Como funciona a máquina de ódio de Bolsonaro
Jornalista da Folha de São Paulo, escreveu um livro sobre as campanhas de difamação e fake news nas redes sociais – de que ela própria foi vítima, com o incitamento do governo de Jair Bolsonaro.
Logo no início do livro A máquina do ódio, Patrícia Campos Mello diz que vive “num mundo bizarro”. E tem uma data de entrada: 18 de outubro de 2018. O Brasil estava a poucos dias da 2ª volta das presidenciais entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT). O artigo (o primeiro de vários) que publicou na Folha de São Paulo era sobre o envio em massa por WhatsApp de mensagens de ódio e de fake news contra o candidato do PT e sobre como essas táticas digitais sujas têm poder e potencial para influenciar campanhas. Os artigos mostravam como estavam disponíveis no mercado pacotes com dados de milhões de cidadãos e como houve empresários (deduz-se que ligados a Bolsonaro) que os compraram para fins eleitorais. A polémica originou novas leis: os dados dos cidadãos estão agora mais protegidos e o seu envio em massa é ilegal.
Pelo meio, Patrícia Campos Mello entrou à força na máquina do ódio. Foi alvo de centenas de montagens ofensivas e fake news, que tiveram centenas de milhares de partilhas. Mais ainda: em 2013 (quando não era jornalista de política) disse que votava no PT. Esse erro (hoje diz que foi um erro) virou-se contra si. E houve depois uma fonte desses artigos (Hans River) que apareceu a dizer que ela o seduziu para obter informações, oportunidade que Jair Bolsonaro e o filho Eduardo não perderam para piadas de cariz brejeiro e sexual. Patrícia e o seu jornal apresentaram provas de que era mentira e processaram os três (e já há decisão sobre os Bolsonaros; ver caixa).
Patrícia Campos Mello falou com a SÁBADO por Skype a partir da sua casa, em São Paulo.
“Em 2018, o PT estava muito atrasado [no uso das redes sociais], comeu mosca, bobeou”
Como é que o Brasil chegou ao ponto de 79% das pessoas considerarem o WhatsApp uma fonte de informação?
Uma das razões é que várias operadoras telefónicas têm um negócio chamado zero rating: o uso do WhatsApp e do Facebook é de gra
ça. Muita gente no Brasil tem esses pacotes e usa o WhatsApp como telefone, mensagem, tudo. Depois, tem essa campanha do Presidente de desacreditar os media, de dizer que a Globo é comunista, que a Folha é comunista, e o que está passando para a população é que os grandes media são ideológicos, são de esquerda. Isso funcionou para uma parte da população. Então você chegou a um nível em que é assim: se vi na Globo, se li na Folha ou se recebi no WhatsApp, dá na mesma [tanto faz]...
Como é que as agências de marketing conseguiram ter tantos pacotes com milhões de dados dos cidadãos?
Tem vários jeitos. No ano passado, fiz uma matéria [artigo] sobre uma empresa chamada Serasa Experian. É uma agência de nota de crédito. Ela tem dados das pessoas, onde está o CPF [equivalente ao NIF] e até o perfil de consumo, e vendia pacotes com eles. Tudo à venda... Também havia casos de funcionários de operadoras que vazavam os dados e vendiam. E você vai aqui a Santa Ifigênia [bairro de muito comércio em São Paulo], onde tem muita coisa do Paraguai falsificada, e compra lá listas de CPF. Ou seja, não é difícil.
Em 2015, passou a ser proibido os candidatos a cargos políticos receberem doações de empresas. Acha que foi isso que originou este novo fenómeno das campanhas negras pelo WhatsApp?
Na época, o financiamento eleitoral era um grande problema porque você tinha grandes grupos que doavam milhões e depois cobravam. Olha, você tem de passar essa lei... Então acabaram com o financiamento empresarial e criou-se um fundo eleitoral público. Apareceram vários problemas. As candidaturas “laranja”, como a gente diz: são pessoas que se candidatam só para captar o dinheiro do fundo público. E depois você tem a terciarização do caixa dois [equivalente ao saco azul]. Como você Q
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Patrícia Campos Mello diz que, em 2019, o seu filho de 7 anos viu um vídeo na Internet no qual Alexandre Frota (candidato a deputado) a chamava de “vagabunda sem vergonha”
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“Você chegou a um nível em que é assim: se vi na Globo, se li na Folha ou se recebi no WhatsApp, dá na mesma [tanto faz]”
Q não pode receber de uma pessoa jurídica, você pede para ela ir lá comprar uma coisa para você. Ah, vai lá e compra disparo [envio de mensagens em massa pelas redes sociais] para mim, vai lá e compra banner [propaganda na Internet]…. O caixa dois sempre existiu mas, antes, o empresário dava o dinheiro ao candidato por fora, agora ele contrata serviços diretos ao fornecedor em favor do candidato.
Que empresas fizeram estas compras?
Eram várias e não posso dar nomes porque, inclusive, uma delas está me processando. Eram empresas de varejo [retalho], de vestuário, das mais diversas... Do que tive informação, eram grandes empresas.
Quando se dispara em massa uma notícia falsa, alguém tem de a fazer antes, alguém tem de a pensar. Quem é?
Tem várias possibilidades. Às vezes, nas campanhas você tem a equipa do marketing digital. Ou, no caso do governo de Bolsonaro, há um gabinete de comunicações digitais, que é o pessoal que cuida das redes e que ficou apelidado de Gabinete do ódio. Mas nunca é tão centralizado. A beleza e o perigo das redes sociais é que você também faz muita curadoria, você tem milhares de pessoas do candidato x ou y que vão criando memes [pequenos vídeos ou fotos editados para serem cómicos, ou sarcásticos], que vão criando fake news, e você tem um pessoal ali que vai escolhendo os melhores, você tem os influenciadores. Nunca é tão centralizado, mas é óbvio que muita coisa é feita em pequenos núcleos, ou numa agência de marketing digital, ou num gabinete da presidência.
Até onde se pode chegar quanto ao envolvimento da família Bolsonaro na criação destas campanhas digitais?
Nas minhas matérias eu não falo sobre isso porque não tenho nenhuma apuração em relação a quem fazia o conteúdo. Eu falava só da disseminação das mensagens e do uso dos dados pessoais. Há outras reportagens que apontam para atividades de pessoas ligadas ao gabinete de Bolsonaro. Por exemplo, o Facebook e o Instagram baniram várias contas por comportamento inautêntico, que fingiam ser uma coisa que não eram e estavam ligadas ao Tércio Arnaud (que era o chefe do chamado Gabinete do ódio) e a vários assessores de Eduardo Bolsonaro. Fingiam que eram contas normais e botavam lá memes contra o Moro [Sergio Moro, ministro da Justiça que rompeu com Bolsonaro em 2020]. Também há duas grandes investigações no Supremo Tribunal Federal, uma relacionada com um ataque de fake news contra os juízes e o Congresso, e aqui há levantamentos da Procuradoria-Geral da República que mostram que parte de verbas do Gabinete do ódio eram usadas para pagar a agências de marketing para fazer esse tipo de coisa.
Como é o que o PT está neste campo?
Em 2018 também usou disparos em massa, que nessa altura não eram ilegais desde que você declarasse a despesa. Só que o PT e os outros partidos subestimaram a potência desse tipo de comunicação e não tinham essa estrutura de grupos. Os Bolsonaros, sobretudo o Carlos Bolsonaro, começaram isso muito antes. Eles tinham os influenciadores, tinham páginas de humor, foram criando esses grupos ao longo do tempo. O PT estava muito atrasado, comeu mosca, bobeou. Tem muito essa pergunta de porque é que a direita usa tão melhor as redes sociais. Não tenho uma resposta, mas no ano passado a campanha do Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e ele é um candidato muito de esquerda, teve uma tática digital muito eficiente.
Fala no livro do erro que cometeu em 2013, quando disse que votava no PT. No Brasil, há esse hábito de os jornalistas revelarem onde votam?
Não revelam. Eu acho que os jornalistas não o devem fazer, e há um monte deles que fazem campanha, incluindo nas redes sociais. Acho errado. Por isso digo que foi um erro. Foi em 2013, para uns estudantes, eu nem sabia que esse vídeo estava na Internet. Acho que é um erro porque isso afeta a maneira como as pessoas vão ler as suas coisas. Não importa se você mudou de opinião, se não votou mais, as pessoas ficam ligando com aquilo. Tem gente que acha: você é repórter, tem direito à expressão. Eu não acho: você é repórter, você não tem esse direito.
Se em 2022 houver um duelo Bolsonaro-Lula, o que pode acontecer?
O governo brasileiro está fazendo exatamente o mesmo que Donald Trump fez ao longo de 2020, que foi questionar a lisura da eleição, dizendo que o voto por correio vai ser fraudado [fraudulento], falou, falou, passou todas as fake news possíveis e o resultado final foi 6 de janeiro no Capitólio [invasão do edifício]. No Brasil, desde o ano passado que Jair Bolsonaro já falou várias vezes que se aqui não mudarem o voto, em vez de ser voto eletrónico ser impresso, essa eleição vai ser fraudada, vai ser pior que nos EUA. Ele já falou isso. Então, eles estão semeando essa narrativa. Mas ao contrário dos EUA as nossas instituições não são tão sólidas. W