AS HISTÓRIAS DO NOVO GOLEADOR
Fajitas
Haaland treinou com raparigas, comia à maluca, dorme com as bolas dos hat-tricks e não para de bater recordes. Fomos descobrir a sua vida
Treinou com raparigas, tinha dores nos joelhos por crescer demasiado, comia 1 kg de de frango, usa lentes especiais para jogar videojogos e recusou ser suplente de CR7. Haaland está a bater todos os recordes e Barça ou Real Madrid poderão pagar €150 milhões por ele.
Alf Ingve Berntsen, 56 anos, trabalhava nas finanças enquanto terminava a sua formação em desporto. Quando os seus filhos gémeos fizeram 7 anos, começou a treiná-los na sua maior paixão, o futebol. Levou-os até ao clube local, o Bryne FK, e juntamente com outros pais recebeu uma fornada de 40 crianças que iria orientar durante 10 anos, até 2015. Entre eles, estava um miúdo de 5 anos, Erling Haaland, que revelou um talento invulgar para meter a bola dentro da baliza. “Aos 8 anos, colocámo-lo a treinar com os miúdos de 9 e marcava. Aos 10, foi treinar com os de 12 e marcava. Sempre teve uma obsessão pelos golos”, diz à SÁBADO Alf Berntsen, o primeiro treinador do ponta de lança mais cobiçado da atualidade. “Nunca tinha medo de falhar. Era igual jogar com miúdos da mesma idade ou contra adultos.”
A dependência do norueguês pelo golo – que o próprio já definiu como “a droga mais louca que existe” – não suavizou com o tempo. Pelo contrário. No Campeonato do Mundo de sub-20, em 2019, rebentou o recorde da competição ao apontar nove tentos numa vitória por 12-0 contra as Honduras. No dia seguinte, o treinador hondurenho Jose Rodriguez encontrou-o no aeroporto e disse-lhe: “Arruinaste os meus rapazes.” Haaland não se mostrou orgulhoso, mas desiludido. “Disse que estava zangado porque tinha tido oportunidades para marcar 11”, revelou Rodriguez ao jornal norueguês Verdens Gang. “Eu pensei: ‘Merda! Este rapaz é uma máquina.’”
Os recordes não param de aumentar. Aos 20 anos, o avançado do Borussia Dortmund leva 104 golos apontados em 155 jogos oficiais pelos clubes por onde passou – Bryne FK, Molde, Red Bull Salzburgo e Borussia Dortmund – e pela seleção norueguesa. Na liga alemã, são 49 em 52 jogos. Mas é na Liga dos Campeões que os números impressionam: Haaland soma 20 golos em 15 partidas. Para que se tenha noção do feito, Cristiano Ronaldo, o melhor marcador da competição, só alcançou os 20 golos perto de completar 25 anos, com 56 jogos.
Crescer numa zona rica
Os grandes clubes europeus, como Barcelona, Real Madrid ou Manchester City, estão a preparar ofertas milionárias pelo craque: 150 milhões de euros, segundo o The Guardian. Na semana da Páscoa, Haaland, acompanhado pelo pai e pelo agente, Mino Raiola, visitou Espanha e Inglaterra para ouvir as propostas.
A genética pode explicar parte do sucesso de Erling; afinal, o seu irmão mais velho, Astor, também treinou futebol e a irmã, Gabrielle, joga andebol. A mãe, Gry Marita Braut, foi campeã juvenil de pentatlo. “E o tio, Gabriel Hoyland, é uma lenda do Bryne FK, com mais de 20 chamadas à seleção”,
“SEMPRE TEVE UMA OBSESSÃO PELOS GOLOS E NUNCA TINHA MEDO DE FALHAR”, DIZ ALF BERNTSEN
diz Berntsen. “O apelido Haaland na nossa região é sinónimo de desporto.” Até à adolescência, Erling também praticou andebol e atletismo.
Todavia, ninguém mais do que o pai, Alfie Haaland, teve tanta relevância na sua formação. Primeiro, porque fez carreira como defesa, algo que Erling sempre rejeitou. Depois, porque as suas passagens pelo Leeds United, Nottingham Forrest e Manchester City, da Liga inglesa, levaram a que o rapaz crescesse num ambiente de alta competição. “O meu pai foi um grande jogador. Mas eu quero ser melhor do que ele”, disse Haaland, aquando da sua transferência para o Molde.
Erling nasceu em Leeds, em julho de 2000, pelo que tem também passaporte inglês. Mas em 2004 os Haaland regressaram a Bryne, uma pequena cidade com 13 mil habitantes no Sudoeste da Noruega, outrora agrícola e que prosperou devido à exploração de petróleo. Ali, o nível económico das famílias está na vanguarda europeia. Haaland não passou pelos campos de rua como Maradona, em Vila Fiorito, ou mesmo como o seu contemporâneo Mbappé, nos arredores de Paris. Antes de completar 6 anos, ingressou no clube local que, aos fins de semana, deixava os benjamins jogar nos seus campos e, no inverno, lhes abria as portas do terreno indoor para poderem treinar nos meses com neve. Os rapazes e as raparigas treinavam juntos, em consonância com
Q a conduta do modelo de formação escandinavo. Andrea Norheim, hoje profissional na Liga sueca, partilhava o relvado com a vedeta do Dortmund.
“Na Escandinávia, os rapazes e as raparigas podem treinar em conjunto até aos 16 anos. A igualdade de género é levada a sério. É o chamado futebol social, o jogo é em primeira instância para todos se divertirem”, diz à SÁBADO António Martins Silva, 47 anos, atual treinador da equipa feminina do Länk FC Vilaverdense, que de 2012 a 2015 orientou a formação do Sandnes ULF, rival do Bryne de Haaland naquela região da Noruega.
“Cheguei a jogar contra ele, mas na altura era só mais um dos miúdos talentosos”, diz Martins Silva. “Ao contrário do que se pensa, na Noruega há rapazes com muita técnica. Mas privilegia-se muito o treino individual em detrimento do coletivo. Muitos miúdos chegam aos 18 anos todos rebentados e saturados devido ao excesso de horas de treino. Depois, desistem, porque o país lhes oferece imensas possibilidades para além do futebol. Haaland, devido ao seu talento e ao acompanhamento do pai, conseguiu desviar-se desta tendência.”
Até aos 15 anos, Erling tinha uma estatura normal e era magrinho. “Tinha de trabalhar mais para ganhar espaço aos defesas, mais velhos e robustos”, diz o antigo treinador. “Era muito sorridente, humilde e brincalhão no balneário, características que mantém. O pai acompanhava os jogos mas nunca o pressionou, teve sempre uma postura muito tranquila.”
Foi então que o avançado cresceu. “Começou a queixar-se de dores terríveis nos joelhos e até perdeu alguns jogos por causa disso”, diz à SÁBADO Adrian Berntsen, companheiro de equipa no Bryne desde os 7 anos. “Passou a comer muito. Chegava a devorar quase 1 kg de fajitas de frango ou três hambúrgueres numa tarde a ver futebol na televisão.” Aos 16 anos, tinha mais 10 kg, aproximando-se da robustez que apresenta hoje: 1,94 m e 88 kg.
Recusou ser suplente de Ronaldo
Erling estreou-se na equipa principal do Bryne FK aos 15 anos e na época seguinte foi para o Molde, o melhor clube norueguês, que o contratou por menos de 200 mil euros. A Juventus quis levá-lo para Turim. Mas tanto o atleta como o seu pai rejeitaram: Haaland não queria passar uma época como suplente de Ronaldo. Surpreendentemente, escolheram os austríacos do Red Bull Salzburgo.
O diretor desportivo, Christoph Freund, foi quem convenceu o norueguês a rumar à Áustria. “Na primeira metade da época só fez cinco jogos, teve tempo para se adaptar. Depois, explodiu e fez um registo de golos incrível”, diz à SÁBADO. “Na nossa filosofia, os jogadores têm a oportunidade de se desenvolverem e, nas circunstâncias certas, de se mudarem para um clube maior. Que ele ia chegar a esse patamar tão rapidamente era impossível de prever.”
Em Salzburgo, Haaland captou a atenção internacional ao marcar um hat-trick na sua estreia na Liga dos Campeões, contra o Genk. Levou a bola para casa. “Meto as
“CHEGUEI A JOGAR CONTRA ELE, MAS NA ALTURA ERA SÓ MAIS UM DOS MIÚDOS TALENTOSOS”, DIZ O PORTUGUÊS MARTINS SILVA
bolas na cama e durmo bem com elas. Olho para elas todos os dias. São as minhas namoradas”, disse Erling.
Haaland é altamente disciplinado. Segue uma dieta à base de peixe, similar à de CR7, e dorme religiosamente nove horas por dia. Às 22h, desliga o wi-fi do telefone para não ser importunado. Usa lentes especiais para jogar o videojogo FIFA, para não prejudicar a visão. Durante a pandemia, contratou um treinador de fitness via FaceTime, para complementar o treino físico. E faz meditação.
No mercado de inverno de 2019, Haaland voltou a fazer uma escolha improvável – com todos os “tubarões” da Europa atrás de si, optou pelo Borussia Dortmund, custando 20 milhões de euros. É provável que no final do próximo verão siga para Espanha ou para Inglaterra. Independentemente do seu destino, não se esperam grandes discursos. Erling Haaland é conhecido por levar os repórteres ao desespero com as suas respostas monossilábicas. É por isso que os adeptos do Borussia lhe chamam Exterminador Implacável – poucas palavras, muita ação. Freund acredita que ele usa esse estilo para brincar com os jornalistas. Berntsen tem outra opinião: “É cultural, porque aqui na nossa região as pessoas são de poucas palavras. Não gostamos de fala-barato. O que conta é o trabalho árduo.” W