Seis escolhas do nosso crítico que tem de conhecer
Nas escolhas do crítico para a primavera, há um fã de Hitler que ganhou o Nobel, um livro que adverte para o regresso, hoje, da ultradireita e o clássico da distopia totalitarista, 1984.
O GIGANTE perdido da literatura americana, como é conhecido William Melvin Kelley (1937-2017), chegou finalmente à edição portuguesa. Depois da morte do autor, Um Tambor Diferente, o aclamado romance de estreia, tem sido reeditado em todo o mundo. Kelley, que também foi professor de escrita criativa, deixou uma obra parcimoniosa: cinco títulos, publicados entre 1962 e 1970. Mesmo oriundo de Harvard e vivendo em Nova Iorque, onde o comparavam a Faulkner e James Baldwin, era complicado um negro impor-se no milieu literário dos Estados Unidos. Isso explica que tenha vivido quase uma década entre Paris e Roma, radicando-se em 1968 na Jamaica. Escrito quando a luta pelos direitos civis marcava a agenda, Um Tambor Diferente é o relato vibrante da rejeição, por parte de Tucker Caliban (o protagonista), das iniquidades do Sul profundo. Após salgar as terras, abater o cavalo e deitar fogo à casa onde vivia com a mulher grávida, Tucker parte para o Norte, decisão que desencadeia o êxodo da comunidade negra. A originalidade reside no facto de ser narrado do ponto de vista dos brancos.
A reedição de Fome, do norueguês Knut Hamsun (1859-1952), traz de volta um autor controverso. Admirador de Hitler e Goebbels, racista confesso, colaborador nazi, foi julgado e condenado por traição. Além de romances e contos, escreveu poesia, ensaios e panfletos e recebeu o Nobel da Literatura em 1920. O domínio do fluxo de consciência acentua o caráter autobiográfico de Fome, o seu primeiro livro (1890), elogiado por Gide, Thomas Mann e outros. Liliete Martins tradu-lo diretamente do norueguês.
Escrito para a BBC Radio, Estilicídio, do galês Cynan Jones (n. 1975), são esses 12 episódios em
Tucker Caliban, o protagonista de Um Tambor Diferente, abate o cavalo e deita fogo à casa onde vivia com a mulher grávida no Sul da América antes de partir para o Norte, desencadeando o êxodo da comunidade negra
forma de livro. Estilicídio significa “queda de água gota a gota”. Série de antecipação sobre como sobreviver a uma crise climática de proporções bíblicas, coloca o leitor perante a possibilidade da falta de água. A ação centra-se numa grande metrópole, devastada por uma sucessão de secas e enchentes. Uma das alternativas consiste em rebocar um icebergue do Ártico. Falta porém consenso entre quem manda, a população, os ambientalistas e, como é de regra, os terroristas, que também entram na história. Quase parece um guião televisivo.
É sempre gratificante voltar ao italiano Cesare Pavese (1908-1950). Poeta, ficcionista, ensaísta, diarista, crítico, tradutor de Joyce, Melville e outros, suicidou-se aos 41 anos, poucos meses depois de receber o Prémio Strega e de publicar A Lua e as Fogueiras, o livro derradeiro. Narrado na primeira pessoa pela voz de um emigrante regressado da América após o fim da Segunda Guerra Mundial, demonstra a impossibilidade de resgatar o passado. Tudo rui à sua volta, e nem a fortuna acumulada desfaz a condição de “bastardo”. Uma elegia seca e amarga dos lugares e das pessoas da remota infância.
Quando Orwell (1903-1950) escreveu 1984, estava longe de supor o impacto que o livro teria nas gerações vindouras. Agora que a obra caiu em domínio público, sucedem-se as reedições. A obra recentrou a distopia em literatura, na medida em que o seu precedente mais célebre, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, não resistiu à usura do tempo. Pelo contrário, o Grande Irmão (o Big Brother) faz parte do imaginário contemporâneo. Escrito com a intenção de denunciar o totalitarismo estalinista, a tese do controlo total do Partido é o leitmotiv do romance. Gonçalo M. Tavares assina o prefácio.
Numa altura em que avançam forças extremistas em democracias consolidadas, convém ler O Regresso da Ultradireita, de Cas Mudde (n. 1967), o cientista político holandês que tem escrito sobre as várias formas de populismo. Analisando a rapidez com que partidos tradicionais, outrora conservadores, interiorizaram o discurso de homens como Trump ou Bolsonaro, Mudde faz um tour d’horizon às franjas radicais que controlam os governos de vários países, dentro e fora da Europa. A quarta vaga da ultradireita é o enfoque do livro. Porque é que há 20 anos as opiniões públicas reagiam indignadas à xenofobia e hoje reagem com um bocejo à sua “normalização”? W
Poeta, ficcionista, ensaísta, diarista, crítico e tradutor, o italiano Cesare Pavese suicidou-se aos 41 anos, pouco depois de publicar A Lua e as Fogueiras