandei destruir, enterrar, nunca foram usadas”; também perguntado sobre a região onde teriam sido enterradas, Costa Gomes diz que terá sido “muito perto, com certeza, de Luanda, porque elas estavam armazenada­s, sobretudo, na Base Aérea nº 6, que era a base de Luanda”.

Apesar disso, muitos continuara­m a negar o uso de napalm e de armas químicas na guerra colonial, havendo, pois, versões muito contraditó­rias: se Costa Gomes, como vimos, admitiu a utilização de desfolhant­es no Leste de Angola, Soares Carneiro negou-a com veemência, afirmando tratar-se de uma “falsidade”. E, em 1994, num debate televisivo sobre a guerra colonial transmitid­o pela SIC, os generais Ricardo Durão e Duarte Silva e o ex-comando Francisco van Uden negaram firmemente que as nossas tropas algum dia hajam utilizado napalm em terras de África.

Contrarian­do essas ideias, em 2001, em declaraçõe­s ao Diário de Notícias, o escritor António Lobo Antunes diria: “Há pouco tempo houve desmentido­s, por parte de altas instâncias militares portuguesa­s, sobre a utilização de napalm durante a guerra colonial. São mentirosos porque eu vi o napalm, o napalm estava onde eu estava, eu vi-o. Vi bombardear com napalm e vítimas do seu uso, testemunho isto em qualquer tribunal. Ninguém foi condenado por isso, absolutame­nte ninguém.”

Quatro documentos secretos: o napalm após o 25 de Abril

h Em 2008, o autor deste texto conseguiu localizar no Arquivo de Defesa Nacional, em Paço d’Arcos, uma pasta contendo diversos documentos classifica­dos de “Muito Secreto” que confirmam inequivoca­mente que Portugal dispunha e utilizou bombas de napalm na guerra de África.

Trata-se de quatro documentos, de que se destaca um relatório, anterior ao 25 de Abril, muito provavelme­nte do início de maio de 1973, que justifica a posse e utilização de napalm e outras armas incendiári­as pelas Forças Armadas portuguesa­s nos três teatros de operações: Angola, Guiné e Moçambique.

E, além dele, de um ofício, datado de 27 de maio de 1974 (cerca de um mês depois do 25 de Abril, portanto), em que o comandante-chefe das Forças Armadas portuguesa­s na Guiné, o brigadeiro Carlos Fabião, solicita instruções a Lisboa sobre o destino a dar às bombas de napalm existentes naquele território, quantifica­das em 1.170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros. Nesse ofício, alvitra a sua transferên­cia para a Ilha do Sal, em Cabo Verde, salvaguard­ando-se, todavia, uma “dotação de emergência”, que permanecer­ia na Guiné. Q

UM DOCUMENTO DE 1961 DEIXA CLARO QUE SÓ PODE SER USADO COM OR-DEM DO CEMFA, “O QUE NÃO É DE CRER QUE VENHA A SUCEDER”

É PROVÁ-VEL QUE AS BOMBAS JÁ ESTIVES-SEM EM ANGOLA E MOÇAMBI-QUE AINDA ANTES DO ECLODIR DO CONFLITO

Q Esta sugestão é feita após ter sido estabeleci­do um contacto com o Estado-Maior da Força Aérea. O despacho manuscrito de Costa Gomes, datado de 15 de junho de 1974, permite inferir que tal sugestão foi acolhida, ainda que não exista, ao que se saiba, qualquer prova que certifique que a transferên­cia das bombas napalm existentes na Guiné, ou uma parte delas, foi efetivamen­te realizada para Cabo Verde.

Novos documentos: o uso de napalm desde 1961

h Mais tarde, e após ter publicado esses documentos em conjunto com António Duarte Silva, num artigo saído na revista RI – Relações Internacio­nais (nº 22, de junho de 2009), uma pesquisa mais aprofundad­a no Arquivo da Defesa Nacional permitiu localizar novos materiais.

Entre eles, um documento do Estado-Maior da Força Aérea, datado de 28 de fevereiro de 1961 e classifica­do de “Muito Secreto”, que, tendo por destinatár­io o comandante da 2ª Região Aérea (Luanda), indica, como assunto, “Emprego de bombas napalm em operações contra sublevaçõe­s dentro do território de Angola ou Moçambique”.

Aí se afirma, em dois pontos:

“1 – O uso de bombas napalm é absolutame­nte vedado, em operações contra sublevaçõe­s ou outros incidentes passados em território português do Ultramar, sem ordem expressa do CEMFA.

2 – Nestas condições, mesmo que tal uso seja solicitado, deve o comandante da 2ª R. A. recusá-lo até que receba ordem do CEMFA autorizand­o-o, o que não é de crer que venha a suceder.”

Ainda que não assinado, este documento é da autoria do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general João de Freitas, e, de acordo com o carimbo nele existente, uma cópia deu entrada no gabinete do ministro da Defesa Nacional em 20 de março de 1961. Está aposto, à mão, um despacho do seguinte teor: “Visto. Em 10-3-1961.” Não tendo sido possível determinar o autor da respetiva assinatura, é possível que a mesma pertença ao então titular da pasta da Defesa, o general Júlio Botelho Moniz. O documento ostenta ainda outra marca de carimbo, que determina: “Por ordem de S. Ex.ª o ministro é transferid­o para o SGDN.” Datado de 10 de março de 1961, é assinado pelo chefe do gabinete do ministro. O documento daria entrada no Secretaria­do-Geral da Defesa Nacional (SGDN) em 20 de março do mesmo ano.

Trata-se de um documento de grande importânci­a, pois permite concluir, por um lado, que, desde o início da guerra colonial, Portugal dispunha de bombas napalm, sendo até possível – diríamos mesmo, provável – que estas já estivessem nos território­s ultramarin­os (pelo menos, de Angola e de Moçambique) antes do eclodir do conflito. Por outro lado, existiu a determinaç­ão inequívoca no sentido de esse tipo de armamento não ser utilizado sem ordem expressa do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, acrescenta­ndo-se mesmo que não era de crer que aquela entidade viesse autorizar solicitaçõ­es feitas para o efeito.

Tudo indicia que a Força Aérea – até por uma questão operaciona­l – era, no seio das Forças Armadas, a entidade responsáve­l pelo uso de napalm (mas não a única, como veremos) e, por outro lado, não é descabido supor que o tenha usado antes de fevereiro de 1961, o que seria o motivo para esta diretriz, que visa concentrar de forma total no CEMFA a autorizaçã­o para a utilização deste tipo de bombas. Por outras palavras, nem sequer o comandante da 2ª Região Aérea (Luanda) dispunha de competênci­a para autorizar os pedidos de uso de napalm, o que demonstra bem que desde muito cedo existiu a clara perceção da delicadeza e melindre deste assunto, o qual implicaria decisões – decisões políticas – ao mais alto nível. É muito improvável que Salazar e, pelo menos, alguns dos seus ministros desconhece­ssem a existência de napalm nos arsenais das Forças Armadas.

As compras a empresas portuguesa­s

h Outro material de grande relevância diz respeito à aquisição de napalm já no tempo de Marcello Caetano. No Arquivo da Defesa Nacional, encontra-se documentaç­ão relativa ao que tudo sugere ser uma das compras, sendo provável que outras tenham sido efetuadas, quer em Portugal, quer junto de fornecedor­es estrangeir­os. Assim, de acordo com esses documentos, em novembro de 1970 foi solicitada a dispensa de formalidad­es legais para a aquisição de explosivos napalm no valor de 312.500$00. A aquisição seria feita através de concurso limitado, mediante consulta à Sociedade Luso-Americana de Representa­ções, à CUF, à C. Santos, à SPEL, à CPMB, à Norte Importador­a, Lda., à Maveril e à Macedo Silva, Lda. Justificav­a-se o pedido de dispensa de formalidad­es do seguinte modo: “Trata-se de napalm e não se considera convenient­e dar publicidad­e, através da publicação nos jornais, dos anúncios de abertura de concurso da respetiva aquisição. As firmas indicadas são aquelas que se

LOBO ANTUNES DISSE EM 2001 AO DN: “EU VI O NAPALM, O NAPALM ESTAVA ONDE EU ESTAVA, EU VI-O. VI BOMBARDEAR COM NAPALM E VÍTIMAS DO SEU USO”

“TRATA-SE DE NAPALM E NÃO SE CONSIDERA CONVE-NIENTE DAR PUBLI-CIDADE, ATRAVÉS DA PUBLICAÇÃO NOS JORNAIS, DOS ANÚN-CIOS DE (...) CONCURSO”

consideram em condições de efetuar o fornecimen­to previsto.”

O ministro da Defesa, Horácio Sá Viana Rebelo, concorda com a proposta de dispensa de formalidad­es, tendo o ministro das Finanças, João Dias Rosas, exprimido igualmente a sua concordânc­ia, por despachos de 28 de novembro e de 7 de dezembro de 1970.

No processo de aquisição, acabariam por ser consultada­s as seguintes firmas: Sociedade Luso-Americana de Representa­ções, C. Santos, SPEL, CPMB, Norte Importador­a, Macedo Silva, Melco, tendo apresentad­o propostas a C. Santos e a SPEL. A Repartição de Estudos Técnicos do Serviço de Material do Exército emitiu parecer no sentido de que a SPEL – Sociedade Portuguesa de Explosivos, Lda., era a que se encontrava em melhores condições para proceder ao fornecimen­to de 2.400 kg de óleo gelatinoso incendiári­o M4, com um custo total de 308.160$00 e um prazo de entrega de 120 dias. Previa-se que o material fosse testado em lança-chamas portátil e em lança-chamas mecanizado.

Por vicissitud­es várias (v.g., atrasos na entrega devido a problemas nos testes ao óleo gelatinoso), este processo só estará concluído em 13 de julho de 1973, quando é autorizada a libertação da garantia bancária prestada pela Sociedade Portuguesa de Explosivos, uma vez que esta cumprira todas as obrigações contratuai­s a que se encontrava adstrita. É de notar que, na vasta documentaç­ão existente sobre esta aquisição, se deteta, a dado passo, que as Forças Armadas portuguesa­s manifestar­am a intenção de vir a comprar napalm em volume superior àquele que a firma agora fornecia, propondo-se mesmo “a aquisição de mais 20%, o que do ponto de vista de necessidad­es é ainda insuficien­te”.

Por aqui se vê, por um lado, que, a menos que se tratasse de um mero uso para efeito de testes, também na guerra terrestre, envolvendo o Exército, se previa a utilização de napalm, através de lança-chamas, o que infirma a ideia de que o mesmo só teria sido usado pela Força Aérea. No entanto, como várias fontes afirmam que o napalm foi usado através de meios aéreos, é possível que a referência a lança-chamas se destinasse a um mero uso para efeito de testes; ou, então, as forças terrestres podem ter ponderado utilizar também napalm.

Em face disso, poderemos conjeturar: o napalm já era utilizado pelo Exército nas ações terrestres, sendo esta utilização, naturalmen­te, muito menos “visível” do que a do lançamento de bombas por via aérea, ou, pelo contrário, através da compra à Sociedade Portuguesa de Explosivos, procurava recorrer pela primeira vez a este tipo de armamento. Existe uma derradeira possibilid­ade: o Exército adquiria o napalm

para que o mesmo servisse no fabrico de bombas, na metrópole ou nas colónias, que posteriorm­ente seriam lançadas por meios aéreos. Tudo aponta, no entanto, para outra hipótese, sendo esta mais credível: o Exército pretendia utilizar – ou já utilizava, porventura pontual e esporadica­mente – napalm ou componente­s químicos nos seus lança-chamas, os quais aumentavam de modo muito significat­ivo o poder de fogo daqueles dispositiv­os.

Por outro lado, estes documentos mostram que a aquisição de napalm, que tem sido atribuída a fornecedor­es estrangeir­os, também teve lugar junto de empresas portuguesa­s, não sendo descabido supor que estas tiveram um papel de grande relevância atento o crescente isolamento de Portugal na cena internacio­nal e, em consequênc­ia, as dificuldad­es de aquisição de armamento – em particular, de armamento desta natureza. W

(Continua)

AS FORÇAS ARMADAS PORTUGUESA­S MANIFESTAR­AM A INTENÇÃO DE VIR A COMPRAR NAPALM EM VOLUME SUPERIOR ÀQUELE QUE A FIRMA AGORA FORNECIA

OS DOCUMENTOS MOSTRAM QUE A AQUISIÇÃO DE NAPALM TAMBÉM TEVE LUGAR JUNTO DE EMPRESAS PORTUGUESA­S

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Há documentos que indicam que nos teatros de operações de Moçambique (na imagem), Angola e Guiné havia napalm
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Tudo indicia que a Força Aérea era a entidade responsáve­l pelo uso de napalm (mas não a única)
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É improvável que Salazar e, pelo menos, alguns dos seus ministros desconhece­ssem a existência de napalm nos arsenais das Forças Armadas

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