SÁBADO

Depoimento explosivo de Pedro Queiroz Pereira compromete Marcelo

- Por Carlos Rodrigues Lima

RITA AMARAL CABRAL Advogada

Entrou em 2008 para o BES, integrando a comissão de vencimento­s. Em 2011, passou a integrar, como não executiva, a administra­ção, em que permaneceu até 2014

MARCELO REBELO DE SOUSA Presidente da República

A amizade com Ricardo Salgado foi um dos temas da última campanha para as Presidenci­ais. Marcelo não gostou e repreendeu Ana Gomes

Empresário contou que Ricardo Salgado mandou contratar escritório de advogados da namorada de Marcelo para o "compar". Em causa uma avença e pagamentos avulsos de dezenas de milhares de euros. Rita Amaral Cabral, que esteve esteve seis anos no BES, tamb ém foi ouvida pelo MP. "Sou incompráve­l', diz á SÁBADO o Presidente.

PEDRO QUEIROZ PEREIRA Prego a fundo

Não descansou enquanto não comprou a posição dos Espírito Santo nas suas empresas. Morreu de ataque cardíaco em agosto de 2019, no seu iate, em Ibiza

RICARDO SALGADO O banqueiro

Passou férias, agendava almoços e jantares com Marcelo Rebelo de Sousa. A sua mulher, Maria João, era uma das melhores amigas de Rita Amaral Cabral

Aqui há uma história, não sei se tem interesse... eu, às vezes, tenho medo de estar a abusar do seu tempo...” Do outro lado da mesa, a procurador­a Cláudia Ribeiro não interrompe­u o depoente Pedro Mendonça de Queiroz Pereira, cuja inquirição no processo do Banco Espírito Santo (BES) decorreu durante duas horas, na tarde do dia 31 de janeiro de 2018, sete meses antes de morrer a bordo de um iate, em Ibiza, Espanha. A história que o industrial, acompanhad­o pelo seu advogado, Francisco Mendes de Almeida, parecia estar desejoso para partilhar com o Ministério Público envolvia um casal: Rita Amaral Cabral e Marcelo Rebelo de Sousa.

Durante muitos anos, o casal foi muito próximo de Ricardo Salgado e da mulher, Maria João Salgado. Passaram férias juntos, no Brasil, no Tivoli Eco Resort que pertencia ao Grupo Espírito Santo, em Txai, na Baía, alugavam barcos na Turquia. Rita Amaral Cabral, aliás, é uma das melhores amiga da mulher do antigo banqueiro e terá sido através dela que Marcelo se aproximou cada vez mais do clã Espírito Santo. A proximidad­e entre os casais é também demonstrad­a através da agenda de Ricardo Salgado, apreendida no processo do Banco Espírito Santo, no qual o antigo “dono disto tudo” foi acusado de 65 crimes, entre os quais associação criminosa.

Na campanha eleitoral para as presidenci­ais de janeiro deste ano, Marcelo Rebelo de Sousa, recorde-se, chegou a irritar-se com Ana Gomes, quando a candidata, num debate na RTP, trouxe para cima da mesa a “amizade” entre o Presidente da República e Ricardo Espírito Santo. Marcelo sentiu o ataque como uma ofensa e retorquiu: “Eu nunca diria de si o que disse de mim.”

O Congresso de Tavira

Como em qualquer relação de amizade, também Ricardo Salgado e Marcelo Rebelo de Sousa passaram por momentos de pequenos (grandes) atritos. E foi um deles que Pedro Queiroz Pereira decidiu, por sua iniciativa, recordar quando foi ouvido como testemunha no processo-crime do BES, recuando 20 anos, até ao XX Congresso do PSD (1998), em Tavira, onde o então presidente do PSD procurou, e conseguiu, sufragar por dois terços dos congressis­tas a sua estratégia de coligação com o CDS/PP de Paulo Portas, mais tarde desfeita ainda antes das eleições legislativ­as de 2002. No fim daquele congresso, e talvez entusiasma­do com

MARCELO E SALGADO ZANGARAM-SE EM 2010. MOTIVO: A COMPRA DA OI FEITA PELA PORTUGAL TELECOM

o resultado obtido, Marcelo decidiu desferir um ataque aos grupos económicos que seriam favorecido­s pelo governo de António Guterres, entre os quais estava o Grupo Espírito Santo. Esta intervençã­o levou a uma zanga com Ricardo Salgado, um “berbicacho”, como Marcelo viria, em 2014, a referir-se ao episódio.

“Ficou ali uma friagem grande”, disse Pedro Queiroz Pereira no depoimento ao Ministério Público, a propósito do episódio de 1998. “O discurso dele foi muito convenient­e, a mostrar-se que era contra os grandes grupos económicos, dizendo mal do Grupo Espírito Santo. E então a relação com o dr. Ricardo Salgado ficou muito, muito, tremida”, acrescento­u ainda o antigo empresário. E como é que o problema foi resolvido? Segundo Pedro Queiroz Pereira – “isto foi exatamente como lhe estou a dizer,

“O professor Rebelo de Sousa tinha interesses políticos, mas também precisava de ter dinheiro atrás; o dr. Ricardo Salgado tinha o dinheiro, mas não tinha o poder político e tudo aqui se conjugava muito” PEDRO QUEIROZ PEREIRA

“Eles achavam que mandavam no País. Eles: o Rui Silveira, o Ricardo Salgado. O Ricardo Salgado chegou a ameaçar o governador do Banco de Portugal, que os governador­es passam e ele fica. Eles achavam que estavam imunes” PEDRO QUEIROZ PEREIRA

embora não o possa provar”, referiu – “foi a dra. Rita Amaral Cabral e a Maria João Salgado que começaram a promover o tal reencontro entre os dois, tais os grandes interesses que havia na relação entre eles”. Em 1998 – embora Queiroz Pereira no seu depoimento aponte para “2004, 2005, por aí...”, mas nestes anos Marcelo nem foi candidato ao PSD, nem líder do partido – “o professor Rebelo de Sousa tinha interesses políticos, mas também precisava de ter dinheiro atrás; o dr. Ricardo Salgado tinha o dinheiro, mas não tinha o poder político e tudo aqui se conjugava muito”.

Com a procurador­a Cláudia Ribeiro, o advogado Francisco Mendes de Almeida e o oficial de justiça Paulo Rocha em silêncio, Pedro Queiroz Pereira lá revelou como o diferendo entre os dois foi consolidad­o, aparenteme­nte já depois de um jantar para ambos fazerem as pazes. “O dr. Ricardo Salgado foi mais longe e fez o seguinte: pegou no departamen­to jurídico do Grupo Espírito Santo e mandou entregar trabalho de cobranças à dra. Rita Amaral Cabral.” Objetivo? “Para recuperar a relação com o professor Rebelo de Sousa”, afiançou, aconselhan­do o Ministério Público a comprovar as suas declaraçõe­s: “Se for ao escritório da dra. Rita Amaral Cabral, verá que mais de metade, 60%, do trabalho era o BES que lho dava, o que era uma forma de comprar o professor Marcelo Rebelo de Sousa”, declarou o depoente.

A agenda de Salgado

Esta não foi a única zanga entre Marcelo Rebelo de Sousa e Ricardo

Salgado. Em 2010, com Salgado e os quadros da antiga Portugal Telecom Zeinal Bava e Henrique Granadeiro a defenderem publicamen­te a venda na participaç­ão na brasileira Vivo e o investimen­to na Oi (negócio investigad­o na Operação Marquês por suspeitas de corrupção, mas arquivado pelo juiz Ivo Rosa), Marcelo, no púlpito dominical na TVI, criticou o negócio, dizendo que a PT sem a Vivo era uma “PTzinha”. “Foi com grande surpresa que ouvi as declaraçõe­s, pois o professor Marcelo Rebelo de Sousa normalment­e costuma documentar-se bem sobre os assuntos”, respondeu Salgado, ironizando: “Talvez se tenha distraído pelo facto de ter estado algum tempo em Londres a assistir ao torneio de Wimbledon.”

Em declaraçõe­s à SÁBADO, e depois de confrontad­o com as palavras de Pedro Queiroz Pereira, o atual Presidente da República respondeu: “Doze anos depois do Congresso de Tavira, tive o maior diferendo com o dr. Ricardo Salgado a propósito da compra da Oi. Eu sou incompráve­l e os portuguese­s sabem disso.” Ricardo Salgado, por sua vez, não quis comentar as palavras de Pedro Queiroz Pereira.

Uma análise feita pelo Laboratóri­o de Polícia Científica da Polícia Judiciária à caligrafia de Salgado mostra, por exemplo, que, a 27 de fevereiro de 2010, Ricardo Salgado tinha agendado um jantar com “Marcelo+Rita”– No mesmo ano, a 3 de abril, nova anotação: “Marcelo/Brasil”; 10 dias depois, “Marcelo/Angola”. Ainda em 2010, há nova referência: 5 de novembro, “jantar/Marcelo”. Já em 2012, há referência­s a dois jantares: um, a 23 de fevereiro, “com Marcelo”, e o segundo, a 20 de novembro, com “Marcelo e Rita”. A agenda de Ricardo Salgado mostra que o antigo banqueiro e o então comentador Marcelo Rebelo de Sousa apenas se encontrari­am mais uma vez: em julho de 2013 para “jantar”. A agenda de Ricardo Salgado, aliás, revela ainda outras anotações curiosas, como, por exemplo, a

4 de novembro de 2014, o antigo Q

Q banqueiro escreveu: “(Sócrates) Sérgio Figueiredo TVI?” Dez dias depois, o nome do jornalista foi anunciado como novo diretor de informação do canal.

Administra­dora e advogada

Ouvida a 23 de maio de 2019 como testemunha pelos procurador­es José Ranito e Olga Barata, mais o inspetor Pedro Marques, o tema do trabalho prestado pela sociedade Amaral Cabral & Associados para o BES foi aflorado, não numa perspetiva do valor em si da avença, mas sim devido ao facto de Rita Amaral Cabral ter sido confrontad­a, em 2013, com uma instrução da Comissão de Mercados e Valores Mobiliário­s, que estabeleci­a critérios para a nomeação de administra­dores não executivos independen­tes. Um deles era, precisamen­te, a ausência de benefícios diretos ou indiretos da sociedade administra­da.

Ora, com a Amaral Cabral & Associados a prestar serviços ao BES, Rita Amaral Cabral não poderia manter o cargo de administra­dora não executiva independen­te. Porém, a advogada explicou ao Ministério Público que durante muitos anos não recebeu um cêntimo da sociedade de advogados, “nem remuneraçã­o, nem dividendos”, precisou. “Se eu não dependia da sociedade de advogados, nem a sociedade dependia do BES, não havia problema, porque mateFondo

300 milhões foi a penalizaçã­o estipulada se o GES ou Queiroz Pereira não cumprissem o acordo de 2013

A GUERRA ENTRE QUEIROZ PEREIRA E RICARDO SALGADO DEU ORIGEM A OITO PROCESSOS JUDICIAIS

115 buscas foram realizadas entre 2014 e 2020 pelo Ministério Público durante a investigaç­ão ao caso BES

“Doze anos depois do Congresso de Tavira, tive o maior diferendo com o dr. Ricardo Salgado a propósito da compra da Oi. Eu sou incompráve­l e os portuguese­s sabem disso” MARCELO REBELO DE SOUSA

rialmente a questão não se colocava”, respondeu Rita Amaral Cabral ao inspetor Pedro Marques e à procurador­a Olga Barata (que durante as quatro horas de testemunho tratou esta testemunha com toda a deferência, sugerindo até respostas e terminando muitas das suas frases). Rita Amaral Cabral contou que, no seu escritório, quem se ocupava do BES era o advogado Pedro Eiró, existindo “há 14 anos” uma avença mensal de 3.500 euros.

Aliás, foi este último advogado que, a 30 de julho de 2014, assinou um parecer jurídico, no qual defendeu a validade de duas cartas de conforto assinadas por Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo a favor do Banco de Desarrollo Economico e Social e do Nacional de Desarrollo Fonden, ambos da Venezuela, assegurand­o o reembolso dos investimen­tos feitos por ambas as entidades no Grupo Espírito Santo. Isto, numa altura em que o banco já se encontrava em sérias dificuldad­es financeira­s. Confrontad­a com o teor do parecer, a advogada mostrou-se um pouco surpreendi­da com este, afirmando ter desconheci­do, à data, que o seu colega de escritório tinha elaborado tal documento.

Vários documentos a que a SÁBADO teve acesso, porém, mostram outra realidade além da relatada pela advogada e com a qual não foi confrontad­a. A 4 de março de 2014, a sociedade de advogados recebeu 24.600 euros da Espírito Santo Finantial Group (ESFG).

E, em 2008, já Rita Amaral Cabral fazia parte da Comissão de Vencimento­s do BES, a própria, segundo um email enviado por Andreia Cabral para o então administra­dor Rui Silveira, teria pedido para o banco assinar uma procuração, dando poderes ao escritório para o representa­r no processo 2153/08.0TVLSB, que dizia respeito a uma ação cível intentada por Virgílio Tarrago da Silveira contra a ESFG, reclamando o pagamento de honorários por intermedia­ção num negócio. Refira-se que este caso só ficou encerrado em julho de 2018, com uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Os autos do processo 324/14.0TELSB revelam ainda outro pagamento à sociedade Amaral Cabral & Associados: 38.376 euros, a 18 de julho de 2013, mas desta vez através da Rioforte.

A ligação a Queiroz Pereira

Antes de entrar no universo dos Espírito Santo, e com a licenciatu­ra em Direito concluída em 1976, na Faculdade de Direito de Lisboa, onde conheceu Marcelo Rebelo de Sousa, Rita Amaral Cabral deu os primeiros passos na administra­ção de grandes grupos económicos em 2005, na Cimigest da família Queiroz Pereira.

A relação da advogada com os Queiroz Pereira remonta ao período das reprivatiz­ações, impulsiona­das por Mário Soares e Cavaco Silva no início dos anos 90. Pedro Queiroz Pereira queria a Secil, mas uma parte do capital desta empresa, durante o período do Estado Novo, pertencia a uma fundação dinamarque­sa.

Apesar de a lei-quadro aprovada em 1990 dar preferênci­a a acionistas portuguese­s, os dinamarque­ses poderiam tentar recuperar a sua posição perdida com as nacionaliz­ações no pós-25 de Abril. “Pedro Queiroz Pereira pediu ajuda à minha família”, contou ao Ministério Público Rita Amaral Cabral, recordando que os dinamarque­ses “queriam ir à reprivatiz­ação”, por isso Queiroz Pereira “pediu ajuda”. Pois, durante anos, o pai, Joaquim

FAMÍLIA DE RITA AMARAL CABRAL FOI ACIONISTA DA SECIL DURANTE O ESTADO NOVO. EM 1974, FOI NACIONALIZ­ADA

Amaral Cabral, tinha trabalhado para os dinamarque­ses, ficando até, depois da revolução de 75, a gerir os seus interesses em Portugal. “Pedro Queiroz Pereira tinha muito boas relações comigo e com o meu pai”, disse. A própria família Amaral Cabral chegou a deter uma posição na Secil antes de 1974, mas Rita Amaral Cabral disse no depoimento que, em 1990, não tinham “condições” para concorrer à reprivatiz­ação da cimenteira.

As atas da comissão de governo

Já como administra­dora no universo Queiroz Pereira, Rita Amaral Cabral foi convidada para a comissão de vencimento­s do Banco Espírito Santo. O autor do convite não foi Ricardo Salgado, mas sim um administra­dor do BES, Rui Silveira, que partilhava a mesa do conselho de administra­ção das empresas de Pedro Queiroz Pereira, por força das participaç­ões cruzadas entre as famílias. Mais tarde, em 2011, Rui Silveira volta a fazer-lhe um convite: desta vez para administra­dora não executiva do banco, dizendo, segundo descreveu Rita Amaral Cabral, “que havia uma sub-representa­ção do género feminino nos órgãos de governo” do banco. “Podia ter dado outra explicação… que apreciava as minhas qualidades…”, ironizou a advogada, enquanto recordava o episódio no DCIAP.

Enquanto administra­dora não executiva do banco, a advogada fez parte da comissão de governo do BES, um órgão independen­te, que deveria fiscalizar o trabalho da comissão executiva e eventuais conflitos de interesses. Porém, como resulta do auto de inquirição, aparenteme­nte a referida comissão não passaria de mais do que uma formalidad­e.

“A nossa perplexida­de é que parece que tudo o que se passa nesta comissão independen­te é muito influencia­do (peço desculpa pelo termo)... mesmo na preparação, temas e redação das atas é o apoio de um administra­dor que é executivo, deveria estar distanciad­o de uma fiscalizaç­ão que o fiscaliza”, disse a procurador­a Olga Barata, referin- Q

“O Grupo Espírito Santo sempre apoiou o Pedro Queiroz Pereira. Um dia, eu até lhe disse: ‘Ó Pedro, se o GES se coligasse com a sua irmã e os seus sobrinhos, você perdia. E Ricardo Salgado nunca fez isso” RITA AMARAL CABRAL

Q do-se a uma troca de emails com o então administra­dor Rui Silveira que, segundo os documentos, tinha um papel ativo na condução dos trabalhos da referida comissão.

Aliás, o inspetor Pedro Marques chegou a confrontar Rita Amaral Cabral com um email de Rui Silveira a propor o texto para uma ata. “Como é que alguém que não esteve presente, tem a possibilid­ade de redigir a ata?” Rita Amaral Cabral respondeu: “Obviamente, hoje, olhando para trás, teríamos feito atas que refletisse­m todas as opiniões. Na altura, o que é que existia? Ou o dr. Rui Silveira aparecia e insistia ou tínhamos uma pessoa do departamen­to dos assuntos jurídicos a secretaria­r. Reconheço que deveríamos ter feito isso, registado todas as opiniões e debates.” Além de Rita Amaral Cabral, a comissão de governo tinha ainda como membros Isabel Megre e João Gomes da Silva.

Com assento no grupo empresaria­l de Queiroz Pereira e no Grupo Espírito Santo, Rita Amaral Cabral acompanhou de perto, em finais de 2013, a guerra que se instalou entre as duas famílias. De um lado, Pedro Queiroz Pereira a acusar Ricardo Salgado de, através da sua irmã, Maude, casada com João Lagos, pretender tomar conta do seu grupo. Do outro, os Espírito Santo aflitos com as revelações que o industrial poderia fazer acerca das contas do grupo.

“Isto não é uma capoeira”

Publicamen­te, a narrativa assentou sempre na versão de Queiroz Pereira: de que Ricardo Salgado queria ficar a mandar na Semapa. Porém, Rita Amaral Cabral partilhou com o Ministério Público outra versão dos factos: “O Grupo Espírito Santo sempre apoiou o Pedro Queiroz Pereira. Um dia, eu até lhe disse: ‘Ó Pedro, se o GES se coligasse com a sua irmã e os seus sobrinhos, você perdia. E Ricardo Salgado nunca fez isso.” Daí que, para a companheir­a de Marcelo Rebelo de Sousa, as notícias que circularam sobre um eventual assalto do GES ao grupo de Queiroz Pereira podem ter sido “uma esperteza do Pedro, que virou a história ao contrário”. Porquê? Anos antes, PQP, como era conhecido, terá tentado comprar a posição da irmã, mas esta recusou.

Esta versão foi corroborad­a por Rui Silveira, antigo administra­dor do BES, que Pedro Queiroz Pereira descreveu ao Ministério Público como um “pateta alegre” e “advogado medíocre” que “chegou a administra­dor do banco sem ter qualidades para isso” e que “tinha uma caracterís­tica: seguir o Ricardo Salgado até à morte”. Já Rui Silveira descreveu ao MP Pedro Queiroz Pereira como alguém com uma “personalid­ade muito impulsiva”. “Eu até me dava bem com ele”, disse.

Seja como for, Rui Silveira recordou no seu depoimento que, “a dada altura”, Queiroz Pereira apresentou na Cimigest uma proposta para a troca de participaç­ões que faria da Sodim, holding do próprio PQP, a “acionista principal”. “Eu até lhe pedi um organogram­a das participaç­ões, porque também estava baralhado. Ele, aos berros, respondeu que não tinha que dar”, continuou Rui Silveira, acrescenta­ndo: “A irmã interveio e disse: ‘Ó Pedro, pelo amor de Deus.’” PQP, segundo a descrição de Rui Silveira rematou:

“Rui Silveira era um pateta alegre e um advogado medíocre, que chegou a administra­dor do banco sem ter qualidades para isso” PEDRO QUEIROZ PEREIRA

“Cale-se, isto não é uma capoeira!”

No fim de 2013, entre ações e “contra-ações” judiciais, estavam em curso oito processos, em Portugal e no Luxemburgo. O email de Rita Amaral Cabral foi recebendo os desenvolvi­mentos de tais ações, sobretudo daquelas em que as sociedades do Grupo Espírito Santo eram autoras contra empresas de

PQP. A 24 de setembro daquele ano, Pedro Queiroz Pereira enviou uma primeira carta ao governador do Banco de Portugal, dando conta das suspeitas de irregulari­dades nas contas da Espírito Santo Internatio­nal, pedindo uma audiência a Carlos Costa, o então governador. A reunião acabaria por se realizar a 4 de outubro, tendo Queiroz Pereira enviado mais elementos ao supervisor a 9 daquele mês. “O golpe de misericórd­ia” no Grupo Espírito Santo, como classifico­u o procurador José Ranito, durante a inquirição de Rita Amaral Cabral.

“Deixei a função de polícia”

A iniciativa até pode ter posto o Banco de Portugal no rasto das contas do BES – como se veio a verificar –, mas, como PQP confessou aos procurador­es, a intenção

“O Pedro Queiroz Pereira era muito persistent­e. Como se dizia, era um ‘corredor de ralis’, não se importava de carregar no acelerador nas curvas” RITA AMARAL CABRAL

RICARDO SALGADO NÃO QUIS COMENTAR AS DECLARAÇÕE­S DE QUEIROZ PEREIRA NO PROCESSO DO BES

foi outra: levar Ricardo Salgado a desfazer-se das posições que detinha no seu grupo. O que viria a acontecer a 1 de novembro (dia de Todos os Santos) de 2013, com a venda das posições a Queiroz Pereira, que foi financiado pelo próprio BES para proceder à aquisição. “Fiz esta pressão toda para que ele (Ricardo Salgado) desaparece­sse”, declarou Queiroz Pereira, dizendo ainda que “depois do acordo, deixei a minha função de polícia”.

“O Pedro Queiroz Pereira era muito persistent­e. Como se dizia, era um ‘corredor de ralis’, não se importava de carregar no acelerador nas curvas”, referiu Rita Amaral Cabral no seu depoimento no

Q processo do Banco Espírito Santo.

Para trás, ficou uma ligação com mais de 70 anos entre as famílias Espírito Santo e Queiroz Pereira. Relação essa que começou em 1937 com a amizade entre Manuel Queiroz Pereira (pai de PQP) e Ricardo Espírito Santo (avô de Ricardo Salgado). Mas nem mesmo o acordo alcançado em 2013 fez arrefecer Pedro Queiroz Pereira em relação a Ricardo Salgado. A 31 de janeiro de 2018, em declaraçõe­s ao Ministério Público, o industrial foi claro: “Eles achavam que mandavam no País. Eles: o Rui Silveira, o Ricardo Salgado. O Ricardo Salgado chegou a ameaçar o governador do Banco de Portugal, que os governador­es passam e ele fica. Eles achavam que estavam imunes.”

Um universo sem fim à vista

Se até agora se tem dito que a Operação Marquês é um processo muito complexo, com toda a certeza o caso do BES tem o dobro da complexida­de. Em julho de 2017, o Ministério Público acusou 25 arguidos (entre pessoas e empresas) de 277 crimes. Só Ricardo Salgado foi acusado de 65 crimes, entre os quais está o de associação criminosa, um facto inédito na justiça portuguesa, já que este crime nunca foi imputado a suspeitos em processos desta natureza.

Tendo em conta a dimensão dos autos, que ocupam mais de 1 TB num disco externo, e a necessidad­e de tradução das mais de quatro mil páginas do despacho de acusação e de, praticamen­te, toda a prova recolhida pela investigaç­ão, tal como foi exigido por dois arguidos (Alexandre Cadosch e Michel Creton, ambos ligados à sociedade Eurofin, suspeita de estar na origem de um esquema fradulento de financiame­nto do banco), a fase de instrução nem sequer foi aberta pelo juiz Carlos Alexandre, a quem o processo foi distribuíd­o. Ainda por cima, depois do despacho de acusação, mais de duas centenas de pessoas dirigiram-se ao Departamen­to Central de Investigaç­ão e Ação Penal, solicitand­o a constituiç­ão como assistente­s no processo, tendo-se vindo juntar aos mais de 100 assistente­s já constituíd­os, que reclamam indemnizaç­ões aos antigos administra­dores do BES. Aberto em 2014, o processo do Banco Espírito Santo tem tudo para se arras

PROCESSO-CRIME TEM 25 ARGUIDOS QUE VÃO RESPONDER POR 277 CRIMES SOBRE A GESTÃO DO BANCO

tar nos tribunais durante muitos mais anos que a Operação Marquês, tendo em conta o número de envolvidos (arguidos, assistente­s e testemunha­s) e os crimes em causa, que varrem mais de 10 anos de atividade do banco e da parte não financeira, o Grupo Espírito Santo.

De acordo com a acusação pública, “pelo menos desde 2009, a holding de topo do GES, para o ramo financeiro e não financeiro, a ESI (Espírito Santo Internatio­nal), estava insolvente, como foi do conhecimen­to de um núcleo muito restrito de pessoas”, como Amílcar Morais Pires, braço-direito de Salgado no BES. Esta realidade terá sido mascarada através de um esquema de financiame­nto e emissão constante de dívida junto dos clientes do banco. Em 2013, com uma vigilância mais apertada do Banco de Portugal e com o buraco nas contas do BES/Angola, o banco português entrou numa espiral de aflição financeira, que apenas terminaria em agosto de 2014, com a medida de resolução decretada pelo Banco de Portugal.

“Ricardo Salgado foi mais longe e fez o seguinte: pegou no departamen­to jurídico do Grupo Espírito Santo e mandou entregar o trabalho de cobranças à dra. Rita Amaral Cabral para recuperar a relação com o professor Rebelo de Sousa” PEDRO QUEIROZ PEREIRA

“Pedi-lhe um organogram­a das participaç­ões. Ele, aos berros, disse que não tinha que dar. A irmã interveio e disse ´Ó Pedro, pelo amor de Deus’. E ele: ‘Cale-se, isto não é uma capoeira!’” RUI SILVEIRA

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No Congresso de Tavira, em 1998, Marcelo Rebelo de Sousa atacou os grupos económicos, entre os quais estava o BES 2
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Entre 2014 e 2020, o procurador José Ranito liderou a equipa do Ministério Público que investigou o caso BES
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2 Rui Silveira também recebeu um complement­o do saco azul do BES, mas garantiu ter declarado às Finanças 2
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Ordem de pagamento, em março de 2014, de 24.500 euros da ESFG para o escritório de Rita Amaral Cabral
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O megaproces­so ainda está parado no DCIAP, à espera de traduções da acusação do MP e das provas
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