SÁBADO

A fadista Gisela João tem novo álbum, AuRora, e fala sobre ele

Depois de um ano de espera, chegou o AuRora, o terceiro disco de Gisela João, trabalho em que a fadista deixa deslizar a música eletrónica pelos pilares do fado tradiciona­l e se estreia na composição.

- Por Filipa Teixeira

AURORA é o disco mais denso de Gisela João e, simultanea­mente, o menos óbvio. Não que isso por si só valha elogios ou o demarque do seu disco homónimo de estreia (2013) e de Nua (2016), dois magníficos registos de uma das vozes mais inebriante­s que o fado conheceu nos últimos anos. Contudo, neste AuRora, Gisela João investe a fundo na sua intimidade de uma forma que não lhe tínhamos visto antes com tanta clareza e arrojo, com a veleidade de quem tem o abismo a romper-lhe das palavras, seja por uma paixão incendiári­a, uma tolice espontânea ou uma tristeza que range sobre as Tábuas do Palco – título do tema escrito por Capicua.

Deste exercício nasceu uma coletânea de músicas essencialm­ente originais (duas escritas por Gisela João), com um cariz vincadamen­te feminino – da mulher que chora “num drama total” para logo a seguir levantar a cabeça e seguir em frente – cujas significân­cias se desdobram à medida que o álbum conquista o seu espaço na esfera pública, ao mesmo tempo que o próprio ouvinte experiment­a a duplicidad­e de cada canção conforme ela cresce ou desaba em si. Ao ser o seu trabalho mais pessoal, é também o trabalho que mais pontos de reverberaç­ão encontra no outro.

“As letras que eu canto são sempre muito democrátic­as, cabem na vida de toda a gente. Quando eu canto eu sinto que estou a cantar a minha história, mas também a história das pessoas que conheço e que não conheço. Isso para mim é muito importante”, explica Gisela, esbracejan­do do outro lado do ecrã, em entrevista por Skype à SÁBADO.

É por isso que a fadista, crescida no Norte de mulheres “com personalid­ade forte, de

Pela primeira vez a cantora participa no disco escrevendo. Os temas Canção ao Coração e Budapeste têm letras assinadas por Gisela João

mão na cintura, gargalhada alta e de muitas opiniões”, não esconde a frustração quando alguém lhe pergunta, “o que é que queres dizer com esta música?”: “Nesse momento, a sensação que eu tenho é ‘foda-se, falhei’, porque não consegui que aquela pessoa percebesse o que estava a ouvir. O que eu quero é que as pessoas criem o seu poema com aquilo que eu estou a cantar, que chorem se tiverem de chorar, que riam se tiverem de rir, que se sintam vivas.”

Enquanto intérprete (e agora também compositor­a), a forma de Gisela se manter viva é cantando com honestidad­e, diz: “A música é uma continuaçã­o da vida e por isso ela não pode ser perfeita. Se a voz tiver de esganiçar em algum momento é porque a história assim o pedia.” Neste enredo de 12 canções de AuRora, a fadista de 37 anos rompeu com alguns dogmas estéticos para trazer elementos tradiciona­lmente estranhos ao fado para o seu universo: “Neste disco, a

música eletrónica está lá, mas está de uma forma que eu sinto que é necessária para servir a música que estou a cantar.” Ou seja, não foi preciso “pôr os sintetizad­ores a comer tudo o resto” nem “virar uma Rosalía portuguesa” para sentir essa influência. “Nem pensar.”

Aqui há que dar mérito ao produtor Michael League, líder dos Snarky Puppy, pela delicadeza com que mexeu no fado sem lhe revolver as entranhas. Não que “o desafio de traduzir o País” a alguém de fora tenha deixado Gisela João assustada, “só que eu sou muito fã dos Snarky Puppy”, assume, dizendo que o facto de a banda norte-americana encarar a música da mesma forma que ela facilitou o processo de diálogo: “Não fazem música a pensar naquele prémio ou naquele programa, mas porque gostam de fazer coisas que sentem que estão bonitas.”

AuRora acaba, portanto, por balançar num ténue equilíbrio entre o arrojo estético, com teclados e sintetizad­ores a intrometer­em-se na tríade clássica guitarra portuguesa, baixo e guitarra, e as raízes do fado, “identidade e personalid­ade de todo um povo”. Por muito tentador que pudesse parecer o apelo da disruptura total, Gisela João garante que nunca quis abrir mão da linguagem tradiciona­l: “O público quer sempre mais e isso pode ser um bocado traiçoeiro, porque depois tu também queres fazer mais, mas neste género musical entra a contenção. Eu tenho a certeza de que as pessoas que gostam do meu trabalho vão entender que eu não podia de um momento para o outro fazer as piruetas que se calhar elas esperavam que eu fizesse”.

Depois dos três singles lançados – Louca, Já Não Choro por Ti e Canção ao Coração – chegou o momento de o álbum ver a luz do dia, com um rasgo de esperança que, simbolicam­ente, a fadista compara à nossa circunstân­cia: “Estamos a viver uma nova aurora.” Resta apresentá-la ao vivo, momento pelo qual Gisela anseia: “Cada vez que vamos tocar uma música nova na televisão parece que estamos a fazer um concerto para 10 mil pessoas! Precisamos muito de voltar aos palcos e acho que o público também precisa que voltemos.” W

Na composição destacam-se nomes como o de António Zambujo, Capicua, João Monge ou do namorado da cantora e também membro dos Snarky Puppy, Justin Stanton

 ??  ?? A fadista, de 37 anos, viu a pandemia travar-lhe o disco. “Não era o momento para estar atenta ao meu umbigo”
A fadista, de 37 anos, viu a pandemia travar-lhe o disco. “Não era o momento para estar atenta ao meu umbigo”
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• Sons em Trânsito €12,99 (Fnac)
AURORA • Sons em Trânsito €12,99 (Fnac)

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