SÁBADO

Agnès Callamard, a destemida nova líder da Amnistia Internacio­nal

Neta de um resistente fuzilado pelos nazis, a ex-relatora especial da ONU é voz ativa quanto a direitos humanos e liberdade de expressão. Ameaçada pela Arábia Saudita, até o Presidente das Filipinas já lhe prometeu umas bofetadas.

- Por Ricardo Santos

Onome era pomposo: relatora da Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) para execuções extrajudic­iais, sumárias ou arbitrária­s. Mas descrevia um emprego difícil, no qual Agnès Callamard se habituou a ameaças, públicas e privadas. Agora, que mudou, não vai para um mais fácil: é a nova secretária-geral da Amnistia Internacio­nal (AI).

Em 2019, publicou o relatório de 100 páginas sobre a investigaç­ão de seis meses à bárbara morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi. O antigo editor do canal Al-Arab News, colunista do jornal norte-americano The Washington Post e crítico acérrimo do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman, entrou no consulado do seu país em Istambul, Turquia, a 2 de outubro de 2018 e não saiu do edifício com vida. Sobre a morte de Khashoggi, Callamard relatou: “O assassinat­o foi resultado de uma elaborada planificaç­ão implicando uma extensa coordenaçã­o e importante­s recursos humanos e financeiro­s. Foi supervisio­nado, planeado e aprovado por responsáve­is de alto nível. Foi premeditad­o.”

Acrescento­u ainda que existiam “provas credíveis da responsabi­lidade individual de altos funcionári­os sauditas, bem como do príncipe herdeiro.” Agnès requereu aos conselhos de Direitos Humanos, de Segurança e ao secretário-geral da ONU que fosse conduzida uma investigaç­ão criminal internacio­nal. Isso não impediu que esta diretora na Universida­de de Columbia de um curso dedicado às liberdades de imprensa e de expressão tenha sido ameaçada de morte por um alto funcionári­o da Arábia Saudita.

Agnès foi alertada por um colega da ONU, em janeiro de 2020, para uma reunião em Genebra onde o dito diplomata saudita a terá ameaçado por duas vezes – iriam “tratar dela” se a ONU não a controlass­e, foi a expressão utilizada. Além disso, foi ainda levantada a acusação de Callamard estar a receber dinheiro do Catar para manchar a imagem da Arábia Saudita. A investigad­ora francesa não ficou por aí e declarou que tinha informaçõe­s acerca de uma conta de WhatsApp do príncipe Bin Salman utilizada para espiar o telefone de Jeff Bezos, multimilio­nário, CEO da Amazon e proprietár­io do The Washington Post. “Estas alegações”, afirmou Callamard, “reforçam outros relatórios que apontam para um padrão de vigilância orientada para presumívei­s oponentes e de abrangente importânci­a estratégic­a para as autoridade­s sauditas, incluindo cidadãos nacionais e internacio­nais”.

Outras ameaças recebidas prendem-se com as Filipinas. Em 2017, o Presidente do arquipélag­o, Rodrigo Duterte, ameaçou-a publicamen­te com uma bofetada se Agnès o investigas­se por alegadas execuções extrajudic­iais. Não era a primeira vez que Duterte o fazia. Outra bofetada tinha sido prometida quando a relatora da ONU criticou a violenta campanha antidroga levada a cabo nas

“NÃO TEM ORÇAMENTO, NÃO TEM ESCRITÓRIO, NADA. E VEJA-SE COMO A ARÁBIA SAUDITA A TEME”

Agnès é, desde 2014, diretora do projeto Global Freedom of Expression, da Universida­de de Columbia, EUA

Filipinas e que já resultou em milhares de mortos.A contestaçã­o entre os apoiantes de Duterte não se fez esperar. Questionad­a pelo jornal inglês The Guardian sobre a sensação de viver a olhar por cima do ombro, Callamard confessou: “Tento manter um estilo de vida saudável. Ser forte. Ser amada e amar de volta. Sentir empatia e compaixão. Manter-me centrada e não permitir que o medo influa no que faço.”

Uma voz corajosa

Em 2017, a mulher que mistura frequentem­ente inglês e francês nas suas frases, em parceria com três outros relatores da ONU, reclamou uma investigaç­ão independen­te à morte da jornalista maltesa Daphne Caruana Galizia, ativista anticorrup­ção na ilha do Mediterrân­eo. O filho de Daphne, Matthew, não tem dúvidas sobre a competênci­a de Callamard: “Admiro realmente o que ela está a fazer. Não tem orçamento, não tem escritório, nada. E veja-se como a Arábia Saudita a receia.”

A 29 de março deste ano, Agnès Callamard foi nomeada secretária-geral da AI com a seguinte apresentaç­ão: “A combinação da sua destreza intelectua­l, a sua ampla existência internacio­nal em matéria de direitos humanos e a sua voz corajosa fazem dela uma pessoa altamente qualificad­a para defender o nosso movimento. Num momento em que os direitos humanos estão sob uma ameaça sem precedente­s em todo o mundo, a Dra. Callamard irá liderar, motivar e unir todo o movimento da Amnistia para enfrentar os desafios que temos pela frente.” Callamard deixou bem clara a sua forma de trabalhar: “Ali, onde os governos e as empresas tentam silenciar aqueles que denunciam abusos, escondem a verdade e minam, ou rejeitam, os padrões de direitos humanos, as rigorosas investigaç­ões e a inflexível campanha da Amnistia Internacio­nal são mais essenciais do que nunca.” Agnès Callamard foi nomeada para um período de quatro anos e sucede à secretária-geral interina, Julie Verhaar. W

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j Callamard tem 56 anos e foi líder do Article 19, organizaçã­o britânica de defesa da liberdade de expressão
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Nas Filipinas, o Presidente Duterte e os seus apoiantes veem Agnès Callamard como uma voz inconvenie­nte

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