A fábula do homem sem poder
Adecisão instrutória do juiz Ivo Rosa sobre a Operação Marquês confirmou todos os problemas endémicos do regime político e da justiça. Mostrou as fragilidades da justiça mas, sobretudo, evidenciou um domínio doentio de interesses políticos inconfessáveis sobre aquela e, em particular, sobre os mecanismos de combate à corrupção e ao crime económico em geral.
Em Portugal, vamos para 50 anos de democracia mas persistem intocáveis todos os estrangulamentos criados pelo poder legislativo, controlado politicamente no parlamento por maiorias de conveniências regulares e geometrias de voto pouco variáveis, para evitar que a muito eficaz justiça no combate dos crimes de sangue – julgam-se em menos de um ano –, seja incapaz de punir políticos.
E que estrangulamentos são esses? Todos os que Ivo Rosa aplicou na sexta-feira, barricado numa aura intocável de garantismo, de quem transporta a pureza originária de um processo penal colocado ao lado do indivíduo, mas construída apenas e só à custa da demarcação obsessiva, quase patológica, do Ministério Público e de alguns dos seus colegas, em particular de Carlos Alexandre.
Ora vejamos: Ivo Rosa recusou a prova indireta, como se esta fosse um exercício de pura arbitrariedade. Ivo Rosa recusou liminarmente depoimentos que lhe cheiravam a colaboração premial, fazendo, aliás, insinuações deselegantes sobre a questão. Como foi o caso do depoimento de Hélder Bataglia e o de Pedro Ferreira Neto, que praticamente ignorou, um e outro essenciais para demonstrar o circuito dos 12 milhões de euros misteriosamente transferidos por Ricardo Salgado para uma pessoa que não conhecia, Carlos Santos Silva, e através de contas de pessoas que nem sabiam o montante, o destino e a razão da operação, caso de Joaquim
Barroca. Ivo Rosa ignorou a reconstituição dos fluxos do dinheiro em toda a extensão que lhe interessou. Onde não teve por onde fugir, valorizou o dinheiro saído da chamada conta BES para a esfera de Sócrates. A prova das entregas de “fotocópias”, “documentos”, “livros” ou “aquilo que eu gosto”, era fumegante, diretíssima. Impossível de ignorar.
Na parte que mais lhe interessava, por ausência de prova direta, a corrupção na OPA da PT ou em relação ao favorecimento do Grupo Lena, o dinheiro da chamada conta BES já não contou para nada. Conseguiu a alquimia de transformar Carlos Santos Silva em corruptor de Sócrates, mesmo quando a afirmação do domínio deste sobre aquele é absolutamente inequívoca nas escutas, quer sobre o envio do dinheiro ou a construção de esquemas sobre as obras e o falso contrato de arrendamento da casa de Paris. Quando a evidência de que Santos Silva era apenas e só um testa de ferro, um fiduciário, um empregado às ordens para todo o serviço e a qualquer hora, um capacho, como diz o povo, é totalmente ululante. Ivo Rosa agarrou-se, finalmente, a um salvífico acórdão do Tribunal Constitucional, que mata qualquer hipótese de combater a corrupção, determinando, na prática, que é possível considerar prescritos crimes que ainda nem chegaram ao conhecimento das autoridades. Um acórdão que transporta a velha fórmula do “problema jurídico”, instrumento muito eficaz para gerar prescrições em massa, como se viu nos processos do Fundo Social Europeu e das faturas falsas, nos anos 90. Recorrente, de resto, nos crimes fiscais. Há sempre um “problema jurídico” oportuno para evitar que os processos cheguem a julgamento.
Ivo Rosa foi, afinal, o narrador que nos mostrou porque é que é praticamente impossível investigar em Portugal a grande corrupção, oriunda do coração dos poderes do Estado. Os problemas são os já enumerados mas também a perceção pública que se constrói sobre os arguidos e os próprios investigadores. Os primeiros têm os seus megafones mediáticos, que pululam pelas direções de jornais e televisões, colunas de opinião e tertúlias de debate, a ata
car a justiça por tudo e por nada. Começam com o segredo de justiça, passam aos prazos, fixam-se na presunção de inocência, acabam na prova direta e indireta, bem como na incompetência do Ministério Público. São todos espetaculares. Sabem como acabar com os megaprocessos num ápice, como descobrir as provas diretíssimas de um pacto de silêncio que se prova à velocidade de um fósforo. Os segundos, têm apenas a sua própria capacidade de trabalhar, de resistir à dificuldade deste tipo de investigações, de procurar explicações para tanto dinheiro a bater à porta de offshores que podem colaborar ou não, de perícias que demoram uma eternidade e cuja execução não controlam, de aguentar em silêncio as críticas.
Os megafones mediáticos andam agora a proclamar a tese de que estamos perante um MP incompetente, como se fosse possível determinar uma incompetência generalizada desta magistratura, ou tão-só de um magistrado como Rosário Teixeira que é, apenas, um dos melhores da sua geração. E que, afinal, Ivo Rosa veio salvar o Ministério Público, conseguindo aplicar o teorema de Al Capone, levando o homem sem poder, que é como descreve Sócrates na sua decisão, a julgamento por branqueamento de capitais e falsificação de documentos.
O mais relevante que Ivo Rosa fez foi aclarar que o ex-primeiro-ministro recebeu €1.727.398,56, oriundos da famosa conta BES, e que isso é por conta de um trato corruptivo. Ou seja, temos um ex-primeiro-ministro corrupto mas não pode ser julgado devido à prescrição do crime de corrupção. Esta parte, documentada amplamente, Ivo Rosa jamais poderia atirar para o lixo. Mesmo assim, deu um nó cego com a prescrição, elevando brutalmente a possibilidade de o branqueamento e a falsificação de documento não se aguentarem num julgamento, por variadíssimas razões processuais.
Por fim, a construção de Ivo Rosa sobre a ausência de participação de Sócrates nos crimes mais graúdos e de regime, como a OPA da PT e o favorecimento do grupo Lena, conta-nos a fábula do homem sem poder. Afinal, ficámos a saber por Ivo Rosa que Sócrates não tinha poder absolutamente nenhum. Tinha a maioria absoluta mas era um mimo na delegação de competências, na liberdade que entregava a cada ministro, na forma como não se metia nas decisões das empresas que, direta ou indiretamente, dependiam do Estado e do imperador sentado em São Bento. Ivo Rosa não só tem uma conceção angelical da corrupção como é portador de uma piedosa incapacidade de perceber o tempo político e os seus animais.
Ao contrário do que pensa Ivo Rosa, uma maioria absoluta ou as convergências políticas certas no aparelho de Estado permitem determinar, até, uma origem legal à corrupção, com concursos e contratos que respeitam a lei e a imparcialidade. Com peritos e decisores formalmente certos perante a estrutura de competências que decorre da lei e dos regulamentos. É já um clássico nas dificuldades de prova da corrupção. Depois é só apostar num juiz como Ivo Rosa, que adora reescrever a história e distribuir adjetivos para exprimir o desprezo que nutre pelos seus adversários. Que não se desvia um milímetro dessa verdade formal. Que prefere ver autenticidade e não interesses muito próprios em personagens como Mário Lino ou Paulo Campos. Que destrói os narradores de outras versões, como Bataglia.
Construir uma verdade formal eivada de perceções legalistas é a melhor maneira de obter a chancela jurídica de tribunais como o de Ivo Rosa, contra quem tem obrigação de investigar e, por essa via, lutar contra a corrupção. Neste caso, isso aconteceu contra os procuradores e inspetores que investigaram o caso mas também contra muitos juízes de tribunais superiores.
O processo Marquês passou a ser um indestrutível caso de estudo a esse nível. Como é que um processo analisado e decidido favoravelmente por mais de 100 juízes dos tribunais da Relação, Supremo e Constitucional, em questões processuais e substantivas, estoira nas mãos de um juiz de instrução!? Um juiz que fez a apreciação dos indícios e da alegada falta deles, que construiu a sua versão dos factos no quadro de um verdadeiro julgamento, transformando-se no julgador solitário do processo, portanto, em tribunal insuportavelmente singular, coisa típica das bagatelas penais ou de… ditaduras. W