O HOMEM DAS ONDAS GIGANTES
Ramon Laureano é responsável pela segurança dos surfistas que se arriscam nas vagas gigantes. O brasileiro acaba de ajudar o filho a bater um recorde mundial.
Ramon Laureano é especialista em resgatar surfistas. Com a ajuda dele, o filho surfou uma onda de 30,9 metros na Nazaré
Foi uma manhã confusa: às 6h da madrugada estavam já a preparar-se para um dia histórico. Uma equipa de filmagens acompanhava-os para registar em documentário uma ondulação que se previa épica, naquele dia 29 de outubro de 2020, no canhão da Nazaré. “Fomos das últimas equipas a entrar na água”, conta à SÁBADO Ramon Laureano, um dos pioneiros em Portugal a rebocar e a fazer resgate de surfistas nas ondas gigantes, e pai do atleta de 18 anos, António Laureano, que poderá vir a inscrever o seu nome no Guinness – com uma onda de 30,9 m (ver caixa).
Nessa sessão matinal, “o António apanhou uma primeira onda e caiu”. Para um pai que reboca o filho para um verdadeiro abismo, o momento é de alta tensão. “Há pressão adicional porque ele ainda é um miúdo, e isso pesa muito no momento de decidir qual a onda a apanhar”, explica Ramon, que treina o rapaz no mar gigante desde os seus 13 anos. Uma paixão que muitas vezes se traduz na ansiedade do pai.
“Perguntei-lhe se queria apanhar a última daquele set [conjunto de ondas seguidas] e ele disse que sim. Quando o deixei, a parede [onda] levantou de forma assustadora e deixei de o ver. Só ouvia pelo rádio ‘está na onda’. Parecia que nunca mais acabava.” A dirigir-se perigosamente para as rochas, o pai só respirou de alívio quando lhe disseram via rádio que o resgate fora um sucesso. “A adrenalina foi tal que decidimos vir embora”, recorda o pai.
Natural de Santa Catarina, no Sul do Brasil, Ramon Laureano, 49 anos, chegou a Portugal em 1998 para visitar a Expo. Já na altura conhecia as técnicas do surf e resgate em ondas
grandes numa modalidade conhecida por tow-in – surf com auxílio de uma mota de água. Tinha percorrido a América do Sul em busca das ondas grandes, quis mudar-se para o Havai, mas a viagem trouxe-o para Portugal. “Não consegui visto para o Havai e uns amigos falaram-me de vários spots em Portugal.”
Só morremos uma vez
Mais de cinco anos antes de o canhão da Nazaré se tornar um ponto de passagem obrigatório, Ramon convidou um tenente da Marinha Americana para dar uma palestra no Porto sobre resgates em mota de água. Esse militar acabou por ser convidado a dar formação à Marinha Portuguesa, que acabara de comprar várias motas de água. Ramon participou na formação. “Desde aí comecei a treinar portugueses para estas ondas. Na altura procurávamos as condições perfeitas, mar sem vento, ondas limpas. Já existia o canhão, mas não sabíamos muito do fenómeno. Hoje as coisas são diferentes, vamos para o mar em condições extremas, ninguém quer saber se há vento, o importante é o tamanho da onda.” Como o tow-in era proibido em Portugal, costumava procurar ondas longe do olhar das autoridades portuguesas, que concederam a exclusividade desta modalidade à Nazaré.
Hoje Ramon vive entre a Ericeira, onde trabalha como construtor de pranchas na marca Pólen, e a Nazaré, com a família. No meio de tantas saídas para o mar já viveu momentos de perigo, até em ondas mais pequenas, apesar de garantir que é sempre possível controlar os riscos. Há três anos apoiou um amigo que decidira voltar ao surf. “Fui com ele e com o meu filho. Na linha das pedras, ele caiu a meio. Quando me disseram pelo rádio que tinha caído acelerei para o inside – zona de rebentação mais próxima da praia, e totalmente imprevisível –, mas ele não levantou a mão. Pensei que estava inconsciente”, recorda.
Trata-se de um momento decisivo: se o resgate não for feito no imediato, o mais provável é que a rebentação arraste o surfista mais de 50 metros. Ramon gritou pelo nome do surfista e só quando parou a mota distinguiu um braço a erguer-se no meio da espuma. “Nesse momento vi uma sombra gigante a tapar-nos, nem olhei, acelerei a fundo, a mota sempre presa na espuma, na direção da praia. A 100 metros, quando já via a areia, a onda apanhou-nos e virou a mota. Quando uma onda faz sombra já não é uma parede a formar, é sinal que vai fechar e eu nem olhei para trás. Na praia tive de lhe dizer: ‘Se cais levantas o braço e acenas.’ São detalhes decisivos. Já perdi motas a chegar na areia, mas nunca fiquei sem nenhuma. É muito comum acontecer na Nazaré, por vezes até na praia a mota se pode partir.”
Num desporto tão extremo, o perigo e a adrenalina são magnéticos para quem procura ondas de 20 ou 30 metros. A ideia é conseguir dropar a onda e sair. Só assim é considerada uma onda completa. Um dos erros mais comuns é tentar prolongar a onda quando ela está a fechar, o que normalmente resulta em queda. É aqui que acontecem os acidentes de mota de água. A comunicação entre os vários elementos da equipa é essencial: em terra, as informações sobre as ondas e a localização dos surfistas são passadas via rádio para o rebocador e resgatador. É na mão destas três pessoas que está a vida do surfista.
Nos últimos anos, Ramon tem surfado pouco e trabalhado mais nos resgates e acompanhado a carreira do filho como parceiro de equipa. Casou na Nazaré e tem três filhos: António, surfista, a mais nova, Maria Laura, e Afonso. Há uns anos teve a sua maior batalha: perdeu uma filha de 7 anos com um tumor na cabeça. “Já fui muito criticado por levar o meu filho para o mar, diziam que eu era maluco por o levar para as ondas, mas o importante é fazer o que eles gostam e apoiá-los. Não é uma onda grande que o vai levar. Nós não vivemos só uma vez, como se diz. Morremos uma vez.” W
“ACELEREI A FUNDO. A 100 METROS, QUANDO JÁ VIA A AREIA, A ONDA APANHOU-NOS E VIROU A MOTA”