A vida do homem que matou Fernão de Magalhães
Navegador morreu na praia, foi decapitado e espetado numa estaca. Lapulapu é herói nacional nas Filipinas.
Foi tudo menos fácil a viagem à volta do mundo comandada por Fernão de Magalhães. Cinco caravelas com 256 tripulantes a bordo saíram de Sanlúcar de Barrameda, Espanha, a 20 de setembro de 1519. Quase três anos depois, apenas uma nau com 18 homens a bordo voltou. Nenhum dos sobreviventes foi o navegador português, que morreu há 500 anos, a 27 de abril de 1521, numa praia das Filipinas.
Fernão de Magalhães e os seus homens chegaram a Cebu, no atual território das Filipinas, 565 dias depois da partida. “Foram bem recebidos pelos nativos, foi-lhes dada comida, descansaram durante uma semana. Conheceram pessoas, essa é a parte da humanidade”, partilha a embaixadora das Filipinas em Portugal, Celia Anna M. Feria. Refere-se à denominação oficial das comemorações no seu país: 500 anos da Batalha de Mactan – Vitória e Humanidade. Em Portugal e Espanha, são os 500 anos da circum-navegação. “Claro que a vitória é acerca de os nativos terem vencido a batalha, mas a humanidade é também o que queremos realçar”, reafirma a diplomata. “A humanidade de, após navegarem no Pacífico por três ou quatro meses, terem sido bem recebidos. Era um sítio completamente diferente, com nativos, gente diferente.”
Fernão de Magalhães teve dificuldade em lidar com as dinâmicas locais. Já antes de 1521, Cebu (na região de Visayas Centrais) era um importante centro comercial, com uma sociedade hierarquizada. As tribos tinham entre 30 e 100 famílias. O rajá Humabon era um dos líderes e foi o anfitrião da frota de Magalhães. Recebeu-a com aprumo, cedeu ao batismo da maioria da sua tribo (entre 800 e 2.000 pessoas), participou nas missas diárias e partilhou com o português os problemas que tinha com um rival, Lapulapu, da ilha vizinha de Mactan. Magalhães quis ajudar.
Jobers Bersales é professor no departamento de Arqueologia da Universidade de San Carlos, em Cebu, e traça o cenário que levou à batalha de Mactan: “Havia uma disputa familiar e territorial entre Humabon
e Lapulapu, Magalhães quis mostrar poder ao seu anfitrião e partiu para Mactan para tentar subjugar o chefe rival. A maré estava baixa e os espanhóis desembarcaram com armaduras, sob um calor intenso e húmido. Enterraram-se na lama e não tiveram grandes hipóteses.”
Eram à volta de 60 europeus, acompanhados por cerca de um milhar de nativos aliados de Humabon (em 20 a 30 barcos locais), a quem o português ordenou que ficassem ao largo. Confiava em Deus e nos homens que tinha consigo. Do outro lado, Lapulapu e 1.500 guerreiros atentos. Apenas o tronco dos europeus estava protegido e trataram de apontar às pernas. Em terreno enlameado, os visitantes terão aguentado cerca de uma hora. Magalhães ficou duas vezes sem capacete, levou um golpe na cara com uma lança de bambu, ripostou matando um dos agressores, mas viu-se cercado.
De acordo com o cronista António Pigafetta, que sobreviveu a toda a viagem, os nativos “trespassaram-no com lanças e espadas e todas as outras armas que possuíam”. Não há um único relato que confirme que o golpe fatal tenha sido desferido por Lapulapu, mas o guerreiro ficou para a história como o autor efetivo.
O herói de 70 anos
O historiador filipino Daniel Gerona entra em mais pormenores sobre os dois inimigos na investigação Fernão Magalhães: A Armada de Maluco e a descoberta europeia das Filipinas: “Sempre pensámos em Magalhães como um guerreiro, mas ele era um tipo baixo, menos de metro e meio, que coxeava.” Quanto a Lapulapu, seria um homem de 70 anos (o português tinha 41), o que não encaixa na imagem histórica criada – a de um jovem, energético e musculado, figura de destaque em notas, selos, livros, monumentos, canções, estátuas ou pinturas nas atuais Filipinas. Lapulapu é também o nome de um dos peixes mais populares do país, mas ainda está por decidir quem nasceu primeiro: o homem ou o pescado.
Gerona relata que Magalhães foi decapitado, e “de acordo com os costumes dos nativos, o vencedor ficou com um troféu, normalmente a cabeça, espetando-a na ponta de uma lança”. A embaixadora Celia Anna M. Feria também faz a sua leitura: “Não foi uma boa opção tática, ele era um navegador, não um general. Talvez tenha tido demasiada confiança no poder da religião e das suas crenças, mas mostrou que havia falta de conhecimento.”
E vai mais longe: “Nos livros de História, e na minha infância (durante os anos 1970), havia um paradigma. As Filipinas tinham sido descobertas por Magalhães, mas anos depois percebemos como é que ele Q
LAPULAPU É TAMBÉM O NOME DE UM DOS PEIXES MAIS POPULARES USADOS NA GASTRONOMIA FILIPINA
Q poderia descobrir uma coisa que nunca esteve perdida? Talvez o Magalhães tivesse outra agenda, o rei tinha-lhe prometido duas ilhas por cada seis descobertas. Talvez ele estivesse apenas a planear a reforma para si e a sua família. Não sabemos o que lhe ia na cabeça quando foi para a batalha. O que será que pensou quando achou que podia derrotar tantos milhares de nativos?”
A batalha de Mactan adiou a colonização espanhola durante mais de 44 anos, mas marcou o início da cristianização das Filipinas. Em 1565, a expedição de Miguel de Legazpi iniciou o período de domínio espanhol (até 1898). Depois veio o domínio dos EUA (até 1946), mas a figura de Lapulapu nunca foi esquecida. Como frisa a diplomata em Portugal: “No século XIX, quando os nossos heróis lutavam pela independência, evocavam sempre o heroísmo de Lapulapu, como um exemplo.”
A viagem que mudou o mundo
Sabe-se pouco dele, sendo essencial o que deixou Pigafetta. Seria filho de um poderoso chefe, Datu Mangal, e a sua irmã terá casado com o rival Humabon. A mitologia popular fala da força sobrenatural de Lapulapu e do seu pai, que possuiria um cavalo alado. Após a batalha, há várias versões para os últimos dias do guerreiro:
“MAGALHÃES ERA UM NAVEGADOR, NÃO UM GENERAL. TALVEZ TENHA TIDO DEMASIADA CONFIANÇA NO PODER DA RELIGIÃO”
transformou-se em pedra e guarda os mares de Mactan; cinco meses depois do combate chegou a acordo com Humabon e voltou com a família (três mulheres, 11 filhos e 20 criados) para a sua terra natal, alegadamente o Bornéu; ou findo o conflito, juntou-se à amada Bulakna, entraram numa gruta sagrada e nunca mais foram vistos. A verdade estará algures no meio, mas até hoje surgem reivindicações de presumíveis descendentes. Nenhuma foi provada.
A 27 de abril de 2021 dá-se o ponto alto das comemorações dos 500 anos da batalha de Mactan. Na mesma praia onde Magalhães morreu, as cerimónias oficiais vão incluir as mais altas figuras do Estado. A estátua de Lapulapu (com 20 metros) dominará o cenário, tendo ao lado, no santuário, o monumento dedicado a Fernão de Magalhães e à presença espanhola (bem mais modesto em altura). Noutros anos, pré-pandemia, milhares de figurantes recriavam a batalha a cada 27 de abril perante uma multidão de espetadores. Em 2021, no quinto centenário, o momento será mais modesto mas, como conclui a embaixadora filipina em Portugal, “aquela viagem mudou totalmente o mundo. Ele não nos descobriu, porque já lá estávamos, provavelmente nós é que o descobrimos.” W