Carlos Rodrigues Lima
Durante anos, muita gente andou a bater à porta errada: afinal, segundo o juiz, o “dono disto tudo” era Carlos Santos Silva e não Ricardo Salgado. A narrativa de Ivo Rosa permite outra conclusão: Zeinal Bava foi um “totó” quando devolveu 17 milhões de euros
Os paradoxos criados por Ivo Rosa
UM DOS MAIORES PROBLEMAS COM QUE QUALQUER ALDRABÃO SE DEBATE ao tentar reescrever uma história prende-se com a ligação entre os detalhes. A vontade de alterar a narrativa esbarra, na maioria dos casos, na colagem dos pormenores às personagens. Foi isto mesmo que aconteceu com a Operação Marquês: o juiz Ivo Rosa quis ficar na história, reescrevendo a narrativa e o encadeamento dos factos e personagens. Resultado: um completo nonsense.
Uma das primeiras consequências do despacho diz respeito a Zeinal Bava. Considerado durante anos como o melhor CEO da Europa, quiçá do mundo, a esta hora o antigo administrador executivo da PT deve ainda estar com sequelas do ataque de fúria que teve após a decisão instrutória da Operação Marquês, que acabou por revelar a sua má decisão de gestão em matéria de finanças pessoais. Então não é que o antigo mago da gestão da Portugal Telecom foi, em 2017, a correr devolver 17 milhões de euros à massa insolvente da Espírito Santo International (ESI) para tentar evitar uma acusação de corrupção, mas, se tivesse ficado quieto, nas próximas semanas ainda poderia desfrutar do dinheiro?
Não pense, caro leitor, que o que acabou de ler é um absurdo. Não é. As suspeitas de corrupção (em que se incluíam os tais 17 milhões de euros) contra Zeinal Bava e Henrique Granadeiro foram arquivadas pelo juiz Ivo Rosa, que ordenou o levantamento das apreensões e arrestos no processo. Ou seja, mesmo que aquela quantia tivesse ficado arrestada, o antigo gestor poderia dispor da mesma nas próximas semanas, uma vez que um eventual recurso do Ministério Público contra a decisão de Ivo Rosa pode não suspender o levantamento das apreensões e arrestos de património.
O mundo do processo penal é complicado, mas o juiz Ivo Rosa decidiu complicá-lo ainda mais. Se o magistrado judicial se limitasse a não pronunciar os arguidos por falta de indícios ou prescrição dos crimes, tudo seria mais simples. Recurso e depois logo se via. O problema é que, talvez acometido por um incontrolável desejo de assumir o papel principal no processo, Ivo Rosa decidiu dar outro final ao papel de Carlos Santos Silva, até agora suspeito de corrupção passiva, fruto da suspeita de ser o testa de ferro de Sócrates. Afinal, ao contrário do que se julgava, não era Ricardo Salgado que mandava nisto tudo, mas sim Carlos Santos Silva. Muita gente terá andado a bater à porta errada.
Só que o juiz viu corrupção ativa, transformando Santos Silva no principal corruptor de Sócrates. Problema: trata-se de uma alteração substancial dos factos. Nem Santos Silva nem Sócrates alguma vez foram interrogados neste contexto. Mais recursos a caminho.
Próxima etapa: a falsificação de documentos. Neste caso, Ivo Rosa considerou que Sócrates e Santos Silva são os responsáveis pelos contratos fictícios celebrados com António Peixoto (o autor do blogue Câmara Corporativa) e Domingos Farinho (consultor de Sócrates para a redação da tese de mestrado em Paris). Problema: todos os envolvidos vão a julgamento, menos quem assinou os contratos, o arguido Rui Mão de Ferro. Em tese, se um dia estes factos chegarem a julgamento tal como estão, teremos mais um berbicacho jurídico para resolver. Tudo isto são detalhes, poder-se-á dizer, mas num processo-crime fazem toda a diferença. As quase sete mil páginas do despacho de Ivo Rosa contêm alçapões dissimulados, os quais ou bem que são resolvidos ou mais vale declarar, quanto antes, a morte da Operação Marquês, poupando-nos a todos mais uns anos de um espetáculo de simulação de justiça. Por falar nisto, depois da decisão, nem o Conselho Superior da Magistratura nem a Procuradoria-geral prestaram qualquer esclarecimento sobre o despacho e o que se segue. A Justiça é assim: não tem de prestar contas a ninguém. W