OPERAÇÃO MARQUÊS: AS FALHAS NA DECISÃO DO JUIZ IVO ROSA
Dos 31 crimes de que Sócrates era acusado, só ficaram seis: mas o despacho instrutório tem muitas contradições que o recurso do Ministério Público deverá explorar
Apassada sexta-feira, 9, arrancou com 28 arguidos e 189 crimes no despacho de acusação do Ministério Público. O juiz de instrução Ivo Rosa espremeu tudo a 5 arguidos e 17 crimes. Entre eles, José Sócrates e o amigo Carlos Santos Silva, acusados cada um de três crimes de falsificação de documentos e branqueamento de capitais. Todos os crimes de corrupção pelos quais o antigo primeiro-ministro vinha acusado caíram. A decisão instrutória de Ivo Rosa, com quase 7 mil páginas, desmonta grande parte das teses do Ministério Público. Quase sempre de forma polémica. Veja alguns casos.
O QUE FAZER COM BATAGLIA?
Ivo Rosa desvalorizou o depoimento fundamental do empresário luso-angolano Hélder Bataglia no dia 5 de janeiro de 2017, em que incriminava Ricardo Salgado dizendo que este lhe pedira se podia passar pelas suas contas na Suíça €12 milhões para uns “pagamentos” a Carlos Santos Silva. O amigo de Sócrates negou, tal como o banqueiro, e assim, perante esta contradição entre duas partes, Ivo Rosa decidiu deixar cair a de Bataglia.
Começou por dizer que o seu testemunho é frágil porque é coarguido, ou seja “pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas, tal como o anseio de obter um trato policial ou judicial mais favorável, o ânimo de vingança, ódio ou ressentimento”, diz, indo buscar um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Outro problema: no primeiro confronto com as autoridades, em abril de 2016, num interrogatório na Direção Nacional de Investigação e Ação Penal, em Luanda, no âm- Q
bito da carta rogatória dirigida à justiça de Angola, Bataglia disse que não sabia de nada. Em Lisboa, alguns meses depois, começou a falar. Para Ivo Rosa isto é suspeito, não considerando por exemplo a tese de que Bataglia tenha começado a falar porque foi cercado pelo MP, que lhe fez pender sobre a cabeça um mandado de captura internacional que na prática o deixava sem poder sair de Angola.
Conclui Ivo Rosa: “Quanto às declarações do arguido Hélder Bataglia, apesar de o mesmo ter participado nos factos e ter, por essa via, um conhecimento direto dos mesmos, merecem algumas reservas e têm de ser valoradas com algum cuidado (…) e impossibilitam que a partir das mesmas se possa fundamentar uma convicção no sentido de que os 12 milhões de euros que circularam para a conta do arguido Carlos Santos Silva foram feitos a pedido do arguido Ricardo Salgado e que tinham como destinatário o arguido José Sócrates.”
Mais surpreendente, Ivo Rosa reconhece
“APESAR DE [HÉLDER BATAGLIA] TER PARTICIPADO NOS FACTOS, [AS SUAS DECLARAÇÕES] MERECEM RESERVAS”
que há “suspeitas e ausência de justificação lógica para os fluxos financeiros verificados”, mas isso não pode ser um indício de nada, nem mesmo quando a isso é somado o testemunho de alguém que protagonizou esses mesmos fluxos financeiros.
O “CONTEMPORÂNEO”
Quando duas coisas aconteceram no verão de 2012 pode dizer-se que são contemporâneas? Para Ivo Rosa, não. Assim, quando o Ministério Público (MP) diz que Sócrates e Santos Silva combinaram a compra da casa de Paris “em período anterior a julho de 2012, contemporâneo com a venda [setembro de 2012] do imóvel da propriedade de Maria Adelaide Monteiro [mãe de Sócrates]”, há aqui uma “contradição” na tese do MP, aponta claramente o juiz.
Mas noutro lado do despacho de Ivo Rosa (pág. 3.007), sobre outro assunto, o juiz diz que três faturas com as datas 12-5-2009, 28-7-2009 e 31-10-2009 são “contemporâneas”.
UM AMIGO EM PARIS
Ivo Rosa considerou importante o que aconteceu em junho de 2014. Um amigo de José Sócrates, João Manuel Constâncio, teve uma conferência em Paris e ficou alojado no apartamento da capital francesa a convite do próprio Sócrates, que era apenas (oficialmente) inquilino.
Diz Ivo Rosa: “Se atentarmos na audição e transcrição da referida interceção telefónica na sua íntegra [quando Sócrates e Constâncio combinavam a estadia], não se colhem quaisquer indícios de que o referido apartamento em Paris tenha sido escolhido pelo arguido José Sócrates.” Mais: no interrogatório, Constâncio diz que Sócrates “nunca lhe disse ser o proprietário do referido apartamento”. Ou seja, acredita o juiz, se não disse que era o dono, é porque provavelmente não era o dono.
NO FUNDO, O QUE É MANDAR?
A acusação diz que Sócrates agia como o dono do apartamento de Paris e que isso se via bem nas obras de remodelação. Sócrates é apanhado em escutas a decidir portas, janelas e soalhos. “Aquilo é para substituir tudo, pá. E também a janela da sala”, dizia a dada altura Sócrates ao amigo. Noutra escuta, repetia Sócrates: “[A janela da sala] é para tirar e pôr outra, pá.” E sobre o revestimento do chão, dizia Santos Silva: “O que tu escolheste era um bocadinho escuro, na opinião dele [arquiteto], o que é que eu lhe digo?”
Ivo Rosa diz que a situação é “plausível”, que Sócrates não estava a decidir nada, estava apenas a auxiliar. Conclusão: “Não se nos afigurando [que se] permita extrair ilações que nos levam a concluir que era o arguido José Sócrates quem tomava as decisões relativamente à remodelação do apartamento e, muito menos, que este era o verdadeiro proprietário do imóvel.”
O ACHISMO DAS TESTEMUNHAS
No caso da OPA da Sonae à PT, a tese do MP é que Ricardo Salgado liderou o processo dentro da operadora pela influência direta na gestão que Zeinal Bava e Henrique Granadeiro faziam (e no alegado pagamento de um suborno). Isto porque o BES (Salgado) não queria a OPA. Ivo Rosa deu um peso diferente a testemunhos iguais (ver despacho a partir da pág. 4.968). Os que contrariam a tese de que Salgado não condicionava a administração da PT foram valorados (vide Luís Pacheco de