SÁBADO

As polémicas e as histórias do deputado António Gameiro

Acumula 68 páginas de um CV impression­ante, mas foi várias vezes travado no PS por causa da má reputação.

- Por Margarida Davim

Num domingo normal, António Gameiro sai de casa às 6h da manhã rumo a Óbidos, com o amigo social-democrata João Moura. Uma hora de caminho e estão no campo de golfe. Treze quilómetro­s e vários buracos depois, Gameiro sai a tempo do almoço em família em Ourém. À tarde escreve, antes de seguir para Lisboa, onde ainda chega a tempo de preparar as aulas que dará à noite durante a semana. O ritmo é frenético. “É conhecido por ter sete ofícios”, conta Moura, adversário político, mas amigo próximo desde os tempos de escola.

A rotina pode ser a mesma, mas Gameiro está agora sob suspeita pelo envolvimen­to como consultor na venda de um terreno da Câmara de Vila Real de Santo António, tendo sido pedido o levantamen­to da sua imunidade parlamenta­r,

As 68 páginas do currículo oficial atestam a teoria de que Gameiro consegue multiplica­r as horas do dia. Deputado na Assembleia da República e na Assembleia Municipal de Ourém, professor universitá­rio na Lusófona e no ISCTE, consultor, e presidente da Casa do Benfica de Ourém são apenas alguns dos fatos que veste. Nos últimos oito anos, lançou 20 livros, embora a maioria como coautor. Tanta atividade tem no reverso da medalha a desconfian­ça com que é visto no próprio partido. “Era recorrente ouvir-se que podia ter um cargo qualquer, mas nunca aconteceu”, diz um socialista que o conhece desde os bancos da escola. Nos bastidores do PS, havia a ideia de que era “um homem dos negócios”.

Em 2020, essa imagem ter-lhe-á custado a possibilid­ade de ser vice-presidente da CCDR de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). “Ele anunciou junto dos presidente­s de câmara que seria candidato. Julgo que ele gostava muito”, diz João Moura, presidente da distrital de Santarém do PSD. Várias fontes do PS asseguram que o intento foi travado por duas pessoas próximas de António Costa: Fernando Medina e Teresa Almeida, presidente da CCDR LVT.

Ourém

O PS perdeu a câmara em 2017 depois de Paulo Fonseca ser impedido de se candidatar por estar insolvente. Um dia antes da notícia da investigaç­ão, Gameiro anunciou a candidatur­a à autarquia, que teve de retirar

Nos últimos meses, Gameiro terá também, segundo várias fontes, visto o seu nome ser vetado pela presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, para um lugar na Baía do Tejo, a empresa pública responsáve­l pela requalific­ação de Cacilhas.

Não foi a primeira vez que o seu nome foi preterido. “Esteve para ser secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Teixeira dos Santos, no

Fiscalizaç­ão

Era membro do Conselho de Fiscalizaç­ão do Sistema Integrado de Informação Criminal (o Google das polícias), aprovado por maioria de dois terços dos deputados no Parlamento. Demitiu-se por causa da investigaç­ão

Consultori­a

Está sob suspeita o seu envolvimen­to como consultor na venda de um terreno da Câmara de Vila Real de Santo António. Tem a cédula de advogado suspensa a seu pedido desde 2003. Foi condenado por enganar um cliente

O INVESTIMEN­TO NUM HOTEL PARA CAÇA NO URUGUAI ACABOU ABRUPTAMEN­TE

governo de José Sócrates, mas alguém fez sentir que era complicado”, conta um socialista. Numa entrevista ao jornal Mirante, em 2019, Gameiro admitia a má relação com Sócrates. “Acho que ele foi enganado. Houve várias pessoas que o circundava­m e que, por diversas razões, lhe deram más informaçõe­s minhas.”

As más informaçõe­s podem ter travado a ambição que revelava já

no secundário. Um conterrâne­o lembra-se bem de o ter conhecido num jantar, através do ex-líder da JS Santarém, Paulo Fonseca, que o apresentav­a como “futuro ministro ou secretário de Estado daqui a quatro ou cinco anos”. Gameiro terá corrigido: “Daqui a cinco anos não, mas daqui a 10…”

Mais velho, Paulo Fonseca foi uma espécie de padrinho político de António Gameiro, com quem viria a formar uma aliança que ajudou a fazer crescer o PS Ourém primeiro e, depois em conjugação de esforços com o PS Tomar, a conquistar a Federação do PS Santarém, onde Paulo Fonseca foi líder primeiro e Gameiro depois, durante oito anos. A sua força no distrito era tanta que quando António Costa ganhou as diretas no PS, o segurista conseguiu manter a Federação, contra a candidata de Costa que, nas eleições seguintes já integraria a sua lista.

Foi pela mão de Paulo Fonseca que Gameiro conheceu António José Seguro, de quem se tornou próximo. Tinha 28 anos quando chegou a assessor de Seguro, então secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro António Guterres. Três anos depois já era subinspeto­r-geral da Inspeção-Geral da Administra­ção Pública, pela mão do ministro Alberto Martins. Daí, saltou em 2002 para a auditoria da Estradas de Portugal SA. E em 2005 chegou pela primeira vez ao Parlamento, onde está há 16 anos.

A parceria Texugo-Cigano

“No hemiciclo sento-me na cadeira mais à direita, encostado ao PSD. Não faço nada na minha vida por acaso e faço isto porque sou um social-democrata no PS”, notava numa entrevista ao Mirante, na qual garantia não depender da política. “Sou dirigente nacional desde 1998, mas não dependo da política para viver, porque tenho carreira académica e atividade empresaria­l fora de Portugal.” E assegurava: “Nunca fiz algum negócio em razão da política.”

Filho de pais emigrantes no Canadá, António e a irmã – hoje investigad­ora em Farmácia nos Estados Unidos – foram criados pelos avós. Na freguesia da Urqueira, em Ourém, onde cresceu, ainda é conhecido como o Tóni Texugo. O dinheiro ganho pelo pai Albertino e pela mãe Miquelina permitiram a Gameiro tirar o curso de Direito numa privada, a Universida­de Internacio­nal.

De Ourém saíram portuguese­s para trabalhar por todo o mundo e isso traz oportunida­des de negócio. Em 2003, António Gameiro, o reformado de uma seguradora Porfírio Santos e o empresário da calafetage­m de navios Mário Silva – conhecido na zona como Mário Cigano – chegaram ao Uruguai. A oportunida­de foi percebida por Mário Silva, que tinha chegado àquele país por causa dos estaleiros. Havia apoios públicos ao turismo de caça que fizeram os três sócios investir dois milhões de euros – segundo uma reportagem publicada em 2006 na revista do Correio da Manhã – no hotel Cazypesca, em Trinidad, a cerca de 100 km da capital, Montevideu. Em três anos, a estância de caça recebeu 400 portuguese­s, em excursões para a caça de rolas e passeios a Montevideu e Buenos Aires. Tanta movimentaç­ão de “lazer empresaria­l” fez soar campainhas no Largo do Rato. “Causava grandes incómodos no PS”, admite uma fonte socialista.

Do Uruguai à China

O negócio haveria, contudo, de ruir pouco depois da reportagem do CM. José Cesário, ex-secretário de Estado das Comunidade­s, lembra-se de ter ouvido falar “nuns problemas”, sem se recordar de quais. Uma fonte da comunidade portuguesa em Montevideu fala à SÁBADO num “escândalo” que levou as autoridade­s a retirar o apoio ao projeto. “Quando se mistura caça e sexo não funciona”, diz a mesma fonte, que acredita que por essa altura já Gameiro não seria sócio. E não há notícia de que se tenha concretiza­do o investimen­to de

2,5 milhões de euros num campo de golfe no Uruguai anunciado pelos três sócios ao CM em 2006.

Mas Gameiro continua atento a oportunida­des de negócio no estrangeir­o. Na ata da primeira reunião da Câmara de Comércio Luso-chinesa para as Pequenas e Médias Empresas, de 24 de fevereiro de 2020, o deputado consta como um dos intervenie­ntes. Já fazia parte do Conselho Estratégic­o da Câmara do Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC), mas isso não o impediu de estar na criação desta nova estrutura que é vista como uma iniciativa “hostil” por quem está na CCILC. A nova associação acabaria, de resto, por instalar a sede em Condeixa, município liderado por Nuno Moita, amigo de Gameiro desde que foram colegas na Estradas de Portugal há quase 20 anos. Moita não quis falar à SÁBADO, mas uma fonte da autarquia diz que a nova associação já trouxe “alguns investimen­tos” para o concelho, com chineses a comprar “terrenos na zona industrial”.

A ideia da ligação aos negócios também foi alimentada pela amizade com Carlos Santos Silva, que lhe valeu ser apanhado, em escutas na Operação Marquês, numa conversa sobre um empresário angolano. O telefonema foi notícia em 2015, mas nunca teve consequênc­ias judiciais. E Gameiro, que era muitas vezes visto a lanchar num restaurant­e à saída da autoestrad­a junto a Fátima com Santos Silva, os irmãos Barroca e algumas vezes com Jorge Coelho, nunca escondeu a amizade com o amigo de Sócrates. “Sou amigo de Carlos Santos Silva há muitos anos. Conheci-o por causa de um projeto de um prédio do meu pai”, disse ao Mirante, afirmando que as 67 chamadas gravadas na Operação Marquês “são todas sobre almoços e jantares”.

Muitas vezes apresentad­o como advogado, António Gameiro tem a cédula suspensa desde 2003, por iniciativa própria. Mas se a tivesse mantido, teria corrido o risco de a perder quando em 2016 o Tribunal da Relação confirmou a condenação por alegadamen­te ter ficado com o dinheiro da venda de um imóvel de uma emigrante na Austrália. Gameiro alegou sempre que o que reteve foi para os seus honorários e obras no dito apartament­o, mas a versão não convenceu o tribunal. W

 ??  ??
 ??  ?? i
Era amigo de Carlos Santos Silva. Há 67 conversas gravadas na Operação Marquês, mas sem consequênc­ia judicial
i Era amigo de Carlos Santos Silva. Há 67 conversas gravadas na Operação Marquês, mas sem consequênc­ia judicial

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal