SÁBADO

A fábula do homem sem poder

- Diretor Eduardo Dâmaso

Adecisão instrutóri­a do juiz Ivo Rosa sobre a Operação Marquês confirmou todos os problemas endémicos do regime político e da justiça. Mostrou as fragilidad­es da justiça mas, sobretudo, evidenciou um domínio doentio de interesses políticos inconfessá­veis sobre aquela e, em particular, sobre os mecanismos de combate à corrupção e ao crime económico em geral.

Em Portugal, vamos para 50 anos de democracia mas persistem intocáveis todos os estrangula­mentos criados pelo poder legislativ­o, controlado politicame­nte no parlamento por maiorias de conveniênc­ias regulares e geometrias de voto pouco variáveis, para evitar que a muito eficaz justiça no combate dos crimes de sangue – julgam-se em menos de um ano –, seja incapaz de punir políticos.

E que estrangula­mentos são esses? Todos os que Ivo Rosa aplicou na sexta-feira, barricado numa aura intocável de garantismo, de quem transporta a pureza originária de um processo penal colocado ao lado do indivíduo, mas construída apenas e só à custa da demarcação obsessiva, quase patológica, do Ministério Público e de alguns dos seus colegas, em particular de Carlos Alexandre.

Ora vejamos: Ivo Rosa recusou a prova indireta, como se esta fosse um exercício de pura arbitrarie­dade. Ivo Rosa recusou liminarmen­te depoimento­s que lhe cheiravam a colaboraçã­o premial, fazendo, aliás, insinuaçõe­s deselegant­es sobre a questão. Como foi o caso do depoimento de Hélder Bataglia e o de Pedro Ferreira Neto, que praticamen­te ignorou, um e outro essenciais para demonstrar o circuito dos 12 milhões de euros misteriosa­mente transferid­os por Ricardo Salgado para uma pessoa que não conhecia, Carlos Santos Silva, e através de contas de pessoas que nem sabiam o montante, o destino e a razão da operação, caso de Joaquim

Barroca. Ivo Rosa ignorou a reconstitu­ição dos fluxos do dinheiro em toda a extensão que lhe interessou. Onde não teve por onde fugir, valorizou o dinheiro saído da chamada conta BES para a esfera de Sócrates. A prova das entregas de “fotocópias”, “documentos”, “livros” ou “aquilo que eu gosto”, era fumegante, diretíssim­a. Impossível de ignorar.

Na parte que mais lhe interessav­a, por ausência de prova direta, a corrupção na OPA da PT ou em relação ao favorecime­nto do Grupo Lena, o dinheiro da chamada conta BES já não contou para nada. Conseguiu a alquimia de transforma­r Carlos Santos Silva em corruptor de Sócrates, mesmo quando a afirmação do domínio deste sobre aquele é absolutame­nte inequívoca nas escutas, quer sobre o envio do dinheiro ou a construção de esquemas sobre as obras e o falso contrato de arrendamen­to da casa de Paris. Quando a evidência de que Santos Silva era apenas e só um testa de ferro, um fiduciário, um empregado às ordens para todo o serviço e a qualquer hora, um capacho, como diz o povo, é totalmente ululante. Ivo Rosa agarrou-se, finalmente, a um salvífico acórdão do Tribunal Constituci­onal, que mata qualquer hipótese de combater a corrupção, determinan­do, na prática, que é possível considerar prescritos crimes que ainda nem chegaram ao conhecimen­to das autoridade­s. Um acórdão que transporta a velha fórmula do “problema jurídico”, instrument­o muito eficaz para gerar prescriçõe­s em massa, como se viu nos processos do Fundo Social Europeu e das faturas falsas, nos anos 90. Recorrente, de resto, nos crimes fiscais. Há sempre um “problema jurídico” oportuno para evitar que os processos cheguem a julgamento.

Ivo Rosa foi, afinal, o narrador que nos mostrou porque é que é praticamen­te impossível investigar em Portugal a grande corrupção, oriunda do coração dos poderes do Estado. Os problemas são os já enumerados mas também a perceção pública que se constrói sobre os arguidos e os próprios investigad­ores. Os primeiros têm os seus megafones mediáticos, que pululam pelas direções de jornais e televisões, colunas de opinião e tertúlias de debate, a ata

car a justiça por tudo e por nada. Começam com o segredo de justiça, passam aos prazos, fixam-se na presunção de inocência, acabam na prova direta e indireta, bem como na incompetên­cia do Ministério Público. São todos espetacula­res. Sabem como acabar com os megaproces­sos num ápice, como descobrir as provas diretíssim­as de um pacto de silêncio que se prova à velocidade de um fósforo. Os segundos, têm apenas a sua própria capacidade de trabalhar, de resistir à dificuldad­e deste tipo de investigaç­ões, de procurar explicaçõe­s para tanto dinheiro a bater à porta de offshores que podem colaborar ou não, de perícias que demoram uma eternidade e cuja execução não controlam, de aguentar em silêncio as críticas.

Os megafones mediáticos andam agora a proclamar a tese de que estamos perante um MP incompeten­te, como se fosse possível determinar uma incompetên­cia generaliza­da desta magistratu­ra, ou tão-só de um magistrado como Rosário Teixeira que é, apenas, um dos melhores da sua geração. E que, afinal, Ivo Rosa veio salvar o Ministério Público, conseguind­o aplicar o teorema de Al Capone, levando o homem sem poder, que é como descreve Sócrates na sua decisão, a julgamento por branqueame­nto de capitais e falsificaç­ão de documentos.

O mais relevante que Ivo Rosa fez foi aclarar que o ex-primeiro-ministro recebeu €1.727.398,56, oriundos da famosa conta BES, e que isso é por conta de um trato corruptivo. Ou seja, temos um ex-primeiro-ministro corrupto mas não pode ser julgado devido à prescrição do crime de corrupção. Esta parte, documentad­a amplamente, Ivo Rosa jamais poderia atirar para o lixo. Mesmo assim, deu um nó cego com a prescrição, elevando brutalment­e a possibilid­ade de o branqueame­nto e a falsificaç­ão de documento não se aguentarem num julgamento, por variadíssi­mas razões processuai­s.

Por fim, a construção de Ivo Rosa sobre a ausência de participaç­ão de Sócrates nos crimes mais graúdos e de regime, como a OPA da PT e o favorecime­nto do grupo Lena, conta-nos a fábula do homem sem poder. Afinal, ficámos a saber por Ivo Rosa que Sócrates não tinha poder absolutame­nte nenhum. Tinha a maioria absoluta mas era um mimo na delegação de competênci­as, na liberdade que entregava a cada ministro, na forma como não se metia nas decisões das empresas que, direta ou indiretame­nte, dependiam do Estado e do imperador sentado em São Bento. Ivo Rosa não só tem uma conceção angelical da corrupção como é portador de uma piedosa incapacida­de de perceber o tempo político e os seus animais.

Ao contrário do que pensa Ivo Rosa, uma maioria absoluta ou as convergênc­ias políticas certas no aparelho de Estado permitem determinar, até, uma origem legal à corrupção, com concursos e contratos que respeitam a lei e a imparciali­dade. Com peritos e decisores formalment­e certos perante a estrutura de competênci­as que decorre da lei e dos regulament­os. É já um clássico nas dificuldad­es de prova da corrupção. Depois é só apostar num juiz como Ivo Rosa, que adora reescrever a história e distribuir adjetivos para exprimir o desprezo que nutre pelos seus adversário­s. Que não se desvia um milímetro dessa verdade formal. Que prefere ver autenticid­ade e não interesses muito próprios em personagen­s como Mário Lino ou Paulo Campos. Que destrói os narradores de outras versões, como Bataglia.

Construir uma verdade formal eivada de perceções legalistas é a melhor maneira de obter a chancela jurídica de tribunais como o de Ivo Rosa, contra quem tem obrigação de investigar e, por essa via, lutar contra a corrupção. Neste caso, isso aconteceu contra os procurador­es e inspetores que investigar­am o caso mas também contra muitos juízes de tribunais superiores.

O processo Marquês passou a ser um indestrutí­vel caso de estudo a esse nível. Como é que um processo analisado e decidido favoravelm­ente por mais de 100 juízes dos tribunais da Relação, Supremo e Constituci­onal, em questões processuai­s e substantiv­as, estoira nas mãos de um juiz de instrução!? Um juiz que fez a apreciação dos indícios e da alegada falta deles, que construiu a sua versão dos factos no quadro de um verdadeiro julgamento, transforma­ndo-se no julgador solitário do processo, portanto, em tribunal insuportav­elmente singular, coisa típica das bagatelas penais ou de… ditaduras. W

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