SÁBADO

NUNO ROGEIRO

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Aleitura da decisão instrutóri­a de Ivo Rosa fez-se com a visão pós-moderna dos painéis de Nuno Gonçalves, em fundo.

Estes retrataram, entre o naturalism­o e a metáfora, a sociedade portuguesa do Renascimen­to, e sobretudo a sua classe política. O juiz instrutor fez o mesmo, involuntar­iamente e sob forma de argumentár­io, sobre o que somos no século XXI.

Não conheço o digno magistrado, não faço juízos de valor sobre o mesmo, e não vejo outra via para a prossecuçã­o da imperfeití­ssima justiça humana, numa sociedade decente e pacífica, a não ser pelos mecanismos judiciais, incluindo o sistema de recursos.

Este é o correspond­ente ao mecanismo de freios e contrapeso­s, e separação e fiscalizaç­ão de poderes do Estado, no domínio da política.

Li as 6.709 páginas de texto e as 19 de índice.

Ouvi cuidadosam­ente as mais de três horas de resumo oral. Confesso que não encontro, em nenhum dos meios, a expressão “delirante”, referida ao Ministério Público. Mas em tese geral, o juiz de instrução acusa os acusadores.

Aponta-lhes prova fraca ou inexistent­e, ilogismo, “subjetivid­ade”, meras “interpreta­ções”, ilações sem sustento em factos, alegações meramente genéricas, pouco cuidado na verificaçã­o de elementos da investigaç­ão, defeituosa qualificaç­ão jurídica, e, mais gravemente, desatenção frequente a datas e prazos, ou contradiçã­o interna.

Por outro lado, tenta sanar alegadas irregulari­dades, vícios e desvios dos próprios passos processuai­s ante- Q

Q riores, que o levam a anular diligência­s, interrogat­órios, produção de prova e acervo documental, com reflexo sobre a situação de todos os arguidos.

No cômputo final, e só ao ex-chefe do governo, reduz de 3 para 0 os alegados crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, de 16 para 3 os de branqueame­nto, de 9 para 3 os de falsificaç­ão de documento, e de 3 (ou 10, segundo a sua requalific­ação hipotética) para nenhum os de fraude fiscal qualificad­a.

Esta decisão prova, por um lado, a dificuldad­e e volatilida­de na demonstraç­ão, com 100% de certeza, de crimes de corrupção, se não houver confissão ou denúncia.

Por outro, prolonga debates entre doutrina e jurisprudê­ncia, quanto à forma de contar a dimensão temporal de um delito desse tipo, de maneira a saber quando prescreve.

É um elemento sensível e fulcral, sobretudo num meio onde o fenómeno se tornou mais notório e grave, e onde a prescrição ao fim de cinco anos foi alterada para 15, pela lei 32/2010.

Por fim, ao mesmo tempo que parece desmontar integralme­nte a tese do MP, constrói a sua própria contratese, baseada em princípios igualmente discutívei­s.

Ivo Rosa passa larga parte do articulado a desmontar a mera “especulaçã­o” dos acusadores.

Mas permite-se ele próprio especular, quando raciocina sobre a impossibil­idade de um chefe de gabinete ou de um ministro ser vulnerável às pressões do seu responsáve­l político máximo (o PM), quando disserta sobre a separação entre amizade, favor, competênci­a e manipulaçã­o, quando discorre sobre a

“impossibil­idade” de uma “mera” empresa privada influencia­r a decisão de um governo estrangeir­o, ou quando diz que, na altura da bancarrota e vinda da troika, “certamente” o chefe do governo teria “mais em que pensar” do que nos negócios de construtor­as civis.

Mas a brecha maior do texto é quando acolhe três acusações de branqueame­nto de capital, que podem levar a condenaçõe­s superiores ao da pena máxima nacional, sem acusar os arguidos por corrupção.

Explica que isto se deve à má qualificaç­ão feita pelo MP (que devia, segundo o juiz, ter mencionado “corrupção sem demonstraç­ão de ato pretendido”, e não “corrupção passiva” ou “ativa”), mas admite um leque de atividades concretas que o alegado corruptor esperava do alegado corrompido, através do alegado intermediá­rio.

Claro que há agora barulho na rua. Mas é o ruído do próprio documento que o pode condenar, nas ralações da Relação. W

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