A obra de Donoghue sobre uma pandemia escrita antes da pandemia
A autora de O Quarto de Jack terminou em março de 2020 um romance sobre a pandemia que afetou o mundo em 1918. Não imaginava que vinha aí a Covid. A Dança das Estrelas tem agora edição portuguesa.
Estreou-se como romancista com Stir Fry, em 1994, vivendo da escrita desde então, mas foi em 2010, com O Quarto de Jack – história de uma mãe confinada, com o filho, contra a sua vontade –, finalista do Booker, que ganhou reconhecimento mundial.
Irlandesa de 51 anos, com dois filhos, fez da maternidade de um hospital de Dublin, em plena pandemia de gripe espanhola, o cenário do seu novo livro, A Dança das Estrelas. Foi o pretexto desta entrevista.
Como surgiu a ideia para este livro?
Li um artigo na revista The Economist sobre o centenário da Grande Gripe de 1918.
Porque é que decidiu situar a ação na maternidade de um hospital?
Quando descobri um facto pouco divulgado, que as mulheres no fim da gravidez tinham mais propensão para se contagiarem e sofrerem efeitos colaterais terríveis dessa estirpe de gripe. Esta dupla crise sanitária pareceu-me um ângulo fascinante.
Tudo gira em torno de três mulheres: a enfermeira-parteira Julia Powers, a médica Kathleen Lynn e a jovem voluntária Bridie Sweeney. É um livro feminista?
Sem dúvida, bastante, tal como todos os meus livros são feministas, embora talvez nem sempre seja assim tão óbvio!
Na pesquisa, focou-se mais nos aspetos médicos ou nos históricos?
Fiz pesquisa a todos os níveis, tanto em manuais de Medicina, escritos por médicos e enfermeiras, como em anúncios, fotografias, diários, cartas e jornais da época.
Como descobriu a médica sufragista, verídica, que tornou uma das personagens principais de A Dança das Estrelas?
Andava apenas à procura de informações de fundo sobre médicos irlandeses da altura, com a intenção de inventar uma boa personagem, e Kathleen Lynn – como uma médica mulher, enfrentando o preconceito, com um forte interesse pelo parto e pela gripe e com um compromisso com a justiça social que acabou por conduzi-la aos movimentos revolucionários irlandeses – revelou-se mais perfeita para o livro do que qualquer uma que eu pudesse inventar.
Procurou recriar os profissionais de saúde da época ou eles são, na verdade, parecidos com os que temos hoje?
Tentei que fossem bastante fiéis, em termos
de mentalidades e práticas, a 1918, mas por vezes, temendo que os leitores os considerassem demasiado fatalistas ou insensíveis, aproximei-os um pouco dos seus congéneres modernos. Por exemplo, dei à minha parteira protagonista um momento em que ela realmente se preocupa com a forma como lida com uma mãe que acabou de dar à luz um nado morto.
Decidiu que a ação seria em Dublin e duraria três dias mal começou a escrever?
Sim, nunca quis que o meu romance sobre uma pandemia atravessasse o mundo inteiro ao longo de anos, queria captar o horror num tempo e num lugar particulares. Além disso, achei que conseguiria ser mais autêntica se descrevesse Dublin, que é a minha cidade natal, e escolhi três dias porque era exatamente quanto bastava para apanhar este vírus terrível e morrer dele.
Como é o seu processo de escrita? Reescreve muito?
Faço muita pesquisa e planeamento e escrevo, pelo menos, três rascunhos de cada livro. Creio que estou na média. Muitos romancistas reescrevem mais.
Enquanto estava a escrever, em 2018 e 2019, alguma vez imaginou que apareceria uma pandemia como a que estamos a viver agora?
Sabia que era uma possibilidade, mas não fazia a menor ideia do que estava prestes a acontecer no momento em que entreguei a versão final do romance à editora original, precisamente em março de 2020.
Consegue fazer paralelismos entre a pandemia de 1918 e esta?
Há muitos. Não tanto em relação à doença em si, porque a gripe espanhola era muito mais mortífera do que a Covid-19, mas em relação à forma como governos, empresas e indivíduos reagiram. Em qualquer época, creio, as pandemias atuam como um raio-X, revelando as verdadeiras prioridades da sociedade – aqueles com quem não nos importamos o suficiente e que permitimos que adoeçam e morram.
Passaram mais de 10 anos desde a publicação de O Quarto de Jack, o seu livro
bestseller premiado que originou um filme aclamado em 2015. Como é que isso afetou a sua vida e a sua escrita? Não afetou muito, na verdade, porque posso dar-me ao luxo de ser escritora a tempo inteiro desde os 23 anos. O Quarto de Jack deu-me apenas mais leitores e novas oportunidades na indústria do cinema e da televisão, o que adorei.
Há uns anos, mudou-se da Irlanda para o Canadá para poder ser mãe, através de inseminação de um dador de esperma, uma vez que se assume como lésbica, certo? Como foram as suas gravidezes e o nascimento dos seus filhos?
Houve outros motivos para me mudar para o Canadá, mas é verdade que eu e a minha companheira Chris temos dois filhos, já com 17 e 13 anos. Dar à luz os dois foi, para mim, uma experiência fascinante. Usei a cena do nascimento de um deles em A Dança das Estrelas e ambos têm-me inspirado muitos dos meus livros.
O que está a escrever agora?
Os meus dois próximos romances e, em colaboração com um compositor, um musical. W
Em qualquer época, as pandemias atuam como um raio-X, revelando as verdadeiras prioridades da sociedade – aqueles com quem não nos importamos o suficiente e que permitimos que adoeçam e morram