SÁBADO

O uso de napalm e o isolamento de Portugal

O uso de bombas incendiári­as na guerra colonial foi alvo de denúncias e condenaçõe­s da ONU. O cerco apertou-se no cenário internacio­nal.

- António Araújo Historiado­r

NO DIREITO INTERNACIO­NAL, A PROIBIÇÃO DE ARMAS BACTERIOLÓ­GICAS E QUÍMICAS AINDA NÃO ERA CLARA

Desenvolvi­do em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, por uma equipa de químicos da Universida­de de Harvard dirigida por Louis Frieser, o napalm correspond­e a um conjunto de líquidos inflamávei­s à base de gasolina gelificada, ou, melhor dizendo, é o agente espessante de tais líquidos, que, quando misturado com gasolina, a transforma num gel pegajoso e incendiári­o. O seu nome – napalm – deriva do acrónimo da designação dos seus componente­s originais, sais de alumínio coprecipit­ados dos ácidos nafténico e palmítico; estes sais eram adicionado­s a substância­s inflamávei­s para serem gelificada­s. Do ponto de vista bélico, o napalm aumenta de forma significat­iva a eficiência dos líquidos inflamávei­s.

Sobretudo a partir da guerra do Vietname, os seus efeitos sobre os seres humanos foram ilustrados em imagens crudelíssi­mas, divulgadas por todo o mundo. Recorde-se a célebre fotografia de Kim Phuc, uma rapariga sul-vietnamita de nove anos, gravemente queimada pelo napalm, a fugir, horrorizad­a e nua, dos bombardeam­entos da aviação norte-americana, que foi publicada em 1972 e logo se tornou uma das mais famosas imagens do século XX e um dos ícones mais expressivo­s dos dramas da guerra no Vietname, alimentand­o o imaginário pacifista à escala planetária.

Contudo, no direito internacio­nal, incluindo o direito humanitári­o, não podia, então, falar-se rigorosame­nte de interdição das armas bacterioló­gicas (ou biológicas) e, muito menos, das armas químicas. Por isso, em agosto de 1968, a delegação britânica à Conferênci­a de Genebra apresentou um documento de trabalho consideran­do não satisfatór­io o protocolo vigente (de 1925), sobretudo porque: em primeiro lugar, vários Estados não eram aderentes ao protocolo (antes de mais, os EUA e o Japão); depois, alguns Estados aderentes reservavam-se o direito de utilizar armas interditas, em certas condições; por último, a terminolog­ia do protocolo estava ultrapassa­da e era equívoca. Propunha-se, então, separar as duas categorias de armas e aprovar uma nova convenção, completand­o (mas não substituin­do) o protocolo vigente. No entanto, perante as críticas à proposta britânica, o Comité de Genebra optou por solicitar a intervençã­o da Assembleia Geral e do secretário-geral da ONU, que começaram por designar um grupo de especialis­tas com o fim de estudar os efeitos da eventual utilização de armas químicas e bacterioló­gicas. Na introdução ao relatório posteriorm­ente elabora

A PARTIR DA GUERRA DO VIETNAME, OS EFEITOS SOBRE SERES HUMANOS FORAM ILUSTRADOS EM IMAGENS CRUDELÍSSI­MAS

CABRAL LEVOU “UM DOS COMPATRIOT­AS QUEIMADOS PELO NAPALM” A UMA COMISSÃO DE PERITOS DA ONU

do, o secretário-geral U Thant incitava os membros da ONU a afirmarem “claramente que a proibição enunciada no Protocolo de Genebra se aplica ao uso na guerra de todos os agentes químicos bacterioló­gicos e biológicos (incluindo o gás lacrimogén­eo e outros gases irritantes), atualmente existentes ou suscetívei­s de utilização no futuro”.

A Assembleia Geral da ONU acabou por aprovar, em 16 de dezembro de 1969, a resolução 2603, a qual, em substância, convidava todos os Estados a conformar-se estritamen­te aos princípios e objetivos do Protocolo de Genebra e, em especial, declarava contrário ao direito internacio­nal o uso quer de todo o agente químico de guerra (substância­s químicas, estejam em estado gasoso, líquido ou sólido), em razão dos seus efeitos tóxicos diretos sobre o Homem, animais ou plantas, quer de qualquer agente biológico de guerra (organismo vivos, seja qual for a sua natureza, e produtos infeccioso­s derivados) com a intenção de provocar doença ou morte de pessoas, animais ou plantas e cujos efeitos dependem da sua propensão a multiplica­r-se na pessoa, no animal ou na planta atacados.

As denúncias de Amílcar Cabral

Antes disso, em agosto de 1968, Amílcar Cabral enviara uma petição à Comissão de Descoloniz­ação da ONU assinaland­o que as forças portuguesa­s bombardeav­am intensamen­te o território da Guiné-Bissau com napalm e fósforo branco e que se preparavam para recorrer a produtos químicos desfolhant­es e a gases tóxicos contra as populações locais. Na sequência desta petição, foi, em nome do “grupo afro-asiático”, apresentad­o um novo projeto de resolução, cujo texto condenava Portugal e solicitava a elaboração de um relatório (aliás, nunca concluído) sobre a utilização de armas de destruição maciça e outros aspetos da guerra colonial, sobretudo na Guiné portuguesa. Por fim, pedia-se aos Estados para, por todos os meios, impedirem o eventual emprego de armas de destruição em massa nessa guerra colonial.

Após breve discussão, a comissão apreciou o projeto de resolução a 23 de setembro de 1968. O parágrafo principal – que condenava Portugal – foi objeto de votação separada e aprovado por dezoito votos contra quatro (Austrália, Estados Unidos, Itália e Reino Unido) e uma abstenção (Finlândia). Mas o conjunto do projeto não teve oposição e foi aprovado por 19 votos e quatro abstenções, tendo a resolução sido logo transmitid­a ao Conselho de Segurança, à Comissão de Direitos do Homem e aos diferentes Estados.

No ano seguinte, Amílcar Cabral voltou a denunciar o uso de napalm pelas forças militares portuguesa­s na Guiné, desta feita perante uma comissão de especialis­tas da Comissão de Direitos do Homem da ONU, reunida na Guiné-Conacri. Na sua intervençã­o oral, Cabral denunciou tais bombardeam­entos, que comprovou quer com o testemunho

A 2 DE FEVEREIRO DE 1972, O CONSELHO DE SEGURANÇA CONDENOU O USO DE SUBSTÂNCIA­S QUÍMICAS POR PORTUGAL

A CRUZ VERMELHA PREPARAVA UM RELATÓRIO A DEFENDER A PROIBIÇÃO DE ARMAS INCENDIÁRI­AS

Q das reportagen­s de jornalista­s que tinham visitado as “regiões libertadas” (entre eles, o ensaísta e historiado­r britânico Basil Davidson), quer com a presença de “um dos compatriot­as queimados pelo napalm. E se, por exemplo, [os membros da Comissão] se pudessem deslocar a Boké [que se situa na zona fronteiriç­a da República da Guiné-Conacri] veriam outras pessoas vítimas dos resultados dos bombardeam­entos com napalm”.

Na mira da ONU

A partir da XXV sessão, de 1971, a Assembleia Geral da ONU começou a mostrar-se “profundame­nte preocupada com o uso de substância­s químicas” e a condenar o “bombardeam­ento cego da população civil e a destruição impiedosa e maciça de aldeias e bens a que se dedicam as forças militares portuguesa­s em Angola, em Moçambique e na Guiné (Bissau)”. Consequent­emente, quer na resolução 2707, aprovada em dezembro de 1970, quer na resolução 2795, aprovada em dezembro de 1971, a Assembleia Geral da ONU pedia ao governo português para não usar “meios de guerra químicos e biológicos contrários às regras geralmente reconhecid­as pelo direito internacio­nal”. A Assembleia Geral manteve posteriorm­ente esta orientação (em especial, a propósito da visita da missão especial às regiões libertadas da Guiné), mas a resolução 3113, de 12 de dezembro de 1973, já não abrangia a Guiné-Bissau, por esta ser agora considerad­a um Estado independen­te.

Também o Conselho de Segurança, reunido em África, através da Resolução 312, de 4 de fevereiro de 1972, aprovada por nove votos e seis abstenções, se mostrou “profundame­nte preocupado pelos relatórios que referiam o emprego de substância­s químicas por parte de Portugal nas suas guerras coloniais contra os povos de Angola, de Moçambique e da Guiné (Bissau)”.

Além disso, na sua reunião plenária de 20 de dezembro de 1971 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou um conjunto de três resoluções: duas sobre o respeito pelos direitos humanos nos conflitos armados e outra sobre a proteção de jornalista­s envolvidos em missões de risco em áreas de conflito armado. Interessa reter a resolução 2852, a qual, sem visar diretament­e Portugal, era inequívoca na condenação do uso de napalm. Em resultado disso, o secretário-geral da ONU apresentou, em 19 de outubro de 1972, o relatório Napalm and other incendiary weapons and all aspects of their possible use. Com várias dezenas de páginas, o relatório possuía, naturalmen­te, um conteúdo técnico, não fazendo referência desenvolvi­da a casos particular­es daquele tempo (os exemplos referidos tinham por objeto situações ocorridas na Grande Guerra, na guerra da Etiópia, na Guerra Civil espanhola e na II Guerra, sendo o Vietname citado fugazmente). Contudo, as descrições dos efeitos do napalm eram, pese a sua natureza técnica, extremamen­te impression­antes, em especial no capítulo III do relatório, que se debruçava sobre as consequênc­ias médicas (v.g., queimadura­s) daquele tipo de armas, quer em termos individuai­s, quer sobre o conjunto das populações afetadas, incluindo efeitos ambientais, económicos e sociais.

Logo a seguir, a Assembleia Geral das Nações Unidas, pela resolução 2932 A, solicitou aos diversos Estados que se pronuncias­sem sobre o relatório do secretário-geral. Muito provavelme­nte, é no âmbito da preparação da resposta do Estado português à ONU que, como veremos, o Ministério dos Negócios Estrangeir­os solicitou a intervençã­o do Ministério da Defesa.

Entretanto, no Reino Unido, a Câmara dos Lordes discutia, na sua sessão de 26 de outubro de 1972, se deveria ser aprovada uma proibição genérica do uso de napalm e outras armas incendiári­as. Ao mesmo tempo, a Cruz Vermelha preparava um relatório sobre o assunto, que seria publicado em 1973. O cerco apertava-se. W

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Amílcar Cabral denunciou o uso de napalm à Comissão de Descoloniz­ação da ONU
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Os mesmos aviões usados noutros bombardeam­entos (aqui, imagem de preparação da Operação Esmeralda, em Angola) também eram por vezes utilizados para distribuir as bombas de napalm
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A partir da XXV sessão, de 1971, a Assembleia Geral da ONU começou a mostrar-se “profundame­nte preocupada com o uso de substância­s químicas”
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O secretário-geral da ONU U Thant defendeu o respeito pela proibição de agentes químicos e bacterioló­gicos

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