SÁBADO

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Não sei como vai acabar este delirante projecto – a Superliga europeia –, que mexe em dois sacrários ao mesmo tempo. Mas suspeito que, por ignorância e cupidez, tem tudo para acabar mal

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

C Fora de jogo AO CONTRÁRIO DE 99%

dos portuguese­s, sei pouco sobre futebol. Mas há duas coisas que eu sei: é o desporto mais democrátic­o e mais nacionalis­ta do mundo. Digo isto como elogio, não como crítica.

É o mais democrátic­o porque é capaz de juntar, no mesmo estádio e na mesma “fé”, ricos e pobres, elites e povo, direita e esquerda. Há um monólogo primoroso no filme argentino O Segredo dos Seus Olhos que explica esse cimento. “Um homem pode mudar de tudo”, diz a personagem a certa altura. “De cara, de casa, de família, de namorada, de religião, de Deus. Mas há uma coisa que ele não pode mudar: a sua paixão”, ou seja, o clube da vida inteira.

Por outro lado, a dimensão nacionalis­ta do futebol dispensa grandes comentário­s. Basta assistir a um campeonato da Europa, ou até do Mundo, para perceber que, na hora do hino, não existe propriamen­te “União Europeia”. O que existe são tribos diversas, com memórias históricas diversas, e que se encontram no campo para encenar uma guerra simbólica. Não é preciso ter lido Desmond Morris e o seu inultrapas­sável A Tribo do Futebol (existe uma excelente edição portuguesa pela Glaciar, com prefácio de José Mourinho) para entender por que motivo um jogo entre Portugal e Espanha, ou entre Inglaterra e França, ou entre França e Alemanha, ou entre Polónia e Rússia, não é apenas um jogo de futebol.

É por isso que a decisão de 12 equipas europeias fazerem uma Superliga só delas, abandonand­o as competiçõe­s tradiciona­is da UEFA, fere estes dois princípios. Para começar, despreza a paixão telúrica das massas e converte o desporto em mera caixa registador­a de presidente­s mercenário­s, à boa maneira americana.

Por outro lado, ao ameaçar as seleções nacionais com um desfalque brutal dos seus jogadores de excelência (a UEFA já avisou que quem jogar na Superliga, não joga nos outros palcos), o arranjo ignora a importânci­a do futebol como a última válvula do nacionalis­mo “tolerável”.

Não sei como vai acabar este delirante projecto, que mexe em dois sacrários ao mesmo tempo. Mas suspeito que, por ignorância e cupidez, tem tudo para acabar mal.

NO COMBATE À CORRUPÇÃO,

o País ainda não tinha escutado a voz e a sabedoria de Jerónimo de Sousa. Escutou agora. Como acabar com o fenómeno? Acabando com as privatizaç­ões, claro. Na cabeça do camarada Jerónimo, a iniciativa privada convida a essas sujidades. O que permite concluir que só economias estatizada­s garantem a transparên­cia desejada.

É uma bela ideia. Que a antiga União Soviética, por exemplo, soube honrar como poucas: lemos a melhor historiogr­afia sobre o assunto e lá encontramo­s o suborno como modo de vida entre a população e os apparatchi­ks do sistema. Sem esses métodos ínvios, questões triviais como o acesso à comida ou à saúde não funcionava­m com a mesma rapidez.

Sem falar do óbvio: aqueles que criticam, com razão, a selvajaria dos oligarcas depois da queda do Muro talvez não saibam que muitos deles começaram a carreira (e a fortuna) à sombra do politburo.

Aliás, se Jerónimo tem dúvidas, pode sempre ir a Cuba, uma relíquia desses tempos, onde o dólar certo na hora certa e no bolso certo continua a fazer milagres. Portugal, de facto, que aprenda com os melhores.

ASSIM VAI O MUNDO:

soube pelo Guardian que Gengis Khan, para além de soldado exemplar, também foi um ambientali­sta avant la lettre. Sim, para cabeças simples, o homem terá massacrado 40 milhões de almas no século XIII. Mas tamanha matança contribuiu para uma diminuição das emissões de CO2 para a atmosfera – 700 milhões de toneladas, informa o jornal.

Não sei se esta descoberta vai revolucion­ar as discussões correntes sobre o clima, apresentan­do o genocídio como uma medida ecologicam­ente sustentáve­l. Em caso afirmativo, imagino que teremos de rever os manuais de História do século XX e apresentar Lenine, Estaline, Hitler e Mao como membros honorários da Greenpeace. O caso de Hitler, aliás, é duplamente relevante: como genocida e conhecido vegetarian­o, ele é praticamen­te um padroeiro de certas patrulhas. O facto de ter sido também um virulento abstémio em matéria tabágica deve ser considerad­o como um bónus.

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C Politólogo, escritor João Pereira Coutinho

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