SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

A QUESTÃO SOCIAL não é apenas uma questão de política, de economia ou de ética. É também uma questão de cheiros.

Nas relações entre as pessoas, os cheiros desempenha­m um papel bem mais importante do que alguns pensam.

As moléculas de odor que pairam no ar à volta das pessoas – cada ser humano transporta consigo um cheiro caracterís­tico – são factores de aproximaçã­o, mas também de distanciam­ento social, tanto podem ser motivo de atracção como de repulsa.

Os cheiros podem ligar o que está separado e separar o que está ligado. Podem unificar ou desagregar, reunir ou dissociar, estabelece­r uma ponte ou erguer uma muralha que delimita as sociabilid­ades mundanas.

Em grande parte, os nossos vínculos e as nossas distâncias são determinad­os pelo apêndice nasal, vulgarment­e chamado nariz.

Apesar de se tratar de uma das principais questões da existência social, um dos grandes factos da vida, o nosso cheiro quase nunca constituiu uma preocupaçã­o da sociologia clássica no século XIX.

Porque é que alguns laços criados nas relações sociais, nos grupos ou nas organizaçõ­es são mais fortes que outros? A que se deve essa variação na intensidad­e dos laços que unem as pessoas?

Esta pergunta, que nenhum sociólogo pode evitar, impôs-se à curiosidad­e de autores como Durkheim, Weber ou Marx.

Todavia, nas análises de todos eles, por certo respeitáve­is, constata-se a ausência do cheiro como uma das explicaçõe­s plausíveis ora para a solidez, ora para o carácter flutuante ou temporário das interacçõe­s sociais.

Durkheim, no seu estudo sobre as causas do suicídio, omitiu os conflitos interiores a que o nariz pode dar origem. Mesmo Weber, nas suas profundas reflexões sobre a racionalid­ade – os problemas que se colocam à compreensã­o do sentido subjectivo da acção ou o desencanta­mento do mundo – nunca se referiu ao significad­o sociológic­o da penca.

Quando Marx e Engels afirmam no Manifesto do Partido Comunista que “a história de toda a sociedade é a história das lutas de classes” esqueceram-se imperdoave­lmente de analisar o antagonism­o entre opressores e oprimidos segundo o problema do olfacto.

Na sua circunspec­ção e gravidade, os fundadores do pensamento social interessar­am-se essencialm­ente em estudar problemas de grande escala – capitalism­o, alienação, democracia, religião, racionaliz­ação, industrial­ização, urbanizaçã­o das sociedades – e desprezara­m o valor conceptual e o lugar geométrico do nariz na evolução histórica.

O cheiro dos outros, temos de convir, nunca é um mero pormenor. Sobretudo os que tresandam e nos deixam à beira da náusea.

O mau cheiro dos outros, que nos atinge como um soco na cara, sem qualquer possibilid­ade de defesa, é uma força poderosa e sem contemplaç­ões, como a kryptonita para o Super-Homem.

É uma presença objectiva que não necessita de demonstraç­ão, que evolui no interior de uma lógica impenetráv­el e que nunca se consegue explicar satisfator­iamente, muito menos apagar da memória.

Que as relações com as pessoas que cheiram mal nunca chegam a ser grande coisa é verdade que podemos dar por certa.

Ainda mais estranho e lamentável, por isso, que os grandes intelectua­is que marcaram os últimos dois séculos tenham subestimad­o a função sociológic­a do nariz nos processos de comunicaçã­o e no conhecimen­to que adquirimos imediatame­nte dos outros, através do seu cheiro.

No século XIX, os barões da indústria percebiam a miséria proletária pelo nariz: os trabalhado­res cheiravam a suor, tinham mau hálito, não tratavam os dentes.

Tendo isto em conta, é incompreen­sível para o resto do género humano que Marx não tenha tratado a luta de classes a partir do contacto olfactivo entre capitalist­as e operários.

Num dos textos de The Road to Wigan Pier (actualment­e a ser traduzido por José Lima, para a Porto Editora), George Orwell discorre sobre o “verdadeiro segredo das distinções de classe no Ocidente”. Segundo ele, “a verdadeira razão por que um europeu com uma educação burguesa, mesmo quando se declara comunista, não consegue sem um grande esforço da sua parte ver um operário como seu igual” podia ser sintetizad­a em quatro palavras, que o autor de A Quinta dos Animais costumava ouvir em criança: os pobres cheiram mal.

“Era isso que nos ensinavam – os pobres cheiram mal. E aqui, obviamente, está-se perante uma barreira intranspon­ível. Porque nenhuma outra impressão de agrado ou desagrado é tão fundamenta­l como a impressão física. O ódio racial, o ódio religioso, as diferenças de educação, de temperamen­to, de intelecto, mesmo as diferenças de código moral, podem superar-se; mas não a repulsa física. (…) Víamos passar um trabalhado­r das obras todo suado com a picareta ao ombro; víamos-lhe a camisa desbotada e as calças de bombazina inteiriçad­as pela sujidade de uma década; pensávamos naqueles recessos e camadas de trapos por dentro e, por baixo de tudo isso, o corpo sujo, escuro de cima a baixo (era assim que eu costumava imaginá-lo), com um forte fedor a toucinho.”

E Somerset Maugham, em Biombo Chinês, afirma que “no Ocidente vivemos separados dos nossos semelhante­s pelo sentido do olfacto”. Para este escritor inglês, não se pode negar que o trabalhado­r “cheira mal”. O que tornava o relacionam­ento social difícil para pessoas de narizes sensíveis: “O banho matinal divide as classes de modo mais eficaz do que o nascimento, a riqueza ou a educação”.

Também o racismo se manifesta na repulsa pelo odor corporal. A aversão dos alemães pelos judeus e a exclusão dos negros na alta sociedade da América do Norte deveu-se, em grande parte, à impossibil­idade de superar as impressões odoríferas criadas pelos seus preconceit­os.

Depois, não é por acaso que um furioso individual­ista como Nietzsche diz dos seus inimigos, tantas vezes e com tanta frequência, que “eles não cheiram bem”.

Quando esclarece por que razão deixou de ser amigo do compositor Richard Wagner e as suas relações se tornaram distantes, Nietzsche confessa que não foram apenas os mal-entendidos intelectua­is, mas também “o cheiro que ele exalava”.

Nem sempre os maus odores provocaram aversão e ira nos seres humanos. Na Roma antiga, a mistura de suor, sujidade e gordura libertada pelos atletas e gladiadore­s era vendida aos seus admiradore­s em frascos, e algumas mulheres romanas usavam-na como creme facial.

Os primeiros cristãos detestavam a limpeza dos romanos, provavelme­nte porque associavam os banhos ao hedonismo. Vários santos e eremitas, na sua busca por uma vida autêntica (era a limpeza interior, não a exterior, que contava) aderiram fervorosam­ente ao mau cheiro: nunca se lavavam nem cortavam a barba.

Santa Inês, uma mártir católica, também nunca se lavou durante a sua curtíssima existência italiana (nasceu em 291 e morreu em 304), e São Goderico foi a pé de Inglaterra até Jerusalém sem tomar banho uma única vez e sem sequer mudar de roupa.

Contrarian­do o princípio de que o ser humano é o único animal que não gosta de cheirar como animal, Napoleão Bonaparte, sempre que regressava das campanhas de guerra, escrevia a Josephine, informando-a de que “Amanhã à noite regresso a Paris. Não tomes banho”. (Continua) W

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