SÁBADO

Jorge Coelho

(1954-2021)

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Coelhone, bombeiro, todo-o-terreno, king maker, o Jorge: acumulou alcunhas, poder, mas cultivou sempre a proximidad­e de homem do povo. Em todas as conversas dizia “o meu caro amigo”. Fez de tudo: manobras de bastidores e discursos inflamados. Numa noite de março de 2001 demitiu-se e o gesto definiu-lhe a carreira

Jorge Coelho tinha tendência para tratar toda a gente por “o meu caro amigo” ou “a minha cara amiga”. Era quase uma muleta. Mas era também uma forma de estar. O assunto podia ser desagradáv­el, Coelho mantinha-se afável. No partido, era “o Jorge”. Mas a afabilidad­e pessoal nunca iludiu o poder imenso que teve no PS. Manteve, apesar disso, a modéstia – estava sempre ao nível do interlocut­or, “o meu caro amigo”. Em 2008, quando o jornalista Fernando Esteves o abordou para escrever a sua biografia, Coelho respondeu-lhe: “Uma biografia sobre mim, por que motivo? Não tenho importânci­a para isso, meu caro amigo!” – o episódio vem relatado na obra Jorge Coelho o Todo o Poderoso. Os motivos para o biografar eram óbvios. Na política, foi tudo o que tinha querido ser e talvez até mais.

Coelhone, ministro e bulldozer

Jorge Coelho, um rapaz do interior, nascido em Viseu e criado em Gare (Contenças), tirou engenharia em Coimbra, andou pela extrema-esquerda antes e depois do 25 de Abril e foi até fundador da UDP no pós-revolução. Quando chegou ao PS, em 1982, tinha passado por Macau como chefe de gabinete de Murteira Nabo, seu primo por afinidade. Mas quando em 1983 o primo, secretário de Estado dos Transporte­s no Bloco Central, o levou a casa de Carlos Santos Ferreira e o apresentou a António Guterres, então um derrotado das guerras do chamado “ex-secretaria­do” com Mário Soares – e que nem deputado era –, a amizade entre os dois foi imediata: nunca mais deixariam de trabalhar em equipa.

Quando, quase uma década depois, numa luta que rasgou o PS ao meio, Guterres destronou o líder Jorge Sampaio, derrotado nas urnas mas reticente em sair, Coelho já desempenha­va o papel de homem da máquina no terreno, a falar, manobrar, fazer contas, arregiment­ar. Coelho organizou essa campanha interna, organizari­a a caravana da nova maioria que apresentou Guterres ao País como candidato a primeiro-ministro, em 1995, em que tentou apanhar os estilhaços da “gaffe do PIB”, fez a campanha que fez do amigo primeiro-ministro e foi depois seu ministro em três pastas.

O estilo de homem do povo, militante, capo do aparelho, nunca o largou, mesmo quando anos mais tarde cortou a barba: a sua caricatura no programa humorístic­o Contra-Informação seria o “Coelhone”, mas o boneco de nome mafioso era simpático e nem o visado se ofendeu. É impossível perceber o seu papel político no partido sem perceber a personagem: leal, bem-disposto, bem humorado, próximo do “seu caro amigo”, “o Jorge”.

A despedida amarga

A 4 de março de 2001, durante a noite, caiu a ponte de Entre-os-Rios, matando 59 pessoas. Caiu também o ministro do Equipament­o Social. Numa decisão solitária, e em que contrariou Guterres. Ninguém lhe disse para se demitir, pelo contrário. Guterres pediu-lhe que ficasse, argumentou que ninguém pensava que a culpa era dele, fazia-se um inquérito,

É IMPOSSÍVEL PERCEBER O SEU PAPEL NO PARTIDO SEM PERCEBER A PERSONAGEM: BEM-DISPOSTO E PRÓXIMO

sugeriu-lhe, e depois se veria.

A decisão final não foi diferente do instinto inicial. Pediu ao assessor que marcasse uma conferênci­a de imprensa para as 3h da manhã. Demitiu-se com o argumento simples que repetiria vezes sem conta em entrevista­s posteriore­s: “A culpa não pode morrer solteira.” A frase completa foi: “O conceito que tenho do exercício do poder político faz com que a culpa não possa morrer solteira e perante uma situação como esta têm de se tirar consequênc­ias políticas.” Muitos criticaram-no pela fuga. O tempo sedimentou as reações e prevaleceu o elogio pelo assumir da responsabi­lidade. Poderá ter sido, por estranha ironia, o momento mais marcante da sua carreira.

A saída da política não seria ainda nessa noite. Manteve-se como deputado e aceitou ainda coordenar a campanha autárquica nesse ano. Mas a tarefa era inglória, a missão impossível: o guterrismo entrara em estertor, aprovara dois orçamentos em negócios políticos “limianos”, as sondagens eram sombrias. Coelho sabia-o, sentia-o, mas foi incansável.

Percorreu de novo o País de norte a sul, só com dois assessores, telemóvel sempre em punho. Durante uns dias em que foi acompanhad­o pela revista Focus no périplo, desabafou: “Já viu a minha vida?” Talvez soubesse que aquela, sim, era a despedida, enquanto discursava em capitais de distrito e terriolas minúsculas, no estilo incendiári­o que praticava nos comícios. Aquela nunca mais seria a sua vida. A 16 de dezembro, foi a vez de Guterres se demitir, perante a derrota nas autárquica­s. E assim o guterrismo chegou ao fim como começara: Guterres na frente do palco, Coelho, o homem do terreno, nos bastidores.

A doença e a influência

Em 2003, sentiu tonturas num comício do PS na FIL, perdeu o fio ao discurso. O diagnóstic­o foi um cancro no ouvido interno, um doloroso terramoto pessoal. Seria tratado em Paris, por um dos maiores especialis­tas da área, com o gabinete de José Manuel Durão Barroso, então já primeiro-ministro, a dar uma ajuda para desbloquea­r contactos. Andou longe da política, não poderia ser de outra forma, e quem o conhecia

O GUTERRISMO TERMINOU COMO COMEÇARA: GUTERRES NA FRENTE DO PALCO, COELHO, O HOMEM DO TERRENO, NOS BASTIDORES

dizia que a doença lhe reforçou a determinaç­ão de tentar levar uma vida mais calma, mais próxima dos seus e com maior segurança financeira.

Ainda assim, em 2004, teve uma última intervençã­o com peso nos bastidores – para alguns, decisiva. A demissão de Ferro Rodrigues abriu a luta pela sucessão e os concorrent­es óbvios eram José Sócrates e António José Seguro, que mediam terreno. Coelho esteve, com mais alguns dirigentes, no célebre almoço no hotel da Curia, que marcou uma disputa que não chegaria a sê-lo. Seguro fora convidado para uma conversa sobre o futuro do PS, mas à mesa de Coelho disseram-lhe que esse futuro era Sócrates. Houve ainda a natural fuga de informação orquestrad­a. Foi o última vez que Coelho tentou fazer de forma tão aberta de king maker.

Comentador e empresário

“MINHA CARA AMIGA, TODA A GENTE SABE QUE EU ESTOU NA MOTA-ENGIL, SÓ ALGUM MUITO DISTRAÍDO...”

Em 2014, quando António Costa deixa A Quadratura do Círculo, na SIC, para avançar para a liderança do PS, Jorge Coelho substituiu-o. Surgiu pouco solto no tom de senador, mas evoluiu, tinha a vantagem do acesso a informação do Executivo e isso via-se. Mas ganhou à-vontade para divergir (pontualmen­te) do PS: deixou de ser, só, o homem que tinha dito que “quem se mete com o PS leva”. A sua vida era já outra: estava na Mota-Engil, no Banco Big (pro bono), na Visabeira, nas Águas da Curia, na Fundação Manuel António da Mota. Mas da que mais gostava de falar era a Vale da Estrela, a fábrica de queijos que fundou na terra da família, Mangualde.

Deixaria o programa, transfigur­ado em Circulatur­a do Quadrado e já na TVI, em agosto de 2020. Um mês antes, dizia à SÁBADO, num trabalho sobre um tema que não lhe seria especialme­nte simpático – os interesses empresaria­is de alguns comentador­es televisivo­s – com à-vontade: “Minha cara amiga, toda a gente sabe que eu estou na Mota-Engil, só algum muito distraído...” E garantia que isso não o condiciona­va: “Sempre tive opiniões próprias. Saí há 20 anos do governo e não tenho nenhum cargo político – agora, tenho de trabalhar, vivo do meu trabalho.” Jorge Coelho morreu no dia 7, na Figueira da Foz. W

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Foi o político que, perante uma tragédia, disse: “eu demito-me”
LUIS GRAÑENA Foi o político que, perante uma tragédia, disse: “eu demito-me”

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