A história de um gangster
Sobre a cruel invasão da Ucrânia pela Rússia, a caminho do quarto mês de carnificina, ganha terreno o pragmatismo dos que querem o fim da guerra a qualquer preço.
Sobram as análises geoestratégias em que prevalece o cinismo da realpolitik à moda de Kissinger, o homem que vem das profundezas do século XX e de um tempo em que a política sempre foi gizada em benefício dos Estados e das suas elites políticas e económicas, nunca dos povos.
A contabilidade sanguinária das velhas e apocalípticas guerras desses anos, em que as ideologias sobrevoavam – e esmagavam – a humanidade, falam por si. É preciso não repetir a tragédia, dizem-nos. Carregados de razão. Afinal, Putin já exibiu os seus mísseis de destruição maciça, já criou o fermento apaziguador que, de resto, o dinheiro russo há muito vinha laboriosamente tecendo nas economias e sistemas políticos europeus, através dos seus empregados ilustres, como Sarkozy ou Schröder. Os interesses cruzados nas chancelarias mais poderosas da Europa são muitos.
Na verdade, os ares do tempo não estão para guerras. No espírito, na vontade, no cálculo, no conforto das opiniões públicas ocidentais, formadas e orientadas para os paraísos do consumo, da facilidade, de um aborrecimento existencial combatido pelo lazer, mesmo que fútil, como o que as tecnologias hoje permitem, a guerra, mais do que uma anomalia na convivência entre povos, uma mancha de morte onde deveria reinar a civilidade e a paz, é um empecilho aos confortáveis padrões de vida trazidos pela globalização e o novo milénio.
A inflação, o aumento brutal do custo de vida, a necessidade de uma energia barata e acessível, a incerteza e o medo trazidos pela pandemia, a falta de habitação, o crescimento do abismo salarial entre muito ricos, remediados e pobres, a precarização laboral, a crise brutal de refugiados, a pobreza e a fome em todo o mundo, têm vindo a criar todas as condições de relativização da importância da guerra. O choque inicial, a indignação gritada nas ruas das capitais europeias, as sanções, tudo tem vindo a perder força e os ucranianos estão, progressivamente, a ser deixados um pouco à sua sorte. Em mais de 100 dias de guerra, apesar da heroica resistência, a Ucrânia perdeu já mais de 20% do seu território, um terço da sua população depende da ajuda humanitária para sobreviver, todos os dias têm morrido entre 60 e 100 soldados ucranianos no Donbass – e também muitas vidas russas –, cidades inteiras têm sido devastadas, as mortes de civis são já muitos milhares, os refugiados são quase 10 milhões.
Uma parte do Ocidente embala pela condenação da guerra, pelas sanções, pela necessidade de uma nova ordem internacional. Outra, porém, olha pragmaticamente para a bolsa, para a vida que aí vem no próximo inverno, e quer que a guerra acabe depressa. Todos o desejamos, afinal, mas não a qualquer preço. Não vendendo a alma ao Diabo porque, nesta história, existe mesmo uma criatura demoníaca.
É no meio deste dilema moral que o problema se torna ainda mais complexo quando se leem livros como o da jornalista Catherine Belton, Putin’s People (os homens de Putin, em tradução livre), ainda sem edição portuguesa. Ali está o retrato de um gangster e da mais poderosa rede de crime organizado a atuar no mundo. Naquelas 900 páginas recheadas de investigação, assente em factos, histórias e fontes, emerge a outra realidade de Putin e da Rússia, que tem muito pouco a ver com a geoestratégia, com a defesa face à NATO e ao Ocidente, com a humilhação que alguns servos e assalariados de Putin espalhados pelas televisões insistem em replicar. Belton, que viveu 15 anos na Rússia, onde foi correspondente do Finantial Times e da Reuters, conta-nos a transição do comunismo para o capitalismo, da família de Ieltsin para o grupo do KGB e de Putin, da legalidade duvidosa para a mais completa ilegalidade. Conta-nos o brutal processo de privatização das matérias-primas e da economia em geral, como ele foi entregue a um pequeno grupo de pessoas que criou uma rede tentacular de oligarcas, hoje detentores de mais de 50% do PIB russo. Mostra-nos como foi essa estrutura oligárquica que abriu o caminho ao controlo absoluto do poder político e económico por parte do grupo restrito de ex-KGB amigos de Putin. O livro é uma bomba nuclear dirigida à cultura de gangsterismo que domina a Rússia, que prendeu Khodorkovsky, matou Berezovsky e eliminou todos os adversários ou críticos. Que inundou Washington, Londres, Berlim, Paris, Roma ou Viena com o seu dinheiro sujo. Podemos, portanto, querer que a guerra acabe para podermos voltar calmamente à nossa vida. Mas nunca poderemos dizer que não nos avisaram sobre quem é Putin e como pode infernizar a nossa vida ainda mais, se não for travado agora, na Ucrânia. ●