SÁBADO

Frances McDormand

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Cynthia Ann Smith é uma atriz única na sua geração, e Nomadland , filme que promete ser a grande sensação da próxima cerimónia de entrega de Óscares, marcada para 25 de abril, é nova prova da sua singularid­ade. Mas quem é esta atriz? O crítico de cinema da SÁBADO, Pedro Marta Santos, traça-lhe o perfil

CYNTHIA é o nome verdadeiro de Frances Louise McDormand, adotada ao ano e meio por um reverendo canadiano dos Discípulos de Cristo, Vernon McDormand. Frances desconfia que a sua mãe biológica seria uma das fiéis da igreja do pai adotivo em Gibson City, no Illinois, uma daquelas miúdas grávidas demasiado cedo e felizes demasiado tarde, anónima white trash das vilas minúsculas na grande América.

A própria Frances considera-se “lixo branco”, e isso nota-se no orgulho férreo, na vontade de escapar do banal, no corrosivo sentido de humor, no desprezo pelo establishm­ent. Frances McDormand é o produto genuíno: ela está mesmo a marimbar-se. E essa é a sua maior força.

Com um bacharelat­o em Teatro e um mestrado em Belas-Artes por Yale (sempre foi esperta como um alho), começou a ser notada em 1988 graças a Mississipi em Chamas, de Alan Parker, como o epítome do white trash – só poderia ser – uma Mrs. Pell de desejo escondido nas panelas da cozinha, casada com um soldado raso do Ku Klux Klan nesse Sul abrasivo pelas cruzes a arder, enquanto rouba cenas a Gene Hackman como uma criança numa confeitari­a.

Willem Dafoe também lá andava, estupefact­o com o ódio racial mas sem surpresas pelo fogo dramático de Frances, sua parceira de teatro experiment­al no Wooster Group. Quatro anos antes, McDormand casara com um diretor promissor e inseparáve­l do irmão – era Sangue por Sangue, a estreia indy de Joel (o esposo) e Ethan (o cúmplice), homenagem noturna, viscosa, sacramenta­l ao film noir

(a femme fatale era ela).

A explosão deu-se em 1996, já perto dos 40 anos, como a chefe de polícia Marge Gunderson, magnificam­ente grávida, igual a muitas outras mulheres de terras dispersas pelo Midwest, mas cáustica como soda derramada na cabeça de um homicida.

Era uma mancha de humor negro na neve da paisagem, Los Angeles beijou-a, os Óscares benzeram-na e ela respondeu: “O facto de dormir com o realizador é capaz de ter tido alguma coisa a ver com isto.”

Com um bacharelat­o em Teatro e um mestrado em Belas-Artes por Yale, começou a ser notada em 1988 graças a Mississipi em Chamas

Frances despreza o estrelato – “sou uma atriz de composição; vou trabalhar, não tenho tempo para ser vedeta” – e abomina a bolha irreal de Hollywood

Frances despreza o estrelato – “sou uma atriz de composição; vou trabalhar, não tenho tempo para ser vedeta” –, abomina a bolha irreal de Hollywood, e essa autenticid­ade nota-se, um estilo blue collar, de flor levemente venenosa à beira do pântano. Além do génio – e há génio na senhora McDormand –, ressalta a empatia de ser uma de nós.

Ainda assim, pressente-se nela uma loucura, à mistura com uma obstinação que roça a teimosia: não são assim Marge, a Ingrid Jessner de Agenda Secreta (1990, de Ken Loach), a patética Elaine de

Quase Famosos (2000, Cameron Crowe), a Olive Kitteridge da série de Lisa Cholodenko para a HBO em 2014 (está na plataforma, é o seu melhor papel e devia ser mostrado a todos os alunos do Conservató­rio), a Mildred de Três Cartazes à Beira da Estrada (2017, Martin McDonagh), disposta a pôr a alma no prego para encontrar o assassino da filha, o seu segundo Óscar de Melhor Atriz após Fargo? Sendo pouco dada a prémios e cerimónias, Frances Louise McDormand poderá tornar-se a segunda atriz na história do cinema – a primeira é Katherine Hepburn, com quatro estatuetas – a arrebatar três

Óscares de melhor intérprete feminina. Nem Meryl Streep lá chegou (um dos três troféus de Meryl é como melhor secundária, por Kramer Contra Kramer em 1979), mas quando se olha com olhos de ver para Nomadland, o grande favorito de 2021, tudo isso se torna irrelevant­e.

As rugas de Frances estão todas em Fern, como paragens dolorosas num mapa de túneis e desfiladei­ros, nessa órfã (outra vez) da crise de 2008, sem trabalho, sem marido (morreu cedo, era colega dela numa fábrica de contraplac­ados em nenhures), sem casa, numa carrinha ao centro dos nómadas do subprime, conduzindo memórias para se distrair da sobrevivên­cia.

Sentimos-lhe o isolamento voluntário, a luz interior no meio do deserto e quase no fim, quando interrompe o passo na Califórnia, a água do mar está gelada. Chove a potes: não podíamos estar mais longe de Hollywood. Como ela gosta. W

Quando se olha com olhos de ver para Nomadland,o grande favorito de 2021, as rugas de Frances são como paragens dolorosas num mapa de túneis

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