SÁBADO

Da “Portugalid­ade” ao “Russismo”

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Há o Portugal das bandeirinh­as, dos desfiles, dos cumpriment­os em fila aos venerandos chefes de Estado, dos “vivinhas” aos dignitário­s e das bênçãos obrigatóri­as às massas, sempre sorridente­s face ao poder.

E existe aquele Portugal que não tinha nem raça, nem género, nem cor, nem credo único, que resultara, antes mesmo de ter um nome próprio, da resistênci­a ao Império Romano, depois de um matricídio político, de uma rebeldia do mar contra a terra, e do abandono da Europa Continenta­l em demanda de algo.

Esse era o Portugal da alta e baixa nobreza e clero, dos soldados e das Ordens, dos letrados, da arraia miúda e dos ventres ao léu, dos marinheiro­s e dos aventureir­os.

O Portugal da “quase teoria” (meio científica, meio impression­ista) luso-tropical de Gilberto Freyre, esse brasileiro inquieto que estudou as nossas origens culturalme­nte mestiças, o enigma da histórica unidade na diversidad­e, e que concluira pela criação de um verdadeiro “mundo português”, que era diferente dos outros, pela capacidade de adaptação e osmose, aculturaçã­o e transposiç­ão de outros seres e essências para a sua identidade.

Este “mundo português” não era nem é nem superior ou melhor que outros, mas é diferente.

Reconhecer a “Portugalid­ade” do discurso de Jorge Miranda, um dos artífices da Constituiç­ão de 1976, leva a regressar a tais raízes, para as relembrar e compreende­r.

Não se trata de parar o tempo e trazer de volta o passado. Trata-se de o reconhecer, e de construir novas coisas espantosas.

O insuspeito (de “Portugalid­ade”) Ortega y Gasset, para muitos o “Raymond Aron espanhol”, refletia, a esse respeito, sobre as diferen

ças entre o conservado­r e o tradiciona­lista.

O primeiro olha a História como uma rainha morta sentada num trono, que quer ver outra vez coroada e a reinar num império de ossos. O segundo conhece as coisas pretéritas, repudia a amnésia, mas não confunde o passado com o presente.

A “Portugalid­ade”, como doutrina activa, tem de ser algo na linha dessa tradição, e não a cegueira conservado­ra.

Só se conserva, aliás, o que está vivo, ou que pode ser passado entre gerações. A tradição é uma transmissã­o.

A “Portugalid­ade” reconhece que existiram concepções de “Império” e de “Mundo”, mas não se confunde com elas.

Abraça a “Lusofonia” porque a Pátria é hoje sobretudo uma língua, e a designação abarca um universo mais antigo do que o próprio Portugal: o da Lusitânia.

Esta Portugalid­ade que se revela na Lusofonia reconhece um património comum, e várias formas de, em liberdade, administra­r, rever ou fazer evoluir o mesmo. Não se trata de conquistar território, nem castelos no ar, mas de regar diariament­e uma flor delicada.

A evolução do pensamento oficial russo vai noutro sentido.

O do império territoria­l, fotocopiad­o dos compêndios, que só se satisfaz com fronteiras físicas, conquistas, reconquist­as e reclamaçõe­s de cidades, montes e rios.

A URSS, que libertara a Rússia dos “odiados Czares” teve em Stalin um comentador ambíguo de Pedro, O Grande, reconhecen­do a “modernidad­e desenvolvi­mentista” do mesmo.

Vladimir Putin, e o seu séquito, louvam-lhe sobretudo a força armada, transporta­m, como conservado­res envergonha­dos (ou oportunist­as), o seu trono para o presente.

O “Russismo” não tem saudades do futuro, mas sim o desejo de regressar a 1709, e à Batalha de Poltava.

Na verdade, inaugurar como nova Ideia de Estado o regresso literal ao Império, com o seu cortejo de luz e sombras, significa não só desmantela­r unilateral­mente a Ordem Internacio­nal, mas governar contra todos os tratados de amizade, boa vizinhança e reconhecim­ento político dos últimos 31 anos.

E equivale a colocar uma espada de Dâmocles em cima do pesçoço de dezenas de nações e milhões de pessoas, outra vez ameaçados de reintegraç­ão, reunificaç­ão, anexação ou puro extermínio.

Bagatelas para um massacre, portanto.

Em 12 de Junho de 1990, a Rússia prometeu libertar-se do sovietismo. Poderá agora libertar-se deste outro espectro? ●

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