Ângela Marques

Vivi para isto: hoje, quando desligar este portátil e deixar de ser útil ao meu país, vou realizar e interpretar o meu próprio episódio de Seinfeld (queria dizer Friends mas o Google não deixa – apesar de contemporânea, não era fã e percebo agora que o único vizinho do guião era um senhor Heckles, um idoso que só reclamava do barulho e que, talvez por isso, foi morto pelos argumentistas na segunda temporada).

Quando baterem as horas combinadas, estarei atrasada mas 10 minutos depois hei de descer dois andares e bater à porta de um vizinho. Se nada falhar neste roteiro, ele há de me abrir a porta com um sorriso (que não verei por causa da máscara) e a garantia de que estarei segura porque terá a varanda preparada para deixar entrar o vento e sair o perigo.

Há de haver cerveja para comemorar, como diria o sambista Arlindo Cruz, porque a partir de hoje este prédio vai ser o nosso lugar. E, gratos como dois emojis, até havemos de brincar com o facto de esta pandemia nos ter baixado tanto as expectativas que uma varanda há de subir na vida e ser promovida a terraço e, com alguma boa vontade, pela hora do jantar, mostrar-nos já o holograma de uma esplanada.

E porque é que isto é um sonho tornado realidade? Porque é que como adorar os filhos dos outros: podemos brincar à vontade com eles, até arreliá-los como se tivéssemos a idade deles, e no fim eles não vêm connosco para casa. Entre todas as vantagens de ter um amigo como vizinho (sendo o “dois dedos de conversa” a qualquer dia e hora, o “também ficaste sem luz?” em momentos de aperto e o “tens jantar para mim?” quando tudo correr mal os que ponho no pódio), a mais interessante será que nem vamos precisar de viver um com o outro para vivermos juntos.

É que eu passei anos a acreditar que viver com amigos seria o pináculo da felicidade. E hoje eu sei que os amigos também nos alugam. Felizmente para mim, este amigo não me alugou – mas arrendou uma casa no meu prédio, que agora é nosso, e assim aprofundou dois andares o sentido da expressão “estou cá para ti”. W

ENTRE AS VANTAGENS DE TER UM AMIGO COMO VIZINHO A MELHOR É QUE NÃO TEMOS DE VIVER UM COM O OUTRO PARA VIVERMOS JUNTOS