SÁBADO

Ângela Marques

- ÂNGELA MARQUES

Primeiro vieram duas traças e eu não as matei – não fui capaz, não sou capaz, não nasci para sniper e ver documentár­ios sobre a amizade possível entre um homem e um polvo não ajuda. Esgotado o diálogo com as traças – que tentei –, mostrei-lhes o caminho da janela com uma vassoura e elas, para minha surpresa, aceitaram a ideia de uma roadtrip até à Nova Zelândia, não sem antes fazerem um voo do tipo Red Bull Air Race pela sala, roçando-me a dada altura o nariz.

Depois veio uma melga e eu, claro, não a quis matar, o que significou aceitar que ela tinha alugado o meu ouvido esquerdo para dar um concerto de violino desafinado. Isto até ao momento em que ensaiei bater-lhe palmas pelo arrojo e o meu entusiasmo provocou danos colaterais no espetáculo (a solista morrera – com glória, mas sem sinais vitais).

Foi só ontem que percebi porque é que o meu quarto andar em Entrecampo­s me parece ultimament­e o chão do Pantanal. É quase verão. Estamos outra vez aqui, neste mês de abril, o mês em que os dias começam a esticar-se e o lusco-fusco dura um Carnaval. E se é abril isso quer dizer que já, já, é maio e logo a seguir vem junho.

Tenho por este mês-fronteira, em que tanto chove como se um cano tivesse rebentado no céu quanto faz aquele sol que descasca a pele, um grande apreço. Lembro-me – apesar de me soar a 100 anos a.C. (antes do Covid) – daqueles meses de abril em que, ao 25º dia, passávamos a manhã na praia, a tarde na avenida e o início da noite de volta de uma travessa de caracóis (que comia porque não tinha de os matar – e cabe aqui dizer que, pensando nisso agora, torço para que nenhum estagiário da Netflix se ponha com ideias).

Neste segundo mês de abril d.C. eu já não peço nem praia, nem avenida, nem um bando de amigos a planear a revolução numa esplanada. Peço que parem de dizer que vai ficar tudo bem, porque um ano disto já deu tempo para perceberem que a humanidade correu mal. Digam-me só que vai ficar tudo mais normal. Mesmo que eu nunca mais seja capaz de comer polvo à lagareiro. W

ESTAMOS OUTRA VEZ AQUI, NESTE MÊS DE ABRIL EM QUE OS DIAS SE ESTICAM E O LUSCO-FUSCO DURA UM CARNAVAL

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