Carlos Rodrigues Lima
AO CONTRÁRIO DO QUE MUITA GENTE POSSA JULGAR,
o negacionismo não entrou de rompante na sociedade portuguesa com a Covid-19. O negacionismo tem sido, ao longo dos anos, uma das formas encontradas para evitar encarar os problemas com a atenção e as mudanças devidas. Este tipo de negacionismo é particularmente evidente na Justiça. Os problemas estão identificados há anos, escreveram-se livros, fizeram-se congressos, pactos de regime e outros projetos de pacto. Tudo em vão. Porque, ao contrário de outras áreas, como a Saúde e a Educação, a Justiça não tem rendibilidade política. Os sucessivos governos entretêm-se a fazer de conta que fazem alguma coisa, sempre anunciada com o rótulo de “reforma”, quando, se virmos bem, tudo se mantém na mesma desde há, pelo menos, uns 20 anos.
O grande caldo de cultura do sistema judicial – e a raiz de muitos problemas –éacultur ado segredo. Há bem poucos anos–qualquer jornalista desta área atesta com toda a certeza isto mesmo – saber o nome de um juiz ou de um procurador de um determinado processo era uma tarefa para quase um dia de trabalho. As alterações (à época também lhe chamaram “reforma”) às leis penais em 2007 vieram consagrar a publicidade como regra do processo penal. Porém, acrescentaram-lhe tantas exceções que, hoje, as tais exceções são a regra com um conteúdo muito elástico, às vezes desafiando as leis do tempo.
Bem pode o poder político mudar leis e regulamentos, porque o sistema judicial encarregar-se-á de os adaptar às suas conveniências, fazendo as suas próprias leis, como no caso dos prazos do inquérito: a lei estabelece limites claros, objetivos, porém a jurisprudência dos tribunais tem entendido que quando se lê “18 meses”, tal não quer dizer “18 meses”, mas é apenas uma mera indicação, uma orientação, no fundo, não é para levar a sério. Qualquer devedor apreciaria beneficiar de tal interpretação quando lhe batem à porta a cobrar uma dívida.
Nos conselhos superiores – juízes e Ministério Público – impera também uma cultura de segredo. Os processos disciplinares são confidenciais, as atas das reuniões são confidenciais, tudo o que lá dentro se passa foge ao escrutínio público (e ainda se diz que os tribunais administram a Justiça em nome do povo) e da Assembleia da República, onde estão os representantes do povo, eleitos democraticamente. Só no último ano, houve, pelos menos, dois concursos abertos pela Procuradoria-Geral da República que não tresandassem minimamente a favorecimento: o Procurador Europeu, os coordenadores de comarca. Consequência? Nenhuma. É perante exemplos como estes que devemos apoiar um qualquer presidente de câmara quando é constituído arguido por ter dado um emprego ao filho de um amigo.
O velho brocardo “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” não tem sido mais do que a manifestação do negacionismo político para evitar os problemas que há anos se arrastam e que – uma vez mais, a reboque de um caso concreto – tiveram a sua epifania com a Operação Marquês e a “descoberta” de que só existem dois juízes no Tribunal Central de Instrução Criminal com perfis completamente distintos. Como se o dito “problema” não existisse há muitos anos. Existia, mas enquanto não provocou indignação pública, o poder político manteve-se impávido. Agora até admite legislar. A justiça não precisa de mais leis penais ou processuais-penais. Precisa, isso sim, de mais transparência para que seja escrutinada pelos cidadãos, tal como os gastos na Saúde ou o trabalho dos professores podem ser. No ano 2021 continua a ser mais fácil para um cidadão português consultar um processo no Brasil ou nos EUA do que em Portugal. Enquanto este modo de vida se mantiver, o resto das polémicas é uma consequência natural de um caldo de cultura que, simplesmente, está a borrifar-se para os cidadãos. W