Como foi feito o documentário A Sabedoria do Polvo, nomeado para os Óscares
Brinca com peixes, foge colado a tubarões e nada com pessoas. Craig Foster filmou-o durante um ano.
Quando Pippa Ehrlich recebeu por email o argumento do documentário A Sabedoria do Polvo não conteve as lágrimas. Estava sentada à sua secretária, no jornal onde trabalhava, e quando deu por si estava a chorar enquanto lia sobre a amizade entre um polvo e um humano. Sim, um polvo que é capaz de brincar, tem memória e chegou a ir ao colo de Craig Foster, o mergulhador que o visitou todos os dias durante um ano. Nessa altura, a jornalista ainda não tinha visto as centenas de horas de gravação que Craig tinha feito – onde vemos o polvo a disfarçar-se com conchas e a fugir de tubarões – e que concorrem agora ao Óscar de Melhor Documentário de 2020. Mas Pippa, que escrevia sobre conservação ambiental, estava habituada a descobrir factos surpreendentes sobre a vida selvagem. Então o que tinha de tão diferente este bicho? “A relação do Craig e do polvo é uma visão de respeito, de humildade e de interdependência. Podemos chamar-lhe amizade. No mínimo, é uma relação de confiança e de curiosidade mútua”, diz à SÁBADO.
Pippa Ehrlich vai mais longe ao explicar que nunca tinha visto nada assim. “Craig filmou o ciclo de vida de uma criatura do mar. Nunca conheci o polvo, mas ver a progressão dele a caçar, como tentava várias estratégias até perceber a que funcionava com lagostas, é surpreendente. É um animal vulnerável. No fundo, é um caracol que trocou a sua casca por um cérebro grande. Apesar de vulnerável, confiou naquele humano e mostrou-lhe o seu mundo.”
Foram precisos 26 dias de visitas para o polvo ter coragem de sair da sua toca e aproximar-se de Craig Foster. Inicialmente, o realizador,
“[O POLVO] É UM CARACOL QUE TROCOU A CASCA POR UM CÉREBRO GRANDE”
que tinha tido um burnout e por isso voltou a mergulhar, começou a nadar na floresta de algas, na África do Sul, sem um objetivo preciso. Preferia o free diving, ou seja, sem usar fato nem garrafa de oxigénio. A primeira vez que levou a câmara viu uma coisa bizarra no fundo do mar. Um animal coberto de conchas e pedras. “Que raio de animal é este?”, pensou. De repente, algo soltou-se das conchas e nadou para longe. Era um polvo. Rapidamente o animal se enrolou numa alga e ficou a espreitar o homem.
Polvo sem mãe nem pai
Foi nesse momento que Craig teve a ideia “louca”, como o próprio define no documentário da Netflix, A Sabedoria do Polvo, de o visitar todos os dias. Foram mais de 300 dias e quando se apercebeu do material que tinha, compreendeu que se tratava de algo especial. Mas Craig estava demasiado ligado ao polvo – aquele ano de visitas tornou-se quase uma obsessão – que precisou da ajuda de dois realizadores. Pippa Ehrlich e James Reed editaram as centenas de horas e entrevistaram Craig, que estava fascinado com o que tinha descoberto. “É um animal muito frágil, líquido e mole que depende de uma inteligência tremenda”, explica no documentário. “Não tem mãe nem pai para lhe ensinar nada. Está sozinho e com imensos predadores. Ao longo dos anos criou métodos para os enganar.” Um dos mais engenhosos que vemos é furar conchas [com o bico que tem por baixo da cabeça] num local específico para que o bicho seja expulso.
“É quase geometria”, conta Pippa. No entanto, a descoberta mais impressionante foi outra: enganar um tubarão-gato-listrado.
O animal enrolou-se em forma de bola, disfarçou-se com conchas, mas o tubarão atacou sem misericórdia. A única saída foi fazer algo imprevisível: o polvo colou-se às costas do predador e escapou. “O mundo de um polvo é uma constante tensão entre curiosidade e medo, como nos explicou a cientista e psicóloga de cefalópodes [moluscos marinhos], Jennifer Mather”, diz Pippa. A realizadora revela que estas foram as imagens mais difíceis de editar. “Surgem questões sobre o que se deve fazer numa situação destas: deixas a natureza agir ou tentas proteger o animal?” Dessa vez escapou.
Pippa explica que não se fica indiferente ao documentário, quer pela necessidade de escapar ao confinamento, quer pela importância da biodiversidade até para evitar pandemias. A realizadora conta ainda que nunca mais olhou para os animais da mesma forma. “Até a mais pequena lapa tem a sua experiência de vida a acontecer. Ficamos com um sentimento de respeito e fascínio.” W
“O MUNDO DO POLVO É UMA CONSTANTE TENSÃO ENTRE CURIOSIDADE E MEDO”, DIZ A REALIZADORA