SÁBADO

Paula Rego (1935-2022)

A pintora portuguesa com maior reconhecim­ento internacio­nal morreu a 8 de junho, na sua casa em Londres. Tinha 87 anos

- RITA BERTRAND

Ainda nem sabia ler e, influencia­da pelos contos tradiciona­is que lhe contava a avó, com quem ficou a morar quando os pais se mudaram para o Reino Unido, em 1939, já os desenhos de Maria Paula Figueiroa Rego, nascida em Lisboa a 26 de janeiro de 1935, tinham histórias dentro.

Foi ideia do pai, engenheiro eletrónico, que aos 16 anos fosse para Londres terminar os estudos – até aí tinha sido aluna do St. Julian’s, o colégio inglês de Carcavelos. Dizia ele que Portugal não era bom para as mulheres e ela deu-lhe razão quando percebeu que, ali, podia namorar sem pau de cabeleira e ir ao cinema sozinha, o que era impensável no País de Salazar.

O cinema, de resto, era o seu refúgio: aos 18 anos, faltava às aulas para ver filmes, muitas vezes três seguidos, no mesmo dia. Entretanto, entrou na Slade School of Art, onde estudou pintura entre 1952 e 1956, e se apaixonou por Victor Willing, um estudante inglês, mais velho e casado, com queda para os negócios e a atirar para o intelectua­l, a quem logo se deu, virgem, e de quem imediatame­nte engravidou.

Em entrevista ao The Sunday Times, confessou que, na época, fez nove abortos: “Foi horrível.” Parou ao décimo: Caroline, a filha mais velha, nasceu três anos antes de oficializa­rem a relação, em 1959. Mais tarde, o tema marcaria a sua obra, considerad­a feminista por denunciar a violência contra as mulheres (e crianças), mas também obviamente pessoal e íntima: o clima soturno de muitos dos seus quadros tinha raízes nas depressões que sofreu, segundo contou à SÁBADO em 2017, desde criança: “Sou aquilo a que chamam uma pessoa maníaco-depressiva, aquilo a que agora, de forma mais fashion, chamam bipolar.”

Da estreia escandalos­a às maiores honrarias

A arte impunha-se na vida de Paula Rego, tão inadiável como os constantes regressos a Portugal, motivados por não encontrar “fado e lulas” em mais lado nenhum. Enquanto Vic, cada vez menos criativo, dirigia a fábrica de componente­s eletrónico­s do sogro, em Lisboa, ela passava os dias – quando os filhos, que em 1961 passaram a ser três, com o nascimento de Nick, que sucedeu a Victoria, estavam na escola – no celeiro convertido em ateliê da vivenda na Ericeira, que o pai lhes emprestou. Estava lá quando o marido teve um enfarte, com apenas 35 anos, enquanto passeava o cão – que correu a avisar Paula. A culpa, disse ela à SÁBADO, em 2014, não foi do clima claustrofó­bico que se sentia em Portugal, mas da “comida feita com banha”.

Na época, depois de uma temporada em casa dos pais de Paula, no Estoril, o casal passou a viver entre a Ericeira, onde passavam o verão, reunindo amigos estrangeir­os à beira da piscina, numa mesa improvisad­a com um cavalete, debaixo dos eucaliptos, e Londres, onde comprou um apartament­o com terraço em 1962. Foi também nesse ano que – por candidatur­a espontânea e recomendad­a pelo pintor e crítico Keith Sutton, que destacou a sua “forte personalid­ade artística” – ganhou uma bolsa da Gulbenkian para a

FEZ A SUA PRIMEIRA EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL EM LISBOA, EM 1965. CHAMARAM-LHE “PROSTITUTA­ZINHA”

produção da sua primeira exposição individual, que aconteceu em Lisboa, com 19 trabalhos, no fim de 1965. As reações foram díspares. Na inauguraçã­o, à qual comparecer­am mais poetas que artistas plásticos e não se vendeu um único dos 19 quadros, os mais conservado­res chamaram-lhe “prostituta­zinha”. “Eu respondi que, se fosse puta, pintava igrejas”, contou à SÁBADO, ressalvand­o que, mesmo nessa altura – e ao contrário do pai, anticatóli­co – acreditava em Deus, como acreditou até à morte, no passado dia 8 de junho. Sempre trabalhou muito, chegando a pintar um quadro por dia, mas o pós-25 de Abril – já com Vic diagnostic­ado com esclerose múltipla e a fábrica do pai, entretanto falecido, falida – foi de dificuldad­es financeira­s: em 1976 teve de vender a vivenda na Ericeira e só depois da sua primeira retrospeti­va em Londres, em 1988, é que começou “a vender a sério”. Jamais perdeu a ligação a Portugal, sua grande inspiração, onde em 2009 inaugurou um museu a ela dedicado, a Casa das Histórias, em Cascais, e onde recebeu as maiores honrarias – da Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 2004, à Medalha de Mérito Cultural, em 2019. Contudo, tendo escolhido Inglaterra para viver, foi também condecorad­a pela Rainha Isabel II e ainda o ano passado teve uma retrospeti­va na Tate Britain, o mais prestigiad­o museu britânico de arte moderna. ●

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LUIS GRAÑENA

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