A incrível história de Carolina Deslandes
As suas músicas es são instantâneos e arrasta muitos milhares nas redes social. Aos 29 anos, continua a fazer terapia e já ouviu um agente dizer-lhe que só trabalhava com artistas e não com "parideiras" Outro tentou forҫar-lhe e entrada no quatro. Sempre polémica esta é uma mulher que diz o que quer w quando quer
No auge do sucesso, Carolina desabafou com Diogo: “Estou farta que as minhas canções só falem da minha vida, dos meus filhos, de ti, do meu avô.” Foi com essas músicas que Carolina ascendeu a incontornável cabeça de cartaz. A Vida Toda, canção que ofereceu a Diogo Clemente pelo seu aniversário, sobre a família que estavam a formar, explodiu na Internet e chegou a dupla platina. Carolina Deslandes, cantora e compositora, passou num ápice de não ter um concerto marcado para encher Coliseus, colecionar discos de ouro e platina, ter mais de 800 mil seguidores nas redes sociais, parcerias com marcas, e ser jurada em talent shows. Passámos um dia com Carolina Deslandes, o grande fenómeno da música nacional que, entre um feminismo que não pede desculpas e os choques com a imprensa, está cada vez mais gangster.
Não há tempos mortos. A meia hora da maquilhagem por volta das 10h da manhã podia dar para dormitar, mas o documentário sobre Notorious B.I.G, o rapper norte-americano que morreu precocemente em 1997, acabou de sair na Netflix. Enquanto a maquilhadora faz o seu trabalho, o telemóvel fica apoiado na bancada e Carolina vai desviando os olhos da parafernália que lhe vão passando na cara para ver o rap nova-iorquino dos anos 90.
O camarim está um corrupio mais ou menos acelerado por outros músicos, cabelos e guarda-roupa, e no lugar de Carolina vai-se juntando um ou outro em silêncio para ver o documentário. A dada altura sai-lhe qualquer coisa como “quem me dera ter andado aqui” e conhecendo o seu percurso na música percebe-se porquê. Foi com o rap que se apaixonou por esta arte e percebeu que queria andar perto dela. A menina de uma família “beta de primeira”, como a própria diz, pelos 13 anos passava tardes a fio com rappers como Primeiro G e os TWA.
Não há tempo para ver Biggie: I Got a Story to Tell até ao fim. Esta manhã gravam-se os intervalos para a Fox, pequenas atuações de músicos portugueses que passam entre séries e filmes nesses canais. O mote é “todos precisamos de um intervalo”, mas neste momento há é que acelerar. Tiago Bettencourt acabou de gravar e Carolina Deslandes fecha-se no camarim com as responsáveis do guarda-roupa.
Saem do camarim à procura de roupa. Vão lá dentro e voltam para trás. As piscinas repetem-se. “A Carolina costuma trabalhar com uma equipa dela, ter make, cabelos e roupa dela”, comenta Jorge Reis, road manager, cá fora. Há uns quantos maquilhadores e cabeleireiros que Carolina Deslandes contrata para os programas de televisão e outros trabalhos – mesmo quando há esse serviço na produção. Hoje foi uma exceção. “Mesmo não sabendo nada destas artes, olhas e vês a diferença na qualidade. É um custo acrescido para ela, mas é a construção da sua identidade e de uma imagem”, explica Jorge Reis.
A dança de entrada e saída de roupa no camarim prolonga-se. Lá dentro há um veste e despe e sucessivos nãos da artista. Finalmente sai e, pela cara de Jorge, a roupa que traz vestida não surpreende quem a conhece: é a mesma com que entrou no estúdio e que trazia de casa: um
A MENINA DE UMA FAMÍLIA “BETA DE PRIMEIRA”, COMO A PRÓPRIA DIZ, PELOS 13 ANOS PASSAVA TARDES A FIO COM RAPPERS
hoodie largo preto da Obey, a tapar-lhe parte das pernas, umas calças justas e ténis. “Vou só lá fora, preciso de um cigarro”, diz a cantora, deixando um ambiente tenso para trás.
Amar a celulite
“Ao princípio eu cedia porque diziam ‘estás tão bem’. Depois eu via na televisão, a rebentar pelas costuras e ficava a odiar-me. Hoje não papo disso”, conta enquanto fuma à entrada do estúdio. “Mandamos as medidas e elas trazem o número abaixo, dizem que vai servir. Eu visto-me todos os dias, estou a olhar e a ver que não me serve”, reclama.
A saga da roupa acompanha Carolina Deslandes desde os Ídolos, o talent
NÃO SABE ANDAR DE SALTOS ALTOS E SÓ CANTA BEM SE ESTIVER CONFORTÁVEL
show da SIC em que participou em 2010. Há quem ache que gosta de roupa larga e desportiva para esconder as transformações por que o corpo passou depois de três gravidezes, mas garante que este sempre foi o seu estilo. Não sabe andar de saltos altos e só canta bem se estiver confortável. Diz não se importar de passar por diva nestas situações. “Queriam vestir-me um blazer!”, reclama ainda incrédula.
Mais tarde, em casa, Carolina pegará num livro de Rupi Kaur, poetisa feminista da sua idade e que, como ela, se popularizou com a Internet. Lerá um poema ao calhas sobre aceitação do corpo e dirá qualquer coisa como: “Isto é que as meninas da Fox precisavam de ouvir.”
Em sua casa há um armário de coisas que comprou para não depender de guarda-roupas alheios. Quer chegar e dizer que o camisolão largo de marcas de streetwear, os All Stars ou botas militares com vestido são o seu estilo. Ouve sempre comentários e já os antecipa: “Ela vai de Dr. Martins para os Globos de Ouro?”
O corpo não é só tema de conversas nos bastidores de uma atuação. No Instagram, onde começou a construir uma base de seguidores essencial para o momento em que lançou A Vida Toda, fotos suas de lingerie ou biquíni deram em críticas nos comentários ou mesmo em alguma comunicação social. “Claro que eu gostava de estar noutra fase fisicamente: gostava de operar a minha barriga e a minha diástase [abdominal] e é uma coisa que vou fazer, mas já aprendi a amar a minha celulite, o meu rabo grande, as minhas pernas grandes, já aprendi a amar as minhas estrias”, resume Carolina as indignações dos outros.
“Ainda existe o ‘com que lata é que esta mulher se vem mostrar assim?’ Mas o meu trabalho não depende disso, depende da minha criatividade. Se me disserem ‘esta letra desta música é uma merda’ ou ‘o teu concerto foi uma merda’ vou ficar preocupada. Enquanto estiveres a tentar caber num molde vais sentir que estás aquém das expectativas. Cria o teu molde”, sentencia.
De volta ao estúdio, vai cantar Não Me Importo, uma das músicas do seu último EP, Mulher. Carolina entra no set, recebe umas indicações da realização, testa o som, canta umas três vezes e está feito, sem hesitações.
“Ela grava anúncios num take. Já vi atores a demorarem uma hora para gravar três linhas e ela faz sete linhas à primeira”, conta David Silva, que trabalha como seu driver, ajuda com trabalhos com marcas, acompanha-a em concertos. “Até quando achas que ela não está concen- Q
Q trada, ela está concentrada.”
Carolina tem uma visão diferente sobre o assunto e garante que sente sempre um arrepio antes de atuar. Ainda acha que ninguém vai aparecer nos concertos e já percebeu que a conversa que lhe faziam ao início – de que o medo e a adrenalina antes de uma atuação passam com o tempo – é mentira. Vai fazer 10 anos de carreira no próximo ano, a contar desde o lançamento de Carolina Deslandes, o primeiro álbum, e há um mês, no Festival da Canção, ia vomitando antes de atuar.
“Os meus filhos são a razão pela qual eu estou aterrorizada numa situação profissional qualquer, a pensar no que pode correr mal, e mantenho-me absolutamente focada em portar-me bem. Vejo a cara deles e vou e não dou hipótese.”
Santiago nasceu quando Carolina Deslandes tinha 24 anos e poucos meses depois ficou grávida de Benjamim. “Nessa altura pensei: ‘Eu não tenho guita para isto. Não tenho dinheiro para agora ter mais uma criança.’ Mas depois pensei ‘tá-se bem, vou ter’”, recorda.
A agenda de concertos estava vazia e a indústria revelava-lhe o seu lado sexista. Não lhe marcavam concertos porque estava grávida, se acontecia alguma coisa não queriam responsabilizar-se; não pensavam nela porque ia a caminho de dois filhos e assumiam que tinha de estar em casa; diziam-lhe que o comboio da carreira musical não passava duas vezes e que não o tinha apanhado.
“Na altura em que engravidei do meu segundo filho estava com uma agência que me tirou de lá sem me avisar e disseram-me que trabalhavam com artistas, não trabalhavam com parideiras”, recorda as palavras exatas. “Não nos perguntem como é que vamos continuar a carreira com três filhos, deixem-nos mostrar-vos como é que se faz.”
Foi a uma semana do nascimento de Benjamim que conheceu David Silva. Voltou a vê-la meses depois, para a acompanhar num trabalho num hotel. “Ela estava exausta” mas ficaram horas à conversa, na tentativa de enganar o atraso das outras atuações. De repente, Carolina parou
4 anos passaram, a 13 de abril, sobre o lançamento de A Vida Toda, que originou a subida da cantautora
“DISSERAM-ME QUE TRABALHAVAM COM ARTISTAS, NÃO TRABALHAVAM COM PARIDEIRAS”
a conversa e disse que precisava de descansar um bocadinho. “Não foi pedir camas nem nada, eu arranjei-lhe um cobertor e uma almofada e deitou-se no chão, dormiu uma hora e meia. Acabou de cantar, apanhou um driver de mota que voou para atravessar a cidade inteira à hora de ponta porque ia ter outro concerto não sei onde”, recorda David.
Dos Ídolos à carreira a solo
Quando engravidou do terceiro filho, Guilherme, estava com uma agenda intensa, fez mais de 50 concertos grávida. “O comboio passa as vezes que tu quiseres, se trabalhares para que ele passe – ou se construíres um comboio”, ri-se Carolina e desmancha-se mais: “Não perguntem como se faz uma carreira com três filhos, perguntem é como é que se mantém um casamento, que isso é que eu estou a tentar aprender.”
A relação amorosa pode ter acabado, mas Diogo e Carolina continuam presentes na vida um do outro. Depois da gravação vai para a casa onde vive sozinha, no Chiado, em Lisboa, há cerca de um ano. Os filhos vivem num apartamento em Alcochete e são os pais que vão mudando de casa. Este apartamento, num prédio com alojamento local, é provisório. “Só noto os vizinhos quando estou a cantar às 3h da manhã e vêm perguntar-me se posso parar.”
Acaba de comprar casa e está a aproveitar os últimos tempos no coração da cidade – prefere o barulho de autocarros, tubos de escape e esplanadas à calmaria; a sua atividade
QUANDO ESTAVA GRÁVIDA DO TERCEIRO FILHO FEZ MAIS DE 50 CONCERTOS
preferida é caminhar à noite, de fones nos ouvidos. O Elevador de Santa Justa, mesmo ali, tem um certo ascendente sobre ela, é onde faz as suas orações e organiza ideias.
Foi da janela da sala que gravou um dueto para o Instagram com um violoncelista, artista de rua. Ele tocava ao fundo na imagem e nem percebeu o que se passava; ela cantava no primeiro plano e identificou-o na publicação. Os seguidores de Magic.Cello cresceram do dia para a noite e, quando se cruzou com esse músico estrangeiro ouviu algo como: “Fogo! Não sabia que eras famosa!”
O almoço é um takeaway rápido porque Diogo Clemente, também seu produtor musical e músico, não tarda. Vão gravar-se a tocar algumas músicas para que nos próximos dias haja conteúdo para publicar no perfil de Carolina. Põe um vinil de Carlos do Carmo a tocar entretanto – tira-o de entre outros unânimes como Chico Buarque ou António Variações. É a neta de 29 anos a refazer a coleção de vinis da avó que desapareceu.
Num instante, despacha umas fotos para uma parceria paga com uma marca de bolachas que está a fazer nas suas redes. Chovem-lhe convites destes, é um reflexo dos seus mais de 800 mil seguidores.
Quando Diogo Clemente entra e começam numa picardia de amigos, onde a relação que acabou não é tabu; pelo contrário. “Era impossível, não podíamos fazer fritos porque o Diogo não gosta do cheiro a fritos, não podíamos ligar o exaustor porque o Diogo não gosta do barulho.”
“Mas quem é que faz fritos em casa?”, devolve Diogo e concorda que qualquer barulhinho fora do tom lhe faz impressão. “A Carolina pode ter duas horas livres, mas é capaz de me ligar nos dois minutos em que vai lavar os dentes. Aquele barulho irrita-me.” Não é ouvido de tísico, é ouvido de músico metódico, aplicado nas pautas e no lado técnico. O oposto de Carolina, que aborda a música de forma mais intuitiva, ouvir discos é a sua escola e inspiração.
Antes de participar nos Ídolos, em 2010, pelos 18 anos, queria desistir do curso de Direito que estava a detestar e estudar música. A mãe deu-lhe um ‘tudo bem’ com rasteira: arranja um trabalho. “Num dia entreguei 52 currículos. Aceitei o primeiro trabalho.” Trabalhava num restaurante da D. Carlos I, em Lisboa, e estudava no Hot Club.
O objetivo era a London Music School e, como esse era o prémio da
Rui Veloso É um dos seus músicos favoritos desde a adolescência. Cumpriu o sonho de cantar com ele e gravaram Avião de Papel
quarta edição do Ídolos,
na SIC, participar num programa de talentos pareceu-lhe um bom negócio. “As famílias e o programa incutiam muito a competição”, admite que não era a sua parte favorita. A parte boa foi o verão seguinte, quando os ex-concorrentes moviam multidões e correram o País juntos numa tour.
Eram amigos a cumprir o sonho.
A realidade desse talent show é diferente da atual, sobretudo daquela que vive como jurada do The Voice Kids, na RTP, onde, para Carolina, as crianças (e as suas famílias) são bem acompanhadas e protegidas.
A chegada à televisão teve os seus momentos duros – e não tanto pelo júri, que tinha a fama de implacável. António Moura dos Santos foi, mais tarde, o seu primeiro manager e mantêm-se amigos. “A minha mãe não me deixava ficar convencida, disse-me logo que aquilo não ia durar muito.” Depois do festejo prolongado desse verão voltou a estudar – desta vez Línguas e Literaturas –, mas voltou a trocá-lo pela música e finalmente chegou à London Music School, onde passou seis meses.
“Ela tem uma carreira, três filhos, 50 coisas com marcas que implicam estar sempre a fazer isto e aquilo e continua a criar… Vamos no carro, a falar, e ela diz ‘dá-me só um segundinho’. Começa a escrever [no telemóvel] e diz ‘ouve lá isto, vê se gostas’. Já tem uma música escrita. É natural nela”, conta David Silva.
“O meu processo de escrita é muito automático”, explica a compositora, “tenho uma ideia ou uma melodia e arranco a dizer palavras soltas; daí agarro em duas palavras, faço uma frase. Já não largo mais a melodia e começo a escrever no telemóvel ou no papel. Normalmente rápido porque, como faço de forma intuitiva, se demoro muito fica mal.”
A língua é o combustível. A casa
“MUITAS VEZES DIGO QUE [AS MÚSICAS] NÃO SÃO SÓ PARA NÃO ME CHATEAREM A CABEÇA”
Q tem pilhas de livros que juntam Afonso Cruz ao livro de Cristina Ferreira. “Tornámo-nos menos exigentes com essa questão, mas uma pessoa que não lê acaba sempre por criar raciocínios à volta das mesmas coisas e com o mesmo vocabulário.”
O quotidiano num avião de papel, numa caneca nas mãos ou a beber da Coca-Cola de outra pessoa serve para falar dos grandes sentimentos e as palavras mundanas podem valer só pelo som, como daquela vez em que estava a gravar uma canção com Pedro Abrunhosa e ficaram os dois fascinados com o facto de estarem a cantar a palavra laranjal pela primeira vez. “Uau! Adoro laranjal, ficas mesmo bonita a cantar laranjal”, dizia-lhe Abrunhosa.
A cantora de causas
A sua coleção de composições é de dar e vender. Escreve para si e para outros artistas, algumas das músicas vai gravando para o Instagram, como acontece esta tarde. Se Carolina manda uma nota ao lado, Diogo reclama: “Então? Já íamos com muito tempo de jogo”; se Carolina quer acabar numa nota e Diogo noutra, ela lembra-lhe quem é a compositora da canção e, se for preciso, no meio da teima já prolongada, chega mesmo a dizer: “Se estivesses a falar com um homem não falavas assim.”
“Agora imaginem isto mas a namorar”, cruza um para o outro rematar: “Assim [separados] é mais espaçado.” Começam por tocar Por Um
Triz, sobre uma relação que quase durou para sempre; depois uma inédita sobre um casal a fazer planos e outra sobre um casal que se separou e perdeu o contacto. Não vale a pena perguntar se são sobre a sua vida.
“Muitas vezes digo que não são só para não me chatearem a cabeça. As canções têm de ter uma vida para lá dessa especulação”, diz. Escrever destas canções é como desmanchar o embuchamento que dá ao comer muito e rápido, sem beber nada.
“Há situações de tensão, saudade, perda que te dão essa sensação de dor física e uma canção pessoal é curar a ferida disso. As pessoas muitas vezes não sabem o que levou àqueles quatro minutos de canção, às vezes foram anos, às vezes foi a maior dor do mundo”, diz.
Em boa verdade, não são só dramas por resolver, também há as músicas que eternizam eventos que não deviam acabar nunca, como Coisa Mais Linda, escrita depois de um dia em casa dos sogros, uma quinta em Alcochete, em que os miúdos estavam felizes, toda a gente estava animada e o sol estava bom; ou Faz Morada em Mim, do novo EP, escrita às 5h da manhã na casa de banho, mesmo antes de Santiago nascer numa cesariana às 10h, depois de uma gravidez em que a compositora não escreveu uma única canção.
Foi algum tempo depois dos três filhos nascidos que se fartou de cantar a sua vida privada. “É bom gostar de um artista e saber o que ele defende,
Referências
As suas são Carlos do Carmo, Amália ou Zeca Afonso e afirma que Luísa Sobral abriu muitas portas para a sua música
AS SUAS MAIS RECENTES MÚSICAS SÃO SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, CLICKBAIT E SEXO
quais são as suas ideologias políticas, o que é que para ele é importante, gosto que isso esteja na arte também.” Foi por aqui que apareceu o Mulher, uma coleção de seis músicas com todas as suas causas, tudo o que vive enquanto mulher – ou que vê outras mulheres viver – e lhe fica também entalado na garganta.
Este single tem um tema sobre violência doméstica, outro sobre as mensagens encapotadas que recebe sobre o seu corpo, sobre as vezes que a usaram como clickbait ou sobre sexo. “Fiz o Apetece sobre as mulheres se poderem assumir como seres sexuais. A única canção que fala sobre isto em português é o Faz Gostoso, da Blaya, e ainda assim diz que ele faz tão gostoso. E eu gostava de dizer que eu faço tão gostoso. Há muito aquela ideia de que os homens comem e as mulheres são comidas. As mulheres comem também. E bem. As vezes que quiserem, com quem quiserem.”
À música juntou um trabalho visual e narrativo que a redime de todos os videoclips mal gravados. Com Filipe Correia dos Santos, realizador, criou uma curta-metragem em que as seis músicas são capítulos sobre uma mulher que sofre violência doméstica e os constrangimentos das mentalidades mais conservadoras do Portugal rural e da Igreja. Sonha fugir para a cidade e vingar na música.
“Nunca tinha tido dinheiro para fa
zer videoclips – esta é a mais pura das verdades. Disse ao Vasco [manager] que queria fazer uma coisa à séria, de cinema, com arranjos de cordas para as canções, todas as coisas que sempre sonhei, mas que não tinha dinheiro para fazer. As pessoas não têm noção que é caro fazer canções e gravá-las e é caro fazer vídeos e gravá-los,” conta.
O investimento foi feito por Carolina Deslandes e pelo manager e o resultado saiu em novembro de 2020. “Consegui falar de tudo aquilo que eu achava importante e estou descansada. Já deixei este marco, tanto ao nível visual, como a nível lírico e de composição – isto é aquilo que eu sou e em que acredito.”
O fim da tarde é em Alcochete, com as crianças, primeiro a lanchar, depois num passeio à beira do rio. Antes há que passar no supermercado para um daqueles avios de quem faz compras para o mês – embora o carregamento só dure uma semana.
A caminho do carro, começa a falar sozinha inesperadamente, para o telemóvel. Para alguém que veio da Internet o Instagram é mais do que uma companhia e uma rotina, é parte do trabalho. Como quem pedala numa bicicleta para não cair, há que postar todos os dias para manter a atenção dos seguidores. Saca do telefone e fala sobre a votação do Festival da Canção ou apela à assinatura de uma petição para tornar a violação um crime público; tanto partilha uma palhaçada dos miúdos, a sua cara sem maquilhagem ao acordar, como faz vídeos sobre notícias que escrevem sobre ela, para as desmentir ou confrontar jornalistas.
Acusa a imprensa de perseguição, por fazerem notícias sobre o que publica nas redes sociais. Alguns dias antes desta reportagem, a Blitz publicou um artigo com o título: “Será que Carolina Deslandes vai ganhar o Festival da Canção?” O artigo comparava a popularidade da artista com a dos outros concorrentes e dava alguns exemplos de como a popularidade nem sempre valeu o primeiro lugar neste concurso. Para
Teledisco
Os primeiros, sem orçamento, foram gravados na casa da mãe, que por ser grande não parecia repetir-se a cada videoclip
“PORRA, NINGUÉM ME DEU NADA. ACORDO CEDO TODOS OS DIAS, TRABALHO QUE NEM UM CÃO”
Carolina a publicação foi mal-intencionada e usou o seu nome no título para que os leitores entrassem no artigo. Gravou um vídeo apontando o dedo e isso levou a um artigo de Miguel Cadete, diretor da Blitz, com o título “A Ansiedade de Carolina”, que considerava a situação uma tentativa de pressão sobre os jornalistas.
Desta vez, o problema para Carolina foi o uso do termo ansiedade, que diz ter sido usado levianamente, já que a cantora sofre, de facto, de ansiedade diagnosticada.
Filha da Internet
Tem períodos sem crises e outros conturbados. Há semanas as crises voltaram e a solução é afastar-se do que as desencadeia. “Começou a deixar-me ansiosa estar com os meus filhos num sítio público e as pessoas virem para cima deles, especialmente com o Santiago, que tem uma perturbação do espectro do autismo, não lida bem com as pessoas. Ficava aflita, sentia que lhe estava a falhar. Começou a dar-me imensa ansiedade estar em público. Isso associado à mudança do meu corpo, começou a dar-me ansiedade estar em certos sítios, tirarem-me fotografias ou filmarem-me.”
Para Carolina, o frente a frente com a comunicação social não é pressão. “Eu não ajo, eu reajo e para me defender. Se vou perder oportunidades por causa disso é porque ainda há muita gente com medo de fazer frente a certas pessoas”, diz.
“Eu sou filha da Internet artisticamente. Não comecei com uma estratégia de uma label, comecei a fazer vídeos no Instagram, esses vídeos começaram a passar para as pessoas. Marquei dois concertos, um no Porto e outro em Lisboa, que esgotaram. Acabei por fazer seis datas e foi um passa-palavra”, resume. Vieram os Coliseus em 2019, esgotados, as marés de gente em festivais de verão a cantarem tudo de cor.
“Porra, ninguém me deu nada. Acordo cedo todos os dias, trabalho que nem um cão, tenho 29 anos, três filhos, trabalho para os sustentar, para lhes dar a vida que eu gostava que eles tivessem e não venham mexer com o meu trabalho”, atira. Q
Q À chegada a casa, em Alcochete, os miúdos, de 4, 3 e 2 anos, estão a ir para a mesa, quando Carolina entra cheia de sacos do supermercado. Passam o dia com Kiki, que os mantém na ordem possível: Santiago, mais observador e discreto, Benjamim, o relações-públicas da casa, conversador, Guilherme, atento aos irmãos mais velhos. “Não dão muito trabalho, com os pais é que se portam pior, claro”, diz Kiki.
Não há inquietação com as corridas pela casa, os desenhos numa ou noutra parede, os enfeites de Natal que ainda aqui andam. O lanche, como este ambiente de venha-o-que-vier, é peculiar: donuts e morangos. Só a logística de o distribuir é desafiante – quanto mais a de calçar e vestir kispos para um passeio de fim de tarde, à beira-rio. Faz-se tudo a cantar. Carolina começa um verso, uma das crianças completa.
Tudo o que estes três miúdos têm à volta é música. Na infância de Carolina foi semelhante. O primeiro concerto foi de Xutos & Pontapés, conta o pai, Francisco, que a levou e a viu fascinada. Mais do que isso, lembra-se de a ver entrar em casa a cantar uma ou duas frases de ópera, um “Figaro lá lá lá” que ainda hoje não sabe de onde veio. “Na altura disse à mãe dela que esta miúda tinha de fazer alguma coisa com música.”
Em passeios anteriores, Santiago não gostou de estar naquela zona ribeirinha, entre uns barcos de remo e as árvores. A pouco e pouco vai sentindo-se mais confortável e mesmo com o dia a ficar sem luz ainda brinca com umas canas ou uns seixos a rasar na água; ainda há de subir a uma árvore antes de aparecer uma birra qualquer de cansaço.
Tudo tranquilo. Há uns anos, a história seria outra. Carolina faria umas piscinas entre concertos e casa: chegava às 5h da manhã e levantava-se às 9h; levava os rapazes ao oceanário, ao teleférico, voltava a casa para dar o almoço e pouco depois fazia-se à estrada. “Precisava de um break dos miúdos”, resume a época em que foi a Londres ou a Nova Iorque sozinha por uns dias, e passou uma temporada no Brasil onde chegou a atuar no Rock in Rio, com milhares a cantar A Vida Toda.
“Fiquei muito tempo grávida, demorei muito tempo a perceber que já não estava grávida. Estava bloqueada criativamente, precisava de descobrir o que gosto de fazer sozinha, de ver, de ler. Já não sabia porque tive três anos em que todos os meus
“FIQUEI MUITO TEMPO GRÁVIDA, DEMOREI MUITO TEMPO A PERCEBER QUE JÁ NÃO ESTAVA GRÁVIDA”
FOI ASSEDIADA E “NÃO DISSE NADA POR VERGONHA, PENSEI QUE NÃO QUERIA LEVANTAR PROBLEMAS”
hábitos e vontades eram em prol dos meus filhos. Continuam a ser, mas tem de haver individualidade”, resume para logo a seguir surpreender: “E ainda quero ter mais filhos.”
Cresceu com seis irmãos e é assim que vê o futuro, com uns seis filhos, a casar e, já agora, com uma carreira internacional. Namorar está mais difícil. “Eu não posso ter conta no Tinder”, diz, imaginando o cocktail das notícias na imprensa cor de rosa misturadas com abordagens despropositadas na app.
A preparação do Mulher coincidiu com movimentos feministas, antirracistas e pelos direitos LGBT+ hoje instalados nas conversas do dia a dia. Tomou o partido, foi alvo dos tweets de André Ventura e continuou a responder.
“Eu filtro as coisas, sou ponderada, ao contrário do que possa parecer. Não durmo bem à noite se vir uma coisa com a qual não concordo e sinta que podia ter dito alguma coisa.” O exemplo que primeiro lhe vem à cabeça é de um caso de assédio por que passou, quando o promotor de um concerto forçou a entrada no seu quarto de hotel. “Não disse nada por vergonha, pensei que não queria levantar problemas, imaginei que ele tivesse mulher e filhos; não queria causar desconforto à família. Uns anos depois ele teve um problema com uma menor. Só pensei ‘porque é que eu não disse?’”
De volta a casa, os banhos das crianças são barulhentos e o jantar faz-se num ápice. Começa a fazer uma lasanha às 8h da noite e afiança que as suas quiches prontas nuns três minutos não são más.
O final requintado para o dia é com os quatro na cama de Carolina, a ver filmes projetados sobre a cabeceira. Como dizem os miúdos, “ver a Cinderela na parede”. Sem os filhos vê uma série, um filme, um documentário. Provavelmente mais um sobre rap. Os anos iniciáticos como “betinha do hip-hop” com os TWA, o primeiro grupo de hip-hop crioulo, continuam com uma aura mágica em volta. Um dos elementos dessa banda continua a dizer-lhe: “Cada dia tenho mais orgulho em ti. O que eles não sabem é que tu és gangster.” W