JOÃO PEDRO GEORGE
OS CHEIROS SÃO a percepção mais secreta que podemos ter das coisas. São o espaço da interioridade e da intimidade, do afecto e do desejo amoroso, da infância e das recordações involuntárias.
A nossa memória olfactiva é mais forte do que a memória visual ou auditiva. Há odores que entram no nosso cérebro e não nos abandonam durante meses, anos, décadas, a vida inteira.
Cheiros em que nos reconhecemos no passado, que distinguimos desde os primeiros alvores da memória e que, por isso mesmo, têm qualquer coisa de reconfortante, que deflagram em nós aqueles processos regressivos que inspiraram Marcel Proust nos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido.
Que cheiros me chegam da meninice e da juventude, em que às vezes, de um momento para o outro, tenho a ilusão de tropeçar?
O cheiro a loção de barba do meu padrasto. O cheiro adocicado de sacristia e santidade, quando me levavam à missa. O cheiro a laca do cabelo da minha avó Judite (que me sufocava, principalmente de manhã cedo). O cheiro da Praia dos Pescadores, em Cascais, que vinha com o vento e subia pela Rua dos Navegantes. O cheiro do cortinado cheio de pó e humidade da casa da Rua Rosa Araújo, quando cheguei de Moçambique em 1975. O cheiro sadio dos pinheiros da Beira Alta, que sorvia à janela no escuro da noite, na aldeia do meu avô António Marques, padeiro e campeão nacional de boxe. O cheiro a roupa acabada de engomar pela senhora Maria (que se enforcaria no quarto, depois da morte da minha tia-avó com quem vivera toda a vida).
Aquele cheiro específico a coisas velhas, sem uso e sem vida, de uma casa na Avenida Álvares Cabral, onde os meus pais jantavam todas as quintas-feiras. O cheiro enjoativo à cebola do refogado do frango de caril, que flutuava no ar nos almoços de domingo, na casa de Paço d’Arcos, onde todos éramos retornados.
O cheiro a velório de certas flores da igreja São João de Deus, na Praça de Londres, quando o meu saudoso irmão morreu (como é que se recupera da morte de um irmão? Nunca nos recuperamos, vivemos com ela, amanhece connosco quando acordamos).
O cheiro a farmácia, a remédios e a certas pomadas no quarto da minha avó Glória, pouco antes de morrer com cancro. O cheiro do amoníaco e dos líquidos de limpeza dos corredores do Liceu D. Filipa de Lencastre, que me aturdia e quase me fazia cambalear.
O cheiro a função pública que provinha de alguns móveis da antiga biblioteca do Palácio Foz, onde passei horas ininterruptas a ler bandas desenhadas e os romances de John Steinbeck, Somerset Maugham, Jack London, Virginia Woolf e George Orwell. O cheiro pujante a café acabado de moer da pastelaria Alsaciana, na Rua da Escola Politécnica.
O cheiro a urina acumulada em algumas esquinas nocturnas do Bairro Alto ou o cheio a atmosfera abafada e tépida das Primas, do Clandestino, das Catacumbas, do Estádio ou do Gingão, nomes de tascas hoje infelizmente extintas (a escolha dos nomes, no comércio, são pormenores importantes, são um indicador das aspirações e pretensões de uma sociedade ou de um grupo social, da sua maneira de ver o mundo e do seu nível de realidade).
O cheiro do meu próprio suor (como notou Cícero, o nosso cheiro quase nunca nos cheira mal), quando treinava karaté Shotokan no Lisboa Ginásio, em frente do café O Preto dos Anjos.
O cheiro a comida de várias nacionalidades consumida com talheres de plástico, quando fui fazer o mestrado no Goldsmith’s College, em Londres (que não terminei, porque numas férias de Natal me apaixonei em Lisboa por uma mulher que me dizia “sim, mas não”).
Os cheiros – já vocês vêem! – são expressões essenciais da nossa identidade, são aquilo que a todo o instante nos aparece, através da sucessão dos tempos, como paradoxalmente inalterável e subsistente.
O olfacto é o único sentido que conhece o segredo das nossas vidas múltiplas, é o lugar da memória onde percebemos a similitude das coisas diferentes ou dis
semelhantes, onde a incerteza e as bifurcações da identidade ganham coerência e se mantêm fiéis às suas origens.
Os cheiros recobrem a nossa personalidade como uma rede em forma de teia de aranha, cujos fios delicados e subtis estão constantemente a nascer, a desaparecer e a renascer.
Na verdade, o nariz determina grande número das nossas interacções quotidianas. Apesar de permanecerem no estado fluido e de, na sua efemeridade, fugirem à codificação, os cheiros são sumamente importantes para a existência dos indivíduos.
Podem ter mais consequências na sociabilidade que a visão ou a audição, pois estão na origem de muitas das nossas antipatias e simpatias instintivas (as reacções subjectivas às impressões olfactivas são mais vigorosas que as dos outros sentidos).
Muitos contactos sociais surgem da troca de olhares e do conhecimento que adquirimos imediatamente dos outros através do seu aspecto, da sua fisionomia, ou do som das vozes que entram no nosso pacato par de ouvidos.
Porém, há mais pessoas que estão presas umas às outras pelos laços indissolúveis dos odores mútuos do que por aquilo que se mete pelos olhos ou pelas orelhas.
Há certos cheiros que possuem uma rara densidade, muito maior do que as palavras, que voam quando saem da boca. Ao contrário destas – “palavras, leva-as o vento” –, esses cheiros não se volatilizam facilmente, conseguem pairar durante muito tempo numa penumbra discreta do nosso cérebro e acender-se de repente (como o clarão rápido de um trovão que, por segundos, ilumina o nosso quarto às escuras).
O cheiro fornece-nos uma base sensível para a selecção das nossas relações e para a determinação das nossas distâncias. Exerce um vínculo que une estreitamente algumas pessoas ou cria conflitos insanáveis que anunciam rupturas (não é possível alegar nada em defesa de um mau cheiro – excepto talvez o suor do trabalho –, daí que viver com uma pessoa que tresanda seja uma das mais pesadas e heróicas formas de compromisso).
Na desarrumação da vida urbana, as pessoas com narizes particularmente delicados ou sensíveis aos odores (os olfactos grandes de perdigueiro) tiram desse refinamento mais desgostos que alegrias ou prazeres.
Não é exagero dizer-se que o capitalismo é um sistema que nos cerca e nos asfixia com os cheiros que produz (o McDonald’s será o epítome dos seus liames tentaculares). Cheiros que nos indicam que estamos no mundo social e que o mundo social está igualmente em nós.
Os cheiros recordam-nos que somos reais precisamente na medida em que somos feitos de fluidos, salivas, suores, secreções, ejaculações, humores.
Os seres humanos não são apenas as suas ideias, crenças e convicções. São também os cheiros que arrastam consigo, como histórias que se repetem e que detêm a chave do enigma que levam dentro. São a prova, superiormente filosófica (com perdão da filosofia), de que existe algo que comanda as suas vidas.
Deturpando intencionalmente uma frase de Karl Marx (o meu tipo preferido de deturpação), os cheiros não são a paixão do cérebro mas o cérebro da paixão. W