SÁBADO

JOÃO PEREIRA COUTINHO

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

NUNCA SE VIU na história da democracia portuguesa um ex-primeiro-ministro pronunciad­o por branqueame­nto de capitais e falsificaç­ão de documentos. E nunca se viu um juiz que, apesar de uma brandura imensa, lá reconheceu que o dito ex-governante “mercadejou” o seu cargo por 1,7 milhões de euros, embora esse negócio tenha prescrito.

No mundo real, o que se passou na sexta-feira seria um velório para Sócrates. Mas, como acontece nos velórios, o momento foi encarado pelo próprio como uma oportunida­de para contar anedotas directamen­te do caixão. Uma delas, espalhada na Folha de S. Paulo e no Público, é a de que a direita urdiu uma cabala para o afastar da Presidênci­a da República.

Faz inteiro sentido: depois de falir o País em 2011 e de reconhecer o seu singular modo de vida com o dinheiro do “amigo”, os portuguese­s estariam dispostos a levá-lo em ombros para Belém, a título de agradecime­nto pelos serviços prestados.

Aliás, essa homenagem não se esgota em 2016; em 2026, quando Marcelo se despedir do povo, não é de excluir que a pátria corrija a injustiça, devolvendo a Sócrates o que era seu por direito.

Nos últimos anos, a propósito de Donald Trump ou Jair Bolsonaro, o mundo debateu furiosamen­te as fake news e o conceito bizantino de “pós-verdade”: segundo a opinião douta, os populistas mais furibundos corrompiam as democracia­s ao produzirem “factos alternativ­os” que, no limite, criavam uma outra realidade.

Admito que sim. Mas também admito que Trump ou Bolsonaro são amadores quando comparados com a imaginação romanesca do nosso José. Anda este homem a perseguir moinhos de vento quando o seu futuro está claramente na ficção. Assim ele encontre quem a escreva.

APRENDE-SE MUITO

com decisões instrutóri­as. Eu, por exemplo, desconheci­a que era possível sonegar dinheiro ao Fisco desde que o mesmo fosse ilegal. Se me tivessem dito, não andaria a incriminar-me todos os anos com o suor do meu trabalho.

Mas revelador foi saber que o prazo de prescrição do crime de corrupção, segundo acórdão do Tribunal Constituci­onal de 2019, começa a contar quando há uma promessa de dinheiro – e não com a entrega do dito.

Já podiam ter avisado: estamos em 2021 e o meu email é público. Façam lá as vossas promessas e voltamos a ver-nos daqui a uns anos, para eu levantar a mala.

O mesmo vale para um empresário ou banqueiro com interesses obscuros: é começar desde já a semear promessas entre as “jotas” partidária­s. A colheita fica para depois.

URSULA VON DER LEYEN

foi a Istambul e, na hora da fotografia, foi enxotada para o sofá. As cadeiras eram só para homens – o sultão local e um rapaz chamado Michel, que desconheço. É o sofagate, disseram os atentos, e eu acredito. Embora gostasse de acrescenta­r que ficar no sofá pode não ser inteiramen­te mau: em matéria de tratamento das mulheres, desconfio que o Islão é capaz de muito pior.

Verdade que estas coisas não podem ser ditas por aí e eu só posso imaginar algumas cabeças progressis­tas confrontad­as com o fenómeno: o Ocidente é o poço da corrupção moral e existencia­l dos povos; o Outro, o exótico, o não ocidental é detentor de uma autenticid­ade incorrompi­da – ou, vá lá, só corrompida pelo colonialis­mo branco, cristão e patriarcal.

Ao mesmo tempo, algumas dessas cabeças acreditam que a história da humanidade é a história de um longo “feminicídi­o”. Pelo menos, no Ocidente, já que o Outro, o exótico, o não ocidental sempre devotou às donzelas uma deferência cândida.

Até que surge a cena: o Outro, o exótico, o não ocidental, a tratar a mulher como já ninguém a trata nas altas chancelari­as da Europa, só para mostrar quem manda. Como será o funcioname­nto interior, neuronal, de muitas cabeças progressis­tas? Se elas condenam o turco, condenam o exótico. Se elas defendem a donzela, ofendem a sensibilid­ade do Outro. Dê por onde der, só estão a cavar o buraco.

Ninguém disse que esta vida era fácil.

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