O uso de napalm e o isolamento de Portugal
O uso de bombas incendiárias na guerra colonial foi alvo de denúncias e condenações da ONU. O cerco apertou-se no cenário internacional.
NO DIREITO INTERNACIONAL, A PROIBIÇÃO DE ARMAS BACTERIOLÓGICAS E QUÍMICAS AINDA NÃO ERA CLARA
Desenvolvido em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, por uma equipa de químicos da Universidade de Harvard dirigida por Louis Frieser, o napalm corresponde a um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, ou, melhor dizendo, é o agente espessante de tais líquidos, que, quando misturado com gasolina, a transforma num gel pegajoso e incendiário. O seu nome – napalm – deriva do acrónimo da designação dos seus componentes originais, sais de alumínio coprecipitados dos ácidos nafténico e palmítico; estes sais eram adicionados a substâncias inflamáveis para serem gelificadas. Do ponto de vista bélico, o napalm aumenta de forma significativa a eficiência dos líquidos inflamáveis.
Sobretudo a partir da guerra do Vietname, os seus efeitos sobre os seres humanos foram ilustrados em imagens crudelíssimas, divulgadas por todo o mundo. Recorde-se a célebre fotografia de Kim Phuc, uma rapariga sul-vietnamita de nove anos, gravemente queimada pelo napalm, a fugir, horrorizada e nua, dos bombardeamentos da aviação norte-americana, que foi publicada em 1972 e logo se tornou uma das mais famosas imagens do século XX e um dos ícones mais expressivos dos dramas da guerra no Vietname, alimentando o imaginário pacifista à escala planetária.
Contudo, no direito internacional, incluindo o direito humanitário, não podia, então, falar-se rigorosamente de interdição das armas bacteriológicas (ou biológicas) e, muito menos, das armas químicas. Por isso, em agosto de 1968, a delegação britânica à Conferência de Genebra apresentou um documento de trabalho considerando não satisfatório o protocolo vigente (de 1925), sobretudo porque: em primeiro lugar, vários Estados não eram aderentes ao protocolo (antes de mais, os EUA e o Japão); depois, alguns Estados aderentes reservavam-se o direito de utilizar armas interditas, em certas condições; por último, a terminologia do protocolo estava ultrapassada e era equívoca. Propunha-se, então, separar as duas categorias de armas e aprovar uma nova convenção, completando (mas não substituindo) o protocolo vigente. No entanto, perante as críticas à proposta britânica, o Comité de Genebra optou por solicitar a intervenção da Assembleia Geral e do secretário-geral da ONU, que começaram por designar um grupo de especialistas com o fim de estudar os efeitos da eventual utilização de armas químicas e bacteriológicas. Na introdução ao relatório posteriormente elabora
A PARTIR DA GUERRA DO VIETNAME, OS EFEITOS SOBRE SERES HUMANOS FORAM ILUSTRADOS EM IMAGENS CRUDELÍSSIMAS
CABRAL LEVOU “UM DOS COMPATRIOTAS QUEIMADOS PELO NAPALM” A UMA COMISSÃO DE PERITOS DA ONU
do, o secretário-geral U Thant incitava os membros da ONU a afirmarem “claramente que a proibição enunciada no Protocolo de Genebra se aplica ao uso na guerra de todos os agentes químicos bacteriológicos e biológicos (incluindo o gás lacrimogéneo e outros gases irritantes), atualmente existentes ou suscetíveis de utilização no futuro”.
A Assembleia Geral da ONU acabou por aprovar, em 16 de dezembro de 1969, a resolução 2603, a qual, em substância, convidava todos os Estados a conformar-se estritamente aos princípios e objetivos do Protocolo de Genebra e, em especial, declarava contrário ao direito internacional o uso quer de todo o agente químico de guerra (substâncias químicas, estejam em estado gasoso, líquido ou sólido), em razão dos seus efeitos tóxicos diretos sobre o Homem, animais ou plantas, quer de qualquer agente biológico de guerra (organismo vivos, seja qual for a sua natureza, e produtos infecciosos derivados) com a intenção de provocar doença ou morte de pessoas, animais ou plantas e cujos efeitos dependem da sua propensão a multiplicar-se na pessoa, no animal ou na planta atacados.
As denúncias de Amílcar Cabral
Antes disso, em agosto de 1968, Amílcar Cabral enviara uma petição à Comissão de Descolonização da ONU assinalando que as forças portuguesas bombardeavam intensamente o território da Guiné-Bissau com napalm e fósforo branco e que se preparavam para recorrer a produtos químicos desfolhantes e a gases tóxicos contra as populações locais. Na sequência desta petição, foi, em nome do “grupo afro-asiático”, apresentado um novo projeto de resolução, cujo texto condenava Portugal e solicitava a elaboração de um relatório (aliás, nunca concluído) sobre a utilização de armas de destruição maciça e outros aspetos da guerra colonial, sobretudo na Guiné portuguesa. Por fim, pedia-se aos Estados para, por todos os meios, impedirem o eventual emprego de armas de destruição em massa nessa guerra colonial.
Após breve discussão, a comissão apreciou o projeto de resolução a 23 de setembro de 1968. O parágrafo principal – que condenava Portugal – foi objeto de votação separada e aprovado por dezoito votos contra quatro (Austrália, Estados Unidos, Itália e Reino Unido) e uma abstenção (Finlândia). Mas o conjunto do projeto não teve oposição e foi aprovado por 19 votos e quatro abstenções, tendo a resolução sido logo transmitida ao Conselho de Segurança, à Comissão de Direitos do Homem e aos diferentes Estados.
No ano seguinte, Amílcar Cabral voltou a denunciar o uso de napalm pelas forças militares portuguesas na Guiné, desta feita perante uma comissão de especialistas da Comissão de Direitos do Homem da ONU, reunida na Guiné-Conacri. Na sua intervenção oral, Cabral denunciou tais bombardeamentos, que comprovou quer com o testemunho
A 2 DE FEVEREIRO DE 1972, O CONSELHO DE SEGURANÇA CONDENOU O USO DE SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS POR PORTUGAL
A CRUZ VERMELHA PREPARAVA UM RELATÓRIO A DEFENDER A PROIBIÇÃO DE ARMAS INCENDIÁRIAS
Q das reportagens de jornalistas que tinham visitado as “regiões libertadas” (entre eles, o ensaísta e historiador britânico Basil Davidson), quer com a presença de “um dos compatriotas queimados pelo napalm. E se, por exemplo, [os membros da Comissão] se pudessem deslocar a Boké [que se situa na zona fronteiriça da República da Guiné-Conacri] veriam outras pessoas vítimas dos resultados dos bombardeamentos com napalm”.
Na mira da ONU
A partir da XXV sessão, de 1971, a Assembleia Geral da ONU começou a mostrar-se “profundamente preocupada com o uso de substâncias químicas” e a condenar o “bombardeamento cego da população civil e a destruição impiedosa e maciça de aldeias e bens a que se dedicam as forças militares portuguesas em Angola, em Moçambique e na Guiné (Bissau)”. Consequentemente, quer na resolução 2707, aprovada em dezembro de 1970, quer na resolução 2795, aprovada em dezembro de 1971, a Assembleia Geral da ONU pedia ao governo português para não usar “meios de guerra químicos e biológicos contrários às regras geralmente reconhecidas pelo direito internacional”. A Assembleia Geral manteve posteriormente esta orientação (em especial, a propósito da visita da missão especial às regiões libertadas da Guiné), mas a resolução 3113, de 12 de dezembro de 1973, já não abrangia a Guiné-Bissau, por esta ser agora considerada um Estado independente.
Também o Conselho de Segurança, reunido em África, através da Resolução 312, de 4 de fevereiro de 1972, aprovada por nove votos e seis abstenções, se mostrou “profundamente preocupado pelos relatórios que referiam o emprego de substâncias químicas por parte de Portugal nas suas guerras coloniais contra os povos de Angola, de Moçambique e da Guiné (Bissau)”.
Além disso, na sua reunião plenária de 20 de dezembro de 1971 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou um conjunto de três resoluções: duas sobre o respeito pelos direitos humanos nos conflitos armados e outra sobre a proteção de jornalistas envolvidos em missões de risco em áreas de conflito armado. Interessa reter a resolução 2852, a qual, sem visar diretamente Portugal, era inequívoca na condenação do uso de napalm. Em resultado disso, o secretário-geral da ONU apresentou, em 19 de outubro de 1972, o relatório Napalm and other incendiary weapons and all aspects of their possible use. Com várias dezenas de páginas, o relatório possuía, naturalmente, um conteúdo técnico, não fazendo referência desenvolvida a casos particulares daquele tempo (os exemplos referidos tinham por objeto situações ocorridas na Grande Guerra, na guerra da Etiópia, na Guerra Civil espanhola e na II Guerra, sendo o Vietname citado fugazmente). Contudo, as descrições dos efeitos do napalm eram, pese a sua natureza técnica, extremamente impressionantes, em especial no capítulo III do relatório, que se debruçava sobre as consequências médicas (v.g., queimaduras) daquele tipo de armas, quer em termos individuais, quer sobre o conjunto das populações afetadas, incluindo efeitos ambientais, económicos e sociais.
Logo a seguir, a Assembleia Geral das Nações Unidas, pela resolução 2932 A, solicitou aos diversos Estados que se pronunciassem sobre o relatório do secretário-geral. Muito provavelmente, é no âmbito da preparação da resposta do Estado português à ONU que, como veremos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros solicitou a intervenção do Ministério da Defesa.
Entretanto, no Reino Unido, a Câmara dos Lordes discutia, na sua sessão de 26 de outubro de 1972, se deveria ser aprovada uma proibição genérica do uso de napalm e outras armas incendiárias. Ao mesmo tempo, a Cruz Vermelha preparava um relatório sobre o assunto, que seria publicado em 1973. O cerco apertava-se. W