SÁBADO

Aline de Beuvink, no centro da polémica com Francisco Louçã

Já declamou E Depois do Adeus e imitou um relato de futebol na Assembleia Municipal. É tudo menos cinzenta e a incrível história da família não termina no vídeo da polémica.

- Por Maria Henrique Espada

Aversão do vídeo que Francisco Louçã foi buscar para ironizar com a pouco mais que desconheci­da Aline Gallasch-Hall de Beuvink, no “momento zen” do seu comentário na SIC Notícias, estava truncada de uma parte em que a deputada municipal pelo PPM conta uma história pessoal. A história era esta: durante o Holodomor, a grande fome ucraniana, com milhões de mortos e episódios desesperad­os de canibalism­o, provocada pelo regime soviético, uma criança de 9 anos, que vivia com a família junto a uma floresta, encontrou uma menina, com uns 10, perdida e faminta. Tinha fugido de casa, na cidade, porque percebeu que “conforme desapareci­a cada um dos irmãos mais novos, havia comida na mesa”. Fugira para evitar que chegasse a sua vez. A voz de Aline, nessa parte do vídeo, é já quase um grito, quando conclui: “A menina que vivia na floresta era a minha avó materna.”

O vídeo, de 2019, acabou por pô-la no centro de uma polémica em que o mais criticado acabou por ser Louçã. Mas o conselheir­o de Estado até poderia ter ido buscar outros vídeos de Aline, que terá provavelme­nte o registo mais original da Assembleia Municipal de Lisboa. Já fez comparaçõe­s entre a vereação e o panteão greco-romano (Sá Fernandes era o deus Baco, Fernando Medina, Neptuno, com o tridente do poder), e a assistênci­a riu-se com gosto; já fez uma adaptação, que declamou, do E Depois do Adeus de Paulo de Carvalho, ajustada à despedida de Manuel Salgado do executivo autárquico e ao som da música, e aqui os socialista­s pareceram ter achado menos graça; já relatou as aventuras da vereação, entradas e saídas de plantel, em modo de relato futebolíst­ico à Gabriel Alves (fez sucesso); e quando instou Fernando Medina a responder-lhe a uma série de questões usando a expressão “ajoelhou, vai ter que rezar”, teve as duas reações. Medina deu gargalhada, conta quem assistiu, mas uma deputada socialista irritada fez um protesto à mesa dizendo que se estava a “sexualizar” a função. Aline não é, de facto, a típica autarca cinzenta.

Margarida Bentes Penedo, deputada municipal do CDS (que está em coligação com o PPM na Assembleia Municipal), diz perceber as reações: “Ela vai-lhes ao nervo, porque não a sabem interpreta­r. Gera sempre muitos apartes, mas ao mesmo tempo é divertido – para quem o consiga perceber.” Diogo Moura, também do CDS, diz que “é uma estratégia inteligent­e para quem está sozinho na bancada”.

Há outra particular­idade que deu nas vistas mal entrou, em 2009, e que Simonetta Luz Afonso, que então presidia à AM, pelo PS, recorda: “Era nova, muito bonita, e vestia-se bem. Senti muitas vezes um certo risinho machão ser-lhe dirigido. Isso hoje penso que já desaparece­u. Ela é culta, preparada, trabalhado­ra, assídua nas reuniões e nas comissões – mas teve de provar que estava ali para trabalhar.” A parte do risinho machão, lembra, traduziu-se num apelido.

“Ora, ora quem aqui está, a nossa deputada-Barbie”, recorda a própria à SÁBADO. “Uns diziam para picar, outros achavam que estavam a fazer um elogio. Não sei o que era pior. Dava-me vontade de desatar ao estalo [ressalva: é força de expressão, nunca aconteceu]. Quando fui para a AM já tinha um mestrado e dava aulas havia quase 10 anos na Faculdade de Letras. É um trabalhão, mesmo na universida­de, afirmar-se ‘estou aqui porque penso’.”

Talvez nessas alturas haja um assomo do seu lado que gerou outra alcunha, que teve na faculdade e que se enquadra nas intervençõ­es mais duras, como a de crítica ao Holodomor – era a Aline Gallasch-nikov. Mas tudo depende do palco: “Ela sabe defender as suas causas com convicção, mas no trato pessoal é encantador­a. Útil, humana, simpática. E, aliás, é muito apreciada noutras bancadas”, diz Simonetta.

Nomes, guerra e imigração

Aline é Gallasch da parte da mãe, que tem ascendênci­a ucraniana, e, do outro lado, polaca, austríaca e mongol; Hall do pai, português, de origem patrilinea­r inglesa e nobre; e de Beuvink do marido Thomas, hoBrasil,

SER LOURA E ASSERTIVA AO MESMO TEMPO TEM UM PREÇO: UMA DEPUTADA DO PS ACUSOU-A DE SEXUALIZAR A FUNÇÃO

landês, mas com mãe alemã, e que conheceu num baile em Paris. A própria Aline foi concebida em Angola, nasceu no Brasil e veio para Portugal aos 7 anos. A história da família cruza-se com a do século XX.

A avó da história que Aline contou, e com quem ainda fala pelo menos duas vezes por semana, tem hoje 97 anos, vive em Porto Alegre, no Brasil. Na II Guerra Mundial, fugiu com o marido para a Áustria à frente do Exército Vermelho – como muitos outros refugiados de Leste que não desejavam regressar ao jugo soviético. No pós-guerra, à questão dos Aliados, sobre se queriam refugiar-se nos EUA ou no Brasil, escolheu o último, com um único critério: tinha estado mais longe da guerra.

Durante a guerra colonial, viu um anúncio à procura de madrinhas de guerra e disse à filha Ludmilla, ainda adolescent­e, se não queria escrever a um daqueles pobres rapazes. O colega de camarata daquela a quem escreveu achou que o nome, como na ópera Rusland e Ludmilla, que adorava, era um sinal, e “roubou” a madrinha. Casaram em Lisboa, antes do 25 de Abril, mas Amílcar Hall, militar, foi colocado em Luanda. O primeiro filho nasceu lá, a segunda, Aline, já não: o agitado Verão Quente de 1975 e a gravidez de risco levaram a mãe de volta ao Brasil, para a segurança dos pais. Aline ainda fez a primeira classe no e a família veio no início dos anos 80 para Portugal. A avó fora voluntária no campo de refugiados políticos gerido pela ONU em Viena, a mãe passou a fazer voluntaria­do no apoio aos refugiados ucranianos que começaram a desaguar em Portugal nos anos 90.

Ultrapassa­da pelo Chega

Sempre foi monárquica, mas só foi parar ao PPM devido a um encontro causal com um amigo, o jornalista Frederico Carvalho, numa livraria – e que ia ser candidato. “Depois, ninguém lê os programas eleitorais, mas eu li. Identifico-me com o municipali­smo, o humanismo, a ecologia, a preocupaçã­o com o património, eu sou de História de Arte...” Achou bem entrar num partido pequeno, “não tenho pretensão a cargos, queria fazer qualquer coisa pela minha sociedade local”. E, num partido pequeno, subiu rapidament­e mas, também pela pequenez, cabe-lhe fazer de tudo. “Não há agências nem jotas, já passei um aniversári­o a colar cartazes na rotunda de Belém. O meu marido à meia-noite disse ‘para tudo, agora vamos cantar os parabéns à Aline’.”

Nem sempre as coisas lhe correram bem no PPM. Nas europeias de 2019 foi surpreendi­da pela decisão de coligação com o partido de André Ventura e fez questão de tornar públicas quer a surpresa quer o desagrado, por entender que os valores do PPM “não se coadunam com os princípios manifestad­os publicamen­te pelo movimento Chega”.

A recente polémica com Louçã colocou-a sob a atenção mediática como nunca antes: “Eu tenho um lugar público, mas não sou uma figura pública. Ele é que me está a tornar uma pessoa conhecida, e não gosto.”

Como não tem televisão, soube da brincadeir­a de Louçã pelos amigos a ligarem e foi ver: “Devo dizer que fiquei chocada. Como é que alguém pode rir de uma situação histórica tão dramática? Como é que trunca o vídeo para melhor tentar ridiculari­zar a situação? E porquê eu? Não sou conhecida, a não ser na AM, e até teve de ir aos arquivos. Mas estou convencida de que estará arrependid­o.” W

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